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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.4 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2012

 

RESENHAS

 

Mosaico e arqueologia: a literatura israelense contemporânea

 

 

Lyslei Nascimento

Professora de Literatura na Faculdade de Letras da UFMG

 

 

KIRSCHBAUM, Saul; WALDMAN, Berta. (Org.) Ensaios sobre literatura israelense contemporânea. São Paulo: Humanitas, 2011. 252p.

Os textos que compõem a sofisticada coletânea Ensaios sobre literatura israelense contemporânea, organizada por Berta Waldman e Saul Kirschbaum, oferecem ao leitor brasileiro um painel vasto e múltiplo das letras hebraicas atuais. Longe de percorrer um itinerário tradicional em que autores e datas, numa linha hierárquica, são contemplados, os ensaístas delineiam, sobre os mais variados pontos de vista, um leque de abordagens temáticas, escritores e obras que, sem dúvida, pontuam a vida literária israelense da contemporaneidade.

Em "Do estudo aos sabores do Oriente: um ângulo da literatura hebraica contemporânea", Nancy Rozenchan afirma que a ficção hebraica passa por um processo amplo de etnização, com isso, se afasta de códigos universais e se torna, cada vez mais, ficção de segmentos étnicos e outros segmentos mais particularistas. Além disso, ela analisa a produção de obras ficcionais hebraicas cujos autores são jovens religiosos. Essa produção começa com os livros do rabino Haim Sabato. Ele abre, segundo Rozenchan, o caminho para escritores que exercitam uma escrita que não é necessariamente sagrada ou de estudo do pensamento judaico. Alguns desses escritores, como Haim Sabato, Shara Blau, Michael Sheinfeld, dentre outros, tratam da vida religiosa e da vida laica, trazendo interpretações inovadoras sobre a tradição, fazendo surgir, por exemplo, debates importantes sobre o poder, a mulher, a tensão entre mizrahim (judeus "orientais", provenientes de países árabes, do norte da África à Ásia) e asquenazitas (oriundos da Europa) em solo israelense, bem como da complexa recriação de identidades e de transmissão de distintas versões do passado e do presente.

Em seu estudo sobre o romance A caixa preta, de Amós Oz, Gabriel Steinberg chama a atenção para algumas das modificações pelas quais Israel tem passado e que, de uma forma ou de outra, estão presentes na narrativa de Oz. Dentre essas modificações estariam "a busca pela identidade nacional, o confronto entre a direita e a esquerda dentro do sistema político israelense, as concepções dos grupos pacifistas, a atuação da direita israelense e a militância dos grupos nacionalistas, as diferentes ondas imigratórias para Israel antes e após a proclamação da independência e a absorção dos conflitos étnicos entre as diversas comunidades que formam o mosaico social israelense." (p. 105) A análise desse romance não perde de vista a visão crítica do escritor, seu pertencimento à esquerda israelense, bem como sua atuação política. A composição do romance, formado por 51 cartas e 56 telegramas que os protagonistas trocam entre si, colocam em tensão, como em um mosaico, conflitos, resistências, ódios, amores e paixões que, ao transgredirem uma narrativa linear tradicional, põem em evidência, de acordo com Steinberg, as vozes, muitas vezes, fragmentárias, dos seus personagens.

Luís Krausz analisa, em seu ensaio, conceito de desterritorialização na obra de Aharon Appelfeld. Para o crítico, a obra literária do escritor israelense dedica-se, em grande parte, a reconstruir um universo desaparecido da Europa central. Essa reconstrução se daria a partir de um "paciente colecionismo", que "reúne memórias esparsas e encontros esporádicos numa série de romances cujos limites são nebulosos e que constituem, em seu conjunto, uma épica de um mundo desaparecido". (p. 129) Appelfeld, segundo Krausz, contempla ruínas (e as reelabora, magistralmente, na ficção) a partir de um ponto de vista e de um território que lhe são diametralmente opostos: a realidade das primeiras décadas do Estado de Israel. Dessa forma, a ficção de Appelfeld se constituiria numa arqueologia do pós-guerra, em contraponto à agenda ideológica de Israel, que "fazia triunfar uma ideia de ruptura com todo o legado diaspórico, necessária para um renascimento e uma reinvenção do povo judeu" naquele momento.

O ensaio de Juliana Portenoy Schlesinger analisa o primeiro romance de Sayed Kashua, Árabes dançantes, publicado em hebraico em 2002. Os personagens desse romance vivem num país dominado pela guerra e pelo terrorismo, fazendo confluir, para a narrativa, o contexto histórico e político em que vivem os árabes israelenses. Esses árabes, "mesmo sendo desprestigiados e marginalizados dentro de sua nação, integram-se à sociedade israelense e ao seu sistema". (p. 139) Schlesinger, diante dessa avaliação, destaca a importância de não se falar em "identidade, no singular, mas "múltiplas identidades", quando nos referirmos àqueles aspectos que apontam para diversos "pertencimentos simultâneos". O romance de Kashua é considerado, nesse contexto de tensão, "literatura hebraica, pela sua língua de escrita, literatura israelense, pelo seu local de escrita e nacionalidade do escritor, e literatura palestina, devido à ascendência do autor". (p. 148)

O ensaio de Saul Kirschbaum analisa, a partir da metáfora da arqueologia, o romance O sr. Máni, de A. B. Yehoshua. Para o crítico, o leitor é levado a buscar verdades soterradas no passado, sob camadas do tempo, até a modernidade. O sentido final dessa "escavação", seria, portanto, "lançar luz sobre as encruzilhadas, os grandes dilemas em que se encontra o estado fundado em 1948, e que, até esta data, não logrou, entre outros, resolver a questão palestina". (p. 154) A narrativa de Yehoshua, dentro de um contexto histórico e político, é crítica e importante. Entretecendo citações bíblicas à condição atual israelense, Yehoshua apontaria para duas questões emblemáticas: as origens remotas do povo judeu e as grandes questões éticas que emergem da complexa situação do Estado de Israel em sua relação com os palestinos.

"O cão de botas", ensaio de Moacir Amâncio, traz uma requintada abordagem do romance Adam filho de Cão, de Yoram Kaniuk. No romance, Adam, um palhaço judeu alemão, escapa da morte graças a um pacto proposto pelo encarregado de administrar o campo de extermínio onde está recluso: "que viva como um cão, de quatro (judeus não podem se comportar como homens". (p. 172) No extraordinário romance de Kaniuk, o indivíduo torna-se, nessa animalização, fragmento, ou soma instável de fragmentos. O humano ao se destroçar, avalia Amâncio, deixa de resto apenas o animal, revelado em sua fragilidade. Além da animalização, a antropomorfizarão de uma máquina de escrever, que assume a narrativa, é outro ponto crucial do romance. A linguagem gagueja, fisicamente, na grafia não de sentidos, mas de intensidades equivalentes a grunhidos, ranger de dentes ou o abanar de uma cauda que não há, afirma o ensaísta. O texto é, talvez, redigido por um cão. O humano, desse modo, só aparece, como queria Baudrillard, de maneira comovente e misteriosa naqueles que estão privados dele. (p. 181). Ao fazer o homem-cão escrever numa máquina-humana, Kaniuk leva às últimas consequências o limite do humano num tempo de catástrofe. Sua narrativa, seus personagens, a linha do seu texto, espelha essa condição limite e limítrofe.

Berta Waldman, no ensaio "A memória vicária em Ver: amor, de David Grossman" aborda um dos romances mais importantes sobre o Holocausto, na literatura contemporânea. "Como representar o horror, sem traí-lo?" é a grande pergunta que insiste em se fazer presente nesse tipo de narrativa, reflete a ensaísta. A mediação da memória e da reflexão, transformada em escrita, acaba por fazer surgir, pela literatura, um "documento literário". Saindo da alçada dos sobreviventes, a memória do Holocausto, consolida-se, portanto, na ficção. Para Waldman, Grossman faz confluir, em seu romance, a linguagem infantil, juntamente com a poética; a prosa neutra de uma enciclopédia, passando pelo hebraico europeu falado pelos sobreviventes. Essas vozes, entretecidas, compõem a ficção de Grossman que, colocada lado a lado com a história judaica nacional, não trataria a experiência traumática no registro frontal do testemunho, mas sob a forma oblíqua [...] da ficção. (p. 191)

Aos leitores brasileiros, pouca, da rica literatura israelense, está disponível. Aos poucos, aqui e ali, aparecem, em português, pelas mãos competentes de seus tradutores, textos dos autores mais conhecidos: Amós Oz, David Grossman, A. B. Yehoshua. Outros autores, outras obras, esperam, impacientemente, pela tradução. Ensaios sobre literatura israelense contemporânea prepara o leitor para os textos que aqui estão, em nossa língua, e nos prepara para a literatura que está por vir.

 

 

Recebido em: 2/4/2012
Aprovado em: 23/6/2012