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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.9 no.3 Belém  2017

https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol09.n03artigo18 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol09.n03artigo18

 

Fenomenologia e a pesquisa em psicologia da saúde

 

Phenomenology and Research in Health Psychology

 

La fenomenología y la investigación en Psicología de la Salud

 

Márcio Luis Costa; Gilliano José Mazzetto de Castro

Universidade Católica Dom Bosco – UCDB

 

 


RESUMO

A presente reflexão tem por objetivo promover o diálogo entre a Fenomenologia e a Psicologia da Saúde a fim de observar quais sãos as contribuições que o primeiro campo pode trazer para as considerações sobre as pesquisas do segundo. Como metodologia serão apresentados alguns conceitos estruturantes da ciência fenomenológica sempre aproximando-os às questões da pesquisa na á rea da Psicologia da Saúde por meio de um estudo teórico. Os principais conceitos tratados são o de fenômeno, método fenomenológico, realidade, intencionalidade, fenomenalidade, verdade e Saúde. Como conclusão é possível observar que uma pesquisa de caráter fenomenológico em Psicologia da Saúde se caracteriza pela interação co-presente e comprometida do pesquisador e dos participantes, construindo com isso uma relação de alteridade de alteridades.

Palavras-chave: Saúde; Fenomenologia; Psicologia.


ABSTRACT

This reflection aims promote dialogue between the Phenomenology and Health Psychology in order to see which sound the contributions that the first field can bring to the consideration of the second research. As methodology, it will be demonstrated some structural concepts of phenomenological science always applying them to research questions in the field of health Psychology by means of a theoretical reflection. The main concepts covered are the phenomenon, phenomenological method, reality, intentionality, phenomenality, truth and health. As conclusion it is possible to observe that a phenomenological research in Health Psychology is characterized by the co-present and committed interaction of the researcher and the participants, thus constructing a relation of alterity of alterities.

Keywords: Health; Phenomenology; Health Psychology.


RESUMEN

Esta reflexión desea promover el diálogo entre la fenomenología y la psicología de la salud con el objetivo de ver quales son las contribuciones que el primer campo puede aportar a la consideración de la segunda área del conocimento. Como metodologia, se presentarán algunos conceptos estructurales de la ciencia fenomenológica siempre acercando-se a ellos a las preguntas de investigación en el área de Psicología de la Salud por medio de un estudio teórico. Los principales conceptos tratados son el fenómeno, el método fenomenológico, la realidad, la intencionalidad, la fenomenalidad, la verdad y de la Salud. Como conclusión es posible observar que una investigación de carácter fenomenológico en Psicología de la Salud se caracteriza por la interacción copresente y comprometida del investigador y de los participantes, construyendo con ello una relación de alteridad de alteridades.

Palabras-clave: Salud; Fenomenologia; Psicología


 

 

INTRODUÇÃO

A área da Saúde, e de modo mais específico, a Psicologia da Saúde, de distintas formas vem se apropriando da Fenomenologia como recurso para pesquisa, alguns exemplos:(Gomes, Paiva, Valdés, Frota & Albuquerque, 2008; Gonçalves, Farinha & Goto, 2016; Faial, Silva, Pereira, Souza, Bessa & Faial, 2017; Yaw, 2015). Frente a isso nos parece pertinente revisitar temas típicos da Psicologia da Saúde, desde uma perspectiva da fenomenologia escola de pensamento fundada no início do século XX por Husserl.

Para construir o seu projeto de ciência Husserl parte do conceito de fenômeno, entendido como uma interação entre o sujeito, que percebe o mundo de maneira ativa, vigilante, ou passiva, não vigilante, em um espaço e tempo determinados, por meio do modo de ser da co-presença, mitgegenwärtigen Estar aí com, (Husserl, 1928/1950) que produz uma percepção pré-objetal do mundo. (Husserl, 1969/2003; Merleau-Ponty, 1933-1934- 1946/2015; 1945/2016).

É por existir um sujeito que se dá a conhecer e um objeto que se volta para o sujeito numa relação interativa e implicativa chamada intencionalidade que se pode dizer algo sobre o real. Não há para a Fenomenologia conhecimento da realidade sem interação. O que permite perceber que não é possível afirmar a existência de um sujeito em si e nem de uma realidade em si. Só há sujeito porque há uma realidade co-presente a ele e vice e versa. Tal paradigma se baseia nas reflexões sobre a lógica da correlação desenvolvidas por Brentano e pela escola de Marburgo (Brentano, 1874/2015; Costa, 2010).

O objetivo desse artigo é entender como a reflexão fenomenológica pode ajudar a pensar algumas questões da pesquisa em Psicologia da Saúde, sejam elas feitas em â mbito clínico, com grupos específicos ou nas pesquisas epidemiológicas.

Para realizar o escopo dessa pesquisa são necessários dois movimentos: o primeiro que buscará esclarecer alguns conceitos fundamentais da Fenomenologia, tais como, fenômeno, inter-esse, intencionalidade, realidade, sempre tendo como foco a contribuição dessa forma de pensar para a pesquisa em Psicologia da Saúde. Esses conceitos serão analisados e pensados a partir da contribuição da reflexão de Husserl (1850/2001), Heidegger (1959-1969/ 2001) e, de maneira pontual, de Lévinas (1947/1986). O segundo movimento pensará os desdobramentos e as implicações contidas nessas aplicações, fazendo com que seja possível pensar os limites e as possibilidades de uma reflexão fenomenológica sobre a pesquisa em Psicologia da Saúde. Não é escopo desse artigo discutir metodologias ou abordagens específicas de determinadas áreas atuantes no campo da Psicologia da Saúde.

 

EXPLICATIO TERMINORUM

A Fenomenologia nasce dentro de um contexto muito específico das discussões lógicas de Husserl quando este buscava estabelecer um modelo de ciência diferente daqueles que se estruturam a partir da lógica de uma adequação direta entre o conceito de verdade e realidade tais como, o empirismo, o positivismo, ou ainda da independência do sujeito em relação ao objeto, a saber, o cartesianismo, o subjetivismo, o idealismo. Comenta Husserl (1952/1996):

De fato, nós esperamos poder explicar claramente, na investigação que se segue, que a lógica anterior, e sobretudo a lógica atual, fundada sobre a Psicologia, sucumbe quase sem exceção aos perigos que nós havemos de indicar, e que o progresso no conhecimento da lógica está fundamentalmente paralisado por esta interpretação errônea dos princípios teóricos e pela confusão de domínios que daí resulta. (p.5)

Husserl percebe que o fato da redução da realidade a modelos diádicos, nos quais sujeito e objeto estão diametralmente opostos e desconectados (Latour, 2001), acabou criando duas impropriedades fundamentais nas quais boa parte da prática científica moderna, se apóia. Por prática científica moderna compreendemos o movimento intelectual cultural que elegeu a ciência como a mathesis universal da medida e da ordem (Foucault, 1966/2016;1969/2014), ou seja, da estrutura formal dentro da qual opera a racionalidade moderna. Essa forma de pensar que se consolidou no Ocidente a partir do século XVI alicerçara-se sobre duas impropriedades como afirma Nietzsche (1886/2009).

A primeira, de que o sujeito pode conhecer, de maneira imediata, evidente e sem resistência, a realidade fazendo dela um objeto submetido a princípios e leis que sejam adequadas às da razão ou do cogito. Um exemplo de modelo que segue essa lógica é o cartesianismo. Á essa maneira de perceber o real Husserl (1928/1950) dá o nome de " Atitude Natural " (p.88), afirmando que existe nessa postura uma ingenuidade. A segunda impropriedade supõe que, entre o conceito de realidade e o conceito de verdade, há uma relação de quididade, resultando que todo dizer sobre algo tem como meta atribuir um caráter de realidade a este algo. O modelo centrado no ego cogito, na relação direta entre realidade e verdade, acabou fazendo do modelo racional de relação diádica sujeito-objeto, um ideal regulativo, para toda a sociedade (Hinkelammert, 1990). Isto impactou na forma como o ser humano se vê e nas práticas de atuação e intervenção daquilo que foi paulatinamente se afirmando como pesquisa.

Ao se observar a práxis da pesquisa, em foro estrito, da pesquisa em Psicologia da Saúde é possível perceber que os princípios científicos modernos da objetividade, causalidade local, determinismo e continuidade (Nicolescu, 1999/2001) ainda se encontram muito presentes tanto no linguajar quanto na prática procedimental. Basta ver, por exemplo, a ênfase que se dá aos protocolos e instrumentos e métodos de pesquisa, a tal ponto de serem estes, juntamente com a comunidade científica, e não o real, a validarem as práticas (Fleck, 1935/2010), ou ainda terminologias ainda presentes, como a de um sujeito posicionado que "vai a campo " pesquisar o objeto, ou ainda, de maneira um pouco mais refinada, que vai "construir um objeto ". Tais fatos permitem ver os modelos representativos nas quais tais atitudes ou metodologias se assentam (Fraassen, 2011; Bennet, 1987; Capra, 1986; Da Costa & De Paiva, 2016).

Na área da Psicologia da Saúde é possível observar algumas reflexões que procuram propor alternativas à racionalidade moderna a partir do alargamento do conceito de Saúde, pensado como um fenômeno Biopsicossocial, ou como afirma o documento da Organização Mundial da Saúde "Saúde é um estado de bem-estar, físico mental e social e não apenas ausência de doença " (Organização Mundial da Saúde [OMS], 1946), ainda que esse conceito seja questionado dentro da reflexão sobre a saúde coletiva, principalmente no que toca ao espaço do "Psico " e do "Social " dentro desse conceito (Mendonça & Camargo, 2016).

Pensando tal realidade, à luz da fenomenologia e da denúncia da existência de uma submissão da realidade a um paradigma no qual há uma adequação do conceito de real ao conceito de verdadeiro é possível notar que a reflexão feita pela Psicologia da Saúde sobre o conceito de Saúde pode ser ajudada se esta for pensada como uma construção de uma coletividade dentro de um vivido que é a própria existência humana, fato esse que na fenomenologia de Husserl receberá o nome de co-presença, mitgegenwärtigen (Husserl, 1928/1950) e na reflexão de Lévinas (1990/2011) de intersubjetividade. Esse conceito também está presente na reflexão da Psicologia Social, com as devidas ressalvas epistemológicas do conceito de "modos de vida " de Rey (2004).

Pensando ainda o paradigma da racionalidade moderna dentro da pesquisa em Psicologia da Saúde, é possível observar que, em muitos casos, essa lógica é traduzida e decantada sob a forma de abordagens estanques que deixam de levar em consideração uma visão holística do ser humano, chegando ao ponto de uma determinada abordagem produzir um resultado pontual e vários efeitos colaterais (Sayd, 1999).

Um exemplo, dentro da reflexão sobre o conceito Saúde são os processos de transformação dos medicamentos ou técnicas de tratamento em objetos ou mercadoria simbólica (Lefèvre, 1991); ou ainda os processos de medicalização de vida que acabam transformando problemas de ordem social, cultural, psíquicos em problemas de ordem médico-farmacológico (Collares & Moyses, 2007). Como por exemplo, o uso de Ritalina, o metilfenidato, da família das anfetaminas, um medicamento de crianças e adultos com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) usado no Brasil como forma de resolver a hiperatividade de crianças com problemas de relacionamento (Silvia, Luzio & Santos, 2012; Bianchi, 2015). É possível observar, ainda, a transformação dos métodos e procedimentos em estruturas formais de submissão do real aos cânones dos testes e instrumentos validados, dos dados estatísticos, ou doutrinas de uma determinada teoria (Mendonça & Camargo, 2016).

A realidade deixou de ser o critério último e passou a ser a variável que deve se adequar (Fleck, 1935/2010). O real, as comunidades, os participantes, as populações se tornaram apenas mais uma variável que deve ser quantificada, ou não, dentro do rigor objetivo do método de pesquisa pré-estabelecido. Isso pode ser percebido em pesquisas que testam novos procedimentos de intervenção social e médica ou ainda, no que toca a indústria farmacológica, quando essa testar novos medicamentos. Nesses casos o objetivo final está em submeter determinada população a um procedimento para verificar se o procedimento em si é bom desconsiderando os efeitos colaterais que estes podem causar nos participantes envolvidos no processo.

É com esse modelo racionalista que produz impactos real na vida das pessoas que Husserl dialoga. Mas como ele busca fugir desse paradigma moderno? Por meio de uma atitude metodológica, cujo objetivo é fazer da Fenomenologia a "ciência fundamental da filosofia " (Husserl, 1928/1950, p.4), partindo dos conceitos de fenômeno, intencionalidade, realidade e natureza. Por fenômeno Husserl entende aquilo que aparece à consciência como resultado de uma percepção-interativa entre seres ou realidades co-presentes (Husserl, 1931/2001).

O fenômeno, portanto, não é apenas um simulacro de determinada coisa, uma impressão ou uma imagem, mas sim, uma marca constitutiva de uma relação que pode ser realizada de maneira racional (ativa/vigilante) ou irracional (passiva/impressiva) (De Castro & Gomes, 2015). Sobre o fenômeno, afirma Husserl: "Nele, não há somente, em geral, um objeto para um ego, mas o ego está, na sua condição de ego, voltado para este objeto pela atenção " (Husserl, 1952/1996, p.26).

O conceito de fenômeno pode ajudar os pesquisadores em Psicologia da Saúde a revisitarem algumas das modalidades de pesquisa, como por exemplo, as pesquisas de caráter hermenêutico, histórico, epidemiológico, que, a partir desse conceito, podem encontrar uma alternativa à separação entre sujeito e objeto.

À luz da reflexão do conceito de co-presença e fenômeno só é possível pensar um sujeito porque este está intencionado e de maneira co-presente à um objeto que lhe é alteridade. O(s) participante(s) da pesquisa, os documentos, laudos, relatórios, formulários são para o pesquisador não apenas fontes de dados, mas sim, fontes de impressões fenomênicas que interagem com ele de maneira direta ou indireta e o modificam, porque lhe oportunizam uma experiência da qual e na qual ele está interessado.

Por interesse (Inter-Esse), entre os seres (Lèvinas, 1947/1986), se entende a estrutura correlacional na qual os membros envolvidos possuem entre si uma relação de iteração autônoma, dentro de um movimento de inter-implicância ou co-envolvimento. Os seres humanos são interessados e co-presentes em determinado espaço e tempo e, devido a isso, é que eles podem estabelecer relações de interação por meio da intencionalidade.

Outra característica da realidade é que ela aparece ao sujeito intencional sob a forma daquilo que oferece resistência (Husserl, 1952/1996). Pensando isso dentro das pesquisas em Psicologia da Saúde podemos perceber que o pesquisador e os participantes da pesquisa, no caso de pesquisas com seres humanos, só podem realizá-la porque ambos estão interessados, isto é, comprometidos de maneira existencial com o fazer da pesquisa.

Por meio do conceito de interesse (Husserl, 1969/2003) é possível perceber que a vinculação entre pesquisador e participante deixa de ser apenas sob o aspecto protocolar, expresso por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e passa a ter um aspecto existencial, pois só há pesquisa, porque há uma realidade dada sob a forma de copresença, interessada e resistente. O fato de a realidade se constituir fundamentalmente como resistência que se dá a conhecer a partir de si mesma, abre à pesquisa em Psicologia da Saúde mais uma possibilidade, pois, à luz desse conceito, aquilo que é construído e observado como conteúdo das pesquisas adquire a nuance de percepção de uma resistência.

Os participantes, os documentos, os dados são expressões daquilo que se configura como alteridade em relação ao sujeito que pesquisa. Cada informação obtida assume a forma de uma leitura de uma resistência e, portanto, não é linear nem evidente, mas interativa, interessada, co-presente. O resistente é aquilo que não pode ser anulado ou acomodado. É aquilo que sobra quando os métodos e técnicas de pesquisa e intervenção deixam de funcionar.

Contudo, poder-se-ia perguntar como se dá a relação entre a realidade que se mostra sob a forma de resistência fenomênica e o sujeito que o percebe? Se a realidade se mostra a partir de si mesma, como garantir um estatuto de cientificidade a esse caminho, impedindo-o de cair em um relativismo ou subjetivismo? Para essas perguntas se encontra, na tradição fenomenológica, o método fenomenológico que se estrutura da seguinte maneira: 1 – emersão do fenômeno e tomada de consciência do sujeito no mundo da vida; 2 – A atitude fenomenológica do sujeito; 3 – A redução eidética ou transcendental; 4 – as sínteses puras da consciência (Husserl, 1931/2001).

Por emersão do fenômeno se entende a parcela do real que se dá a conhecer, a partir de si mesmo, a um sujeito co-presente que se volta para ela de maneira intencional numa relação denominada intencionalidade. A isso Husserl vai dar o nome de conteúdo do vivido (Stein, 2004). Esse conteúdo vem marcado por inúmeras situações secundárias como preconceitos, crenças, impressões, imprecisões, interferências.

Para que os conteúdos que emergiram possam realmente alcançar um estatuto de confiabilidade e segurança, fugindo assim daquilo que Husserl (1928/1950) chamava de atitude natural, faz-se necessária uma tomada de consciência do sujeito que interage com o fenômeno da existência de inúmeros fatores que podem influenciar, contundentemente, a apreensão e compreensão do fenômeno. A essa tomada de consciência Husserl dá o nome de atitude fenomenológica.

Feita essa tomada de consciência, é necessário identificar as influências, os preconceitos e prejuízos, isolá-los e separá-los do fenômeno deixando-lhe apenas a estrutura constitutiva, a que Husserl chama de epoké, redução eidética, ou ainda redução transcendental. Van Manen (1990) aplica o conceito de epoké nas pesquisas em Psicologia por meio da busca pelas essencialidades estruturais do vivido através do retorno a pergunta de pesquisa e ainda por meio da compreensão dos enunciados e temas pressupostos e envolvidos no processo de construção do relato. Sell e Davidson (2004) falando sobre a redução eidética afirmam que o produto dessa deve ser uma narrativa em primeira pessoa na qual o pesquisador se coloca como o interlocutor, mediador, de uma experiência por meio de uma leitura compreensiva do relato, algo semelhante aquilo que Amatuzzi (2001) vai chamar de "versões de sentido ", ou seja, as estruturas de intepretação e interação com o mundo dos participantes da pesquisa e com as impressões sobre a pesquisa produzidas pelo pesquisador. Frente aos conteúdos apresentados acima é possível perguntar: quais os diálogos que são possíveis?

 

PROMOVENDO DIÁLOGOS

O caminho empreendido até aqui vem alertar aos praticantes de Fenomenologia aplicada à pesquisa em Psicologia da Saúde que é importante pensar e fazer uma pesquisa, ou uma intervenção dentro de uma realidade, estando comprometido e interessado com ela. O pesquisador interessado em determinada pesquisa acaba fazendo parte dela e, de maneira consciente ou inconsciente, afetando as suas trajetórias e resultados e sendo afetado pelas mesmas. Ele, ao se voltar para determinada realidade, acaba voltando-se também para as suas próprias formas de perceber o real (Husserl, 1910/1992).

A anamnese, o contexto geográfico-político, as crenças, a maneira de interação do fenômeno com a realidade, a descrição dos procedimentos fenomenológicos da pesquisa, tais como, as variáveis existenciais: o perfil dos participantes, as suas visões de mundo, os elementos não-evidentes são de fundamental importância para o estabelecimento de uma abordagem fenomenológica aplicada à pesquisa em Psicologia da Saúde. Tais elementos também requerem do pesquisador a atitude da vigilância e da copresença ética.

Por vigilância Husserl (1928/1950) entende "a vida mesma da consciência no mundo " (p.89). O sujeito interagindo com a realidade que lhe oferece resistência só pode perceber os fenômenos que delas advêm por meio da intencionalidade, porque está posicionado no modo de ser da vigilância, que poderia também ser expresso como a capacidade que o sujeito tem de estar aberto a receber e produzir impressões. Daí o porquê de fenomenologias, como a de Heidegger, conceberem o modo fundamental da vida do Dasein no mundo como abertura à vida como existência, que faz experiências (Heidegger,1927/2012).

Aplicando isso à proposta da presente reflexão, se pode dizer que, o fato, do pesquisador, consciente (ativamente) ou inconscientemente (passivamente), estar predisposto para determinada realidade da qual lhe é possível receber e produzir impressões faz com que ele diga algo sobre o real. Os laudos, relatórios de pesquisa, capítulo de livros, prontuários são os resultados da vigilância co-presente metodologicamente organizada sobre determinado assunto. Entretanto toda a pesquisa, ainda que seja de caráter histórico, só pode ser feita porque todas as impressões e informações foram presentificadas no vivido daquele que está recebendo as impressões ou, no presente caso, fazendo a pesquisa. Todo o agora traz consigo um contínuo de passados e abre para um contínuo de possibilidades (Husserl, 2001). Pensar dessa maneira traz implicações importantes para a pesquisa em Psicologia da Saúde.

A primeira delas é a consideração de que a pesquisa pensada à luz do método fenomenológico só pode existir a partir da constituição de um horizonte de eventos chamado vivido, no qual tanto o pesquisador quanto o participante estão implicados de maneira constitutiva. Por isso, a indiferença da terceira pessoa presente nas produções científicas, a rigor, talvez devesse ser substituída pelo comprometimento da primeira pessoa do plural, pois a pesquisa é sempre de um "nós " que compreende o pesquisador, os participantes e o possível leitor que, ao entrarem em contato com o fato da pesquisa, fazem uma experiência de construção da própria existência.

Para o pensamento fenomenológico até aqui visto não existe um sujeito destacado no mundo, mas sim, uma pessoa que, estando no mundo e sendo parte do real, é capaz de interagir com ele. Falando sobre a capacidade que o sujeito tem de conhecer a realidade, Heidegger (1927/2012) afirma: "o conhecer é, por conseguinte, um modus fundado do acesso ao real. Este só é essencialmente acessível como ente do-interior-domundo. Todo acesso a tal ente é ontologicamente fundado na constituição-fundamental do dasein, no ser-no-mundo " (p.563).

A segunda observação é que existem estruturas de influência ou de resistência na vivência do pesquisador e do pesquisado as quais influenciam no conteúdo da percepção, de maneira tal que é preciso romper com o paradigma da evidência e permitir que o benefício da dúvida seja a dinâmica que promoverá uma segunda análise dos conteúdos percebidos. Fundamentalmente há uma pesquisa, um pesquisador e um problema de pesquisa, porque existem seres humanos, que estão estabelecidos no mundo por meio de uma interação intencional e co-presente, cuja finalidade é o conhecimento. Sobre isso, pontua Heidegger (1959-1969/2001):

Não é o conhecimento que cria pela primeira vez um ‘commercium’ do sujeito com o mundo e nem este ‘commercium’ surge de uma ação exercida pelo mundo sobre o sujeito. Conhecer, ao contrário, é um modo do Dasein fundado no ser-no-mundo (p. 62).

Esse tema abre um novo horizonte sobre o próprio conceito de Saúde coletiva (Paim & Almeida, 1998; Mendieta, Ramirez & Fuerte, 2015). A partir dos conceitos de copresença, interesse, resistência é possível pensar a pesquisa em Psicologia da Saúde como o espaço de cumprimento de alteridades, o espaço-relação, sempre público, no qual as pessoas se constroem como alteridades de alteridades, dentro de um construto vital, ou mundo da vida que fundamentalmente seja capaz de afirmar e promover a vida (Bernardes & Costa, 2012; Bernardes & Marques, 2016).

A título de exemplo, uma pesquisa feita com uma comunidade tradicional no interior do pantanal brasileiro sobre qualidade de vida dos moradores, apesar de possuir um corte epistemológico com uma população específica, é sempre pública e eticamente comprometida, pois os participantes, o pesquisador e os possíveis leitores desta estarão lidando com uma realidade que é sempre uma alteridade de alteridades. O discurso sobre a alteridade de alteridades (Arendt,1958/2010) pode ajudar ainda no processo de reflexão sobre temas como o da diferença e diversidade.

A consideração de que a realidade humana, e a pesquisa é uma delas, nasce sob a égide de uma pluralidade de diferenças que constitui um espaço, a que se dá o nome de espaço social, ajuda a entender o porque é necessário considerar a diferença, não apenas como um conteúdo lógico-teórico do discurso, mas sim, como a grande possibilidade para o desenvolvimento de uma sociedade na qual todos encontrem o seu espaço (Galvin, 2006), um espaço no qual caibam todos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminho empreendido até aqui possibilitou ver que a contribuição que a Fenomenologia pode dar às pesquisas em Psicologia da Saúde tocam fundamentalmente na afirmação ou na tomada de consciência de como se dão as relações ou interações no mundo da vida e da Saúde, que são os campos de pesquisa da Psicologia da Saúde. A pergunta pelo fenômeno e os seus entornos possibilitou ver que não há produção de conhecimento nem produção de vida sem interações que estão, profundamente, comprometidas e implicadas na construção de um ambiente capaz de permitir ver e fazer ver.

As pesquisas fenomenológicas em Psicologia da Saúde, podem construir para o campo como investigações metódicas que se perguntam pelos rastros de resistências capazes de afirmar e promover a vida. Elas podem ser um dos modelos reflexivos que alertam para realidades ou situações que objetivam e neutralizam essa resistência, transformando a pesquisa em Psicologia da Saúde em instrumentos de mecanização ou descaracterização da vida. Portanto, pensar a Fenomenologia e as pesquisas em Psicologia da Saúde significa estabelecer um discurso e uma reflexão teórica, cujo objetivo último é o de refletir sobre as estruturas do real e sobre a forma de conhecer e validar o conhecimento para que a Saúde possa ser compreendida e produzida como afirmação da vida.

Outra contribuição que essa pesquisa pode trazer é com relação ao papel do pesquisador/escritor da pesquisa. Se ele se dá no mudo como co-presente, interessado e comprometido existencialmente com a pesquisa a escrita científica, fenomenologicamente pensando, deveria se estruturar ou na primeira pessoa do singular ou na primeira do plural. Primeira do singular porque o resultado da escrita da pesquisa se configura como a estruturação linguística metodologicamente organizada de uma experiência existencial traduzida sob a modalidade de pesquisa, e primeira do singular ou plural porque o produto final da pesquisa é o resultado dessa interação como a expressão formal da experiência de ser alteridade de alteridades.

Essa discussão buscou se construir como uma reflexão epistemológica sobre a contribuição que o campo da fenomenologia pode trazer para a reflexão dentro da área da Psicologia da Saúde sob o ponto de vista da pesquisa, portanto, um dos seus limites está no fato de não promover uma discussão sobre os procedimentos ou instrumentos de pesquisa de base fenomenológica, tema esse que abre uma nova possibilidade de pesquisa.

 

Referências

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Notas sobre os autores

Márcio Luis Costa. Graduação em Filosofia (1988), Mestrado (1996) e o Doutorado (2000) em Filosofia na Facultad de Filosofía y Letras da Universidad Nacional Autónoma de México, México, DF. Coordenador do Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia da UCDB

Gilliano José Mazzetto de Castro. Formado em filosofia no ano de 2008 pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. Mestre em Psicologia pela UCDB e Doutorando em Psicologia pela mesma universidade.

 

Recebido em: 26/06/2017
Aprovado em: 03/10/2017

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