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Trivium - Estudos Interdisciplinares
On-line version ISSN 2176-4891
Trivium vol.8 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2016
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2016v1p.96
ARTIGOS LIVRES
Para além dos nove meses: uma reflexão sobre os transtornos alimentares na gestação e puerpério
Beyond nine months: a reflection on eating disorders during pregnancy and puerperium
Monica ViannaI; Junia de VilhenaII
IDoutoranda em Psicologia Clínica pela PUC-RIO. Psicóloga e pesquisadora do Setor de Transtornos Alimentares e Obesidade da Sta. Casa de Misericórdia do RJ. Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social LIPIS da PUC-Rio. viannamonica@hotmail.com
IIPsicanalista. Membro efetivo do CPRJ Dra em Psicologia Clínica. Professora do Programa de Pós- Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social LIPIS da PUC-Rio. Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine, CRPM-Pandora. Université Denis-Diderot Paris VII. Investigadora-Colaboradora do Instituto de Psicologia Cognitiva da Universidade de Coimbra. email@domain_name_here.com, E-mail: email@domain_name_here.com
RESUMO
Discutem-se os Transtornos Alimentares (TAs) durante o ciclo gravídico-puerperal a partir da abordagem do elemento corporal na constituição do aparelho psíquico. As possíveis causas e consequências desses transtornos no psiquismo das gestantes são analisadas á luz da teoria psicanalítica. Partindo do pressuposto que a gravidez é um momento de mudanças significativas nas representações físicas, psíquicas e sociais da mulher, os autores sugerem que os níveis mais profundos do psiquismo e da memória corporal materna são ativados na dinâmica psíquica da mulher grávida.
Palavras-chave: TRANSTORNO ALIMENTAR; GESTAÇÃO; GRAVIDEZ; PSICANÁLISE.
ABSTRACT
This paper discusses the eating disorders that may occur during the pregnancy puerperal period, taking into account the impact that the bodily element has in the constitution of the psychic apparatus. The possible causes and consequences that such disorders have upon the psyche of a pregnant woman are analyzed in the light of psychoanalytic theory. Starting from the assumption that pregnancy is a time of significant change in a woman's physical, psychic and social representations, the authors suggest that the deepest levels of maternal psyche and bodily memory are activated in the dynamic psychic of a pregnant woman.
Keywords: EATING DISORDERS; PREGNANCY; PSYCHOANALYSIS.
Um bebê nunca foi uma mãe, mas toda mãe já foi um dia um bebê, bem ou mal acolhido
D. W. Winnicott
Introdução
A gestação é um período no qual o estado físico e mental materno tem influência direta sobre a saúde da mãe e do feto. À medida que a gravidez evolui e o bebê cresce e se desenvolve, o corpo feminino acompanha, acomoda-se e responde a essa evolução. Durante as 40 semanas de gestação, o corpo da mulher atravessa profundas modificações anatômicas, fisiológicas e bioquímicas. Psiquicamente este período é marcado por experiências de tamanha intensidade que não há como a corporeidade não seja vivida das formas mais variadas possíveis, interessando-nos, particularmente, a incidência de Transtornos Alimentares na gravidez.
As mudanças na alimentação, na forma e no peso corporais, inevitáveis no contexto gestacional, podem desencadear ou exacerbar comportamentos disfuncionais relacionados à comida e ao corpo. Esse quadro leva ao aumento da ansiedade e à preocupação com as dimensões corporais em mulheres gestantes que apresentem ou não histórico de Transtornos Alimentares (TAs).
A presença de um TA na gravidez vem acompanhada de riscos tanto para mãe quanto para o feto, incluindo aumento na incidência de abortos, baixo peso no nascimento, complicações obstétricas, hiperemese gravídica, diabetes gestacional, pré-eclampsia e depressão pós-parto (Bulik et. Al., 2007).
Diversos estudos, como veremos adiante, apontam o período gestacional enquanto fator precipitante para novos casos de TAs, e principalmente como um agente de risco para recaídas em pacientes com esse histórico. A incidência de TAs é estimada entre 3,5 e 7% na população geral e 1% entre gestantes (Micali, Treasure & Simonoff, 2007). Todavia, os dados sobre a prevalência desses transtornos na gestação podem estar subestimados, tendo em vista que as mulheres tendem a esconder o problema por vergonha e/ou medo de julgamentos (inclusive dos profissionais de saúde), dificultando bastante o diagnóstico e o tratamento.
Neste trabalho, pretendemos refletir sobre a presença dos TAs durante o ciclo gestacional e as possíveis consequências desses transtornos no psiquismo das gestantes. Para tanto, abordaremos a gravidez como um momento significativo de transição psíquica, no qual se entrelaçam as questões referentes à gestação atual e às lembranças dos períodos mais arcaícos do desenvolvimento psíquico, onde o corpo, libidinalmente investido, é convocado como cenário originário do Eu. Nesse momento tão singular, a memória corporal reinvestida deixa emergir conflitos com as figuras parentais e outros conteúdos inconscientes.
Para pensar as peculiaridades do psiquismo na gravidez, momento no qual uma crise maturativa mobiliza energia psíquica, gerando ambivalências, favorecendo o surgimento de comportamentos alimentares inadequados e questões com a imagem corporal, buscamos embasamento na teoria psicanalítica e em pesquisas científicas sobre o tema. Além das considerações de Freud sobre o Eu corporal, discutiremos, nesse trabalho, as noções de autoengendramento (Aulagnier, 1999), imagem inconsciente do corpo (Dolto, 1984), Eu-pele (Anzieu, 1988), Transparência Psíquica (Bydlowsky, 2000), assim como as contribuições de Winnicott sobre aimportância dos cuidados maternos mais precoces para a constituição do sujeito e da sua unidade corporal.
Memória Corporal e Desenvolvimento Psíquico
Quando realmente nascemos? Quando podemos falar de nós mesmos enquanto subjetividades individuais? Quais as condições necessárias para que possamos atravessar o percurso que nos conduz de uma condição solipsista para a de uma realidade compartilhada? Como a dimensão biológica, constitucional e a vertente relacional, cultural do ser e do viver humano, se combinam criando os seres singulares que somos?
São muitos os autores que apontam a importância dos primeiros anos de vida para a constituição do aparelho psíquico. Não se pode, contudo, pensar neste período sem uma abordagem do elemento corporal, uma vez que o corpo é a gênese da unidade do eu. No texto sobre o narcisismo, Freud (1914/1977) afirma que os efeitos das primeiras identificações são gerais e duradouras, sendo incorporados como uma identificação primária, anterior a qualquer investimento objetal.
Em 1923, Freud introduz a noção de supereu como herdeiro do Complexo de Édipo, inaugurando a chamada segunda tópica. Para ele, a modificação do eu retém uma posição especial, confrontando-se com outros conteúdos como os ideais. A noção de supereu aparece, então, a partir do desenvolvimento da ideia de identificação secundária, como produto do caráter triangular do Édipo e da bissexualidade, constituindo, assim os ideais do eu. É importante ressaltar que o supereu não é apenas reflexo das primeiras escolhas objetais, podendo representar também uma formação reativa contra tais escolhas.
Há, dessa forma, um paradoxo na constituição do eu, levando em conta o narcisismo, pois aquilo que o eu tem de mais particular provém da identificação com o outro, sendo constituído a partir do outro amado e abandonado. Assim, o eu será objeto de investimentos narcisistas. Partimos do pressuposto básico colocado por Freud (1923/1977) no qual o eu é, desde suas origens, corporal. Na medida em que o eu está intrínsecamente ligado às experiências somáticas, a sua edificação realiza-se a partir das inúmeras interações com o ambiente social, responsável por lhe prover uma matriz simbólica.
Esse eu corporal é constituído pela parte que se diferencia do isso, pelas pulsões (auto-eróticas) dirigidas ao próprio corpo, antecedendo o eu propriamente dito, e que depois se transformam em pulsões narcísicas. Assim, para Freud (1923/1977), o eu é a parte do isso que foi modificada pela influência externa, sendo que não há uma completa fusão, uma vez que ao eu resta uma parte inconsciente e desconhecida, mas que pode ser trazida à tona em momentos específicos, como na gravidez.
No princípio, o bebê não distingue os limites do próprio corpo, confundindo sensações externas e internas. Em relação às sensações internas, Freud (1915/1977), orienta-nos quanto ao caráter constante da pulsão, que é interrompido por sua meta - a satisfação -, atingida das mais variadas formas, à custa, porém, de uma transformação interna, que pressupõe um objeto.
Assim sendo, existe um momento do desenvolvimento em que o plano da experiência domina a cena subjetiva do sujeito, representado pelos estágios pré-genitais e pré-verbais do desenvolvimento individual. Cada indivíduo marca o seu corpo segundo impressões de sua infância precoce. As experiências vividas nessa fase caracterizam-se por não serem rememoradas através da linguagem, tendo em vista que elas foram impressas em um registro sensorial.
Piera Aulagnier (1999), psiquiatra e psicanalista italiana, realiza um interessante trabalho sobre as relações corpo-psique. Para ela, o corpo surge como cenário originário de um personagem muito especial: o Eu. Toda história constrói-se a partir do nascimento de um corpo que é investido libidinalmente, e então a autora apresenta a sua tese do autoengendramento. Enquanto o espaço psíquico e o espaço somático encontram-se indissociáveis, a psique imputa à atividade das zonas sensoriais o poder de engendrar suas experiências e seus próprios movimentos de investimento e de desinvestimento. Ou seja, a realidade interna e externa será autoengendrada pela atividade sensorial. O encontro com o corpo materno é o que fornece condições de elaborar imaginativamente as funções corporais vivenciadas. Isso significa que a unidade corporal é conquistada por meio da presença de um outro que instaura o corpo psíquico (Aulagnier, 1999).
A colocação do aparelho psíquico em vida condiciona-se à atividade dos órgãos de sentido. A vida psíquica encontra na dimensão da experiência sensorial a sua primeira condição de auto apresentar a sua propriedade de organização viva. Aulagnier (1999) sublinha que os primeiros elementos a serem inscritos na psique originária constituem o produto da metabolização das primeiras informações trazidas pela atividade sensorial. Neste início, o objeto ainda não existe psiquicamente a não ser pelo seu único poder de modificar a resposta sensorial-somática. Além disso, a possibilidade de uma zona sensorial transformar-se em zona erógena é atribuída a esse poder dos sentidos de afetar a psique (Aulagnier, 1999). A escrita dos processos psíquicos originários é um pictograma: "única figuração que a psique pode forjar do seu próprio espaço, dos seus próprios experimentados afetivos, das suas próprias produções" (Aulagnier, 1999, p.21). O pictograma é a figuração de um corpo-mundo.
A psicanalista francesa Françoise Dolto (1984), propõe a ideia de uma imagem inconsciente do corpo, que serve de sustentação imaginária para as diversas vivências corporais do indivíduo, visto que é construída através das experiências intercorporais com os objetos relacionais. O mundo do bebê é o mundo carnal feito de percepções e de trocas, como por exemplo, o ato de carregá-lo em corporeidade. Através dos cuidados repetidos dispensados pelo objeto materno, as zonas de comunicação substancial (boca, ânus, etc.) receberão um valor de troca. É a presença do semelhante, midiatizada pelos referenciais sensoriais, que possibilitará a criação de uma imagem inconsciente do corpo, expressão de investimento da libido.
Dolto (1984) diferencia esquema corporal de imagem inconsciente do corpo. O esquema corporal é o identificador do indivíduo como representante da espécie, apresentando-se mais ou menos idêntico em todas as crianças da mesma idade. É o esteio e o intérprete da imagem corpórea. A imagem corporal inconsciente, por outro lado, é individual e singular, já que advém da história pessoal e da relação libidinal marcada por sensações erógenas vividas no encontro com o objeto. Nas palavras da autora, "a imagem do corpo é aquilo em que se inscrevem as experiências relacionais da necessidade e do desejo" (Dolto, 1984, p.23). Em outras palavras, sem um mediador humano, a experiência corporal sensorial institui apenas uma cartografia anatômica ou um esquema corporal; não estrutura, no entanto, a imagem psíquica do corpo enquanto cartografia do desejo.
Anzieu (1988) nos brinda com o conceito de Eu-pele, que corrobora as concepções de Freud, Dolto e Aulagniera respeito do Eu. Sobre isso, declara que "por Eu-pele designo uma representação de que serve o Eu da criança durante fases precoces do seu desenvolvimento para se representar a si mesma como Eu que contém os conteúdos psíquicos, a partir de sua experiência da superfície do corpo"(ANZIEU, 1988, p.61). A instauração do Eu-pele corresponde à necessidade de constituição de um envelope narcísico primário que assegure o bem-estar de base do aparelho psíquico. Se toda atividade psíquica se apoia sobre a função biológica, o funcionamento corporal é transposto para o plano mental, que possibilita a elaboração imaginativa da função.
Anzieu (1988) pensa o Eu-pele apoiado em várias funções da pele, tais como a primeira bolsa que contém e retém em seu interior o bom e o pleno armazenados pelo aleitamento, pelo cuidado e pelo banho de palavras; a pele enquanto interface que demarca o limite com o fora e protege contra agressões; a pele tendo a função de comunicação primária com o meio circundante, propiciando o estabelecimento de relações significantes a partir da superfície de inscrição de traços deixados por tal relação. Além disso, a pele tem a função de sustentação, sendo uma parte do materno introjetado, particularmente as mãos, de modo a manter o psiquismo em estado de unidade, tal qual a mãe assegura, com a finalidade de manter integrado o corpo do seu bebê; e a função de continente, exercida através dos cuidados corporais dispensados à criança pela figura materna.
Assim sendo, o Eu-pele consiste em uma estrutura intermediária do aparelho psíquico. Intermediária estruturalmente entre a inclusão mútua dos psiquismos na organização fusional primitiva e na diferenciação das instâncias psíquicas que correspondem à segunda tópica freudiana: Id, Ego e Superego (Anzieu, 1988). Leboyer, afirma que "é preciso dar atenção a esta pele, nutri-la. Com amor. Mas não com cremes" (Leboyer,1976/1995, p.22).
O corpo aparece, portanto, para além da sua dimensão estritamente biológica, uma vez que fornece a ancoragem para o suporte do psíquico. A relação originária corpo-psique evoca a matriz fundadora do Eu como o corpóreo. Ao se apropriar de um corpo que, anteriormente, foi significado libidinalmente pelo outro, a criança passa a dispor de uma vida imaginativa que lhe possibilita ocupar o vazio da ausência deste outro com a capacidade de sonhar e de, futuramente, simbolizar (Leo& Vilhena, 2010).
Donald Winnicott(1967/1999), pediatra e psicanalista inglês, nos apresenta valiosas contribuições no que tange à importância dos cuidados maternos mais precoces para a constituição do sujeito e da sua unidade corporal. O autor sublinha a importância do movimento da mãe ao ofertar o seu próprio corpo ao bebê, para dessa forma acolher o gesto espontâneo no caminho que leva à constituição do corpo do bebê. Nas palavras de Winnicott: "grande parte do cuidado físico dedicado à criança - segurá-la, manipulá-la fisicamente, banhá-la, alimentá-la e assim por diante - destina-se a facilitar a obtenção, pela criança, de um psiquessoma que viva e trabalhe em harmonia consigo mesmo" (Winnicott,1967/1999, p. 12).
A aquisição de uma unidade psicossomática - a personalização - encontra-se na origem do sentimento de ser real e/ou do fenômeno de realização. A parte psíquica da pessoa ocupa-se das relações intra, extra e trans corporais, sendo o funcionamento psíquico uma decorrência das mais diversas elaborações das funções corporais. Além disso, o corpo seria responsável por arquivar memórias desde os primórdios de seu funcionamento, ligando o passado ao presente e ao futuro (Winnicott,1967/1999).
A base da psique é o soma que lhe é anterior em termos de desenvolvimento. A psique não tem existência alguma fora do cérebro e do seu funcionamento, o que significa que "o corpo vivo, com seus limites, e com um interior e um exterior, é sentido pelo indivíduo como formando o núcleo do self imaginativo" (Winnicott,1949/1978, p. 409) e que, por isso, "tudo o que é físicoé imaginativamente elaborado, investido de uma qualidade de primeira vez" (Winnicott, 1957/1975, p.140).
Esse processo que diz respeito à elaboração imaginativa das funções corporais é fundado numa dimensão outra a qual Winnicott descreve como o campo das experiências corporais próprias da relação de objeto de tipo não orgástico. Ou ainda, o campo da capacidade de relacionamento do eu, capacidade esta que seria correlata à experiência do brincar e que acontece no espaço-tempo potencial.
A Experiência da Maternidade
A partir dessa breve reflexão sobre a constituição subjetiva através do componente corporal, lançamos nosso olhar para o período gestacionale as modificações que ocorrem no campo das representações da mulher. Se, por um lado a mulher elabora as suas representações mentais enquanto mãe, o que logicamente abarca o seu bebe, por outro, é a partir da experiência da maternidade que ela é capaz de modificar representações constituídas ainda durante a sua infância.
Ao falar sobre o vínculo materno infantil, Aulagnier (1999) sublinha o fato de que a experiência da gravidez comporta uma mobilização intensa da economia psíquica da mãe, mesmo quando o bebê se desenvolve bem e é declaradamente desejado. Sem pretender patologizar a maternidade, esta autora comenta que para certas mulheres ter um filho pode vir a representar uma prova psiquicamente perigosa, pelo fato de "re-mobilizar" todo um passado relacional que será revivido inversamente. Isto pode significar ter que reviver os problemas não resolvidos ou mal elaborados na relação com a sua própria mãe. Os quadros clínicos de depressão pós-parto, em graus variados de gravidade (da tristeza à psicose puerperal), confirmam a leitura de Aulagnier sobre esse tema.
Mesmo que a história psíquica da mãe revele a função estruturante dos mecanismos de recalque, sublimação e de assunção da castração (perda da onipotência), continua Aulagnier (1999), um trabalho de luto é mobilizado com o nascimento do neném. Isto porque, qualquer que seja a mãe, o nascimento do bebê nunca corresponde ao que ela idealizadamente espera. A elaboração do processo que compreende a ilusão e a desilusão desta criança idealizada e sonhada, desse "Eu-antecipado" pelo desejo parental, será determinante para a consolidação dos vínculos objetais com o infans e para a constituição de um representante relacional que integra o processo de auto-engendramento corpo-psique no bebê; ou seja, o processo de personalização ou a localização da psique no corpo, nos dizeres de Winnicott.
Para pensar o psiquismo da mulher grávida, a psicanalista francesa Monique Bydlowsky (2000) evoca o conceito de "Transparência Psíquica". Enquanto modalidade particular do psiquismo materno, a Transparência Psíquica reduz a eficiência habitual do recalcamento, o que permite que alguns fragmentos do inconsciente sejam, facilmente, trazidos à consciência. Este estado é marcado por um hiper investimento na história pessoal da gestante e, consequentemente, nos seus conflitos infantis.
O conceito de transparência psíquica tem suas raízes nas formulações metapsicológicas clássicas de regressão e identificação em Freud e de preocupação materna primária em Winnicott. A preocupação materna primária é um estado psicológico especial, no qual a sensibilidade da grávida está exacerbada. Pode ser considerado um estado de retraimento ou até mesmo de dissociação, que é natural no período gestacional, mas não deve perdurar além do necessário. Já a regressão e a identificação são dois aspectos fundamentais no exercício da maternidade, pois é através deles que a mãe será capaz de oferecer no momento apropriado o que o bebê necessita (Bydlowsky 2000).
Bydlowsky (2000) afirma que a transparência psíquica é um fenômeno que se situa no limite entre o intrapsíquico e o intersubjetivo, onde se entrelaçam e relacionam a situação da gestação atual e as lembranças do seu passado. É um estado particular do psiquismo, estado de transparência, no qual fragmentos do pré-consciente e do inconsciente voltam facilmente à consciência, deixando emergir conteúdos e conflitos inconscientes.
Dessa forma, a autora aponta que na gravidez ocorre uma crise psíquica semelhante à crise da adolescência. Estamos falando de dois momentos de transição significativos nos quais o surgimento de transtornos alimentares é frequente. As crises maturativas, características dessas fases, mobilizam energia psíquica, gerando ambivalências, ansiedades e despertando conflitos latentes. Mas, ao mesmo tempo, possibilitam novas formas de posicionamento e engajamento psíquico.
Seguindo esta linha de raciocínio, arriscamo-nos a pensar no tempo da gestação como um intervalo psíquico para a mulher em que ela se encontra suspensa no tempo do outro. O outro que está se criando em seu ventre. Nesta fase, três dimensões se apresentam inexoravelmente: o passado, que ressurge enquanto fantasma; o presente, como um tempo em suspenso; e o futuro, tempo marcado pelas projeções, desejos e temores. Desse modo, o tempo da gestação caracteriza-se na qualidade de um tempo intermediário - entre fantasmas e desejos do passado e as projeções do futuro. Como postulou Winnicott (1967/1999), o corpo seria responsável por arquivar memórias desde os primórdios de seu funcionamento, ligando o passado ao presente e ao futuro, e no período gestacional, as memórias corporais advindas dos processos de constituição subjetiva descritos acima são convocadas, podendo ser resignificadas.
O nosso ponto de vista sugere que mulheres que apresentam psicopatologias alimentares ao longo do momento gestacional buscam na concretude da alimentação e do corpo uma forma de lidar com essas revivências de conteúdos psíquicos arcaicos, exacerbados pela necessidade de reorganização psíquica, social e biológica, características do período gestacional.
Transtornos Alimentares em Gestantes
Bezerra discute a questão do crescente interesse pela ideia de uma subjetividade préverbal em seu trabalho intitulado "O lugar do corpo na experiência do sentido: uma perspectiva pragmática". O autor discute a ideia de uma subjetividade que não se manifesta, necessariamente, no verbal:
Uma das maneiras de compreender isso diz respeito à vontade de não restringir o escopo da experiência humana ao campo das significações partilhadas: não se deveria restringir a vida subjetiva àquilo que é discursivo, enunciável, articulável em palavras. Há muito mais que isso na experiência de um sujeito: afetos, estranhezas, êxtases, compulsões, impulsos e deleites que muitas vezes não se consegue descrever inteiramente em palavras ou frases; há, enfim, toda a variada gama de expressões da vida que indiscutivelmente caracterizam aquilo que chamamos de experiência subjetiva (2001 p.30-31).
O advento da maternidade tem efeitos definitivos sobre a subjetividade feminina. A gravidez é um período que faz parte do processo normal do desenvolvimento, marcado por mudanças somáticas, psíquicas e sociais. Enfatizamos que é no ciclo gravídico-puerperal que ocorre um retorno das memórias corporais que se constituíram nos períodos mais precoces do desenvolvimento psíquico (relação mãe-bebê). Isso significa que conflitos com as figuras parentais há muito esquecidos são reativados, fomentando a importância da qualidade do vínculo da grávida com seus genitores e, em particular, com sua própria mãe. Em outras palavras, a gravidez é o reflexo de toda a vida da mulher anterior à concepção, e um dos processos que se desenvolve com maior intensidade nesse período é o ressurgimento de fragmentos da relação com sua própria mãe.
A vida pré-natal, intra-útero, pressupõe uma continuidade entre os acontecimentos da vida intra-uterina e pós-nascimento, conforme afirma o próprio Freud (1926/1977): "Há muito mais continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do ato do nascimento nos teria feito acreditar" (p.137). Hoje, com o avanço da biotecnologia, a primeira foto do álbum do bebê retrata sua vida dentro da "barriga da mamãe". Através da ultra-sonografia avançada ele pode ser conhecido e admirado muito antes de nascer para o mundo. Esta experiência comunicativa primitiva torna possível o reconhecimento da voz materna já a partir do nascimento, através de sua aprendizagem das características prosódicas identificadoras no útero.
Na gravidez, inaugura-se a experiência de um encontro íntimo da mulher com ela mesma. Durante a gestação, aos poucos, o corpo da mulher sofre alterações e, paralelamente, ocorrem transformações no seu psiquismo. As experiências corporais da mãe e as mudanças físicas que se passam durante a gravidez são indissociáveis das suas experiências psíquicas, assim como ocorre com o bebê. As gestantes estabelecem uma relação direta e evidente entre a situação da gestação atual e as lembranças do seu passado mais arcaico.
Constatamos, com isso, que se tornar mãe é reencontrar sua própria mãe. Winnicott brinda-nos com belas palavras acerca deste momento:"a mãe também já foi um bebê e traz com ela as lembranças de te-lo sido; tem igualmente recordações de que alguém cuidou dela e essas lembranças tanto podem ajudá-la quanto atrapalhá-la em sua própria experiência como mãe" (Winnicott, 1966/2006, p.4). Registros sensoriais precoces permanecem presentes e retornam como memórias de um tempo que a psicanalista Ivanise Fontes (2002) chamou de "tempo do sensível".
Segundo a autora, a sensação é a raiz do psiquismo, e o "tempo do sensível" seria exatamente aquele tempo em que registros sensoriais se fazem previamente à aquisição da linguagem. A partir dessas primeiras sensacões, se fundamenta nossa memória corporal. Assim como o bebê, a grávida também precisa do tempo da gestação para constituir-se na qualidade de mãe, numa reedição do "tempo do sensível".Nesta etapa, faz-senecessário possibilitar a criação de um espaço psíquico materno constitutivo de um suporte no qual o bebê possa desenvolver-se enquanto um ser subjetivado.
Diversos estudos apontam o período gestacional como um possível agente precipitante para novos casos de TA, e principalmente como uma condição de risco para recaídas em pacientes com histórico da doença (Tiller&Treasure, 1998; Micali, Treasure e Simonoff, 2007). Os TAs apresentam etiologia multifatorial, constituída por predisposições genéticas, socioculturais, além de vulnerabilidades biológicas, psicológicas e familiares. Esses diferentes aspectos interagem de modo complexo, produzindo, e em muitos casos, perpetuando a doença.
Podemos pensar que a ativação dos níveis mais profundos do psiquismo materno - que remete ao "tempo do sensível" (Fontes, 2002) e às memórias corporais da gestante, associados às mudanças na alimentação, na forma e peso corporal, concatenados com a grande pressão social de um ideal de beleza magro, podem desencadear ou exacerbar comportamentos disfuncionais relacionados à comida e ao corpo, suscitando, dessa forma, o surgimento ou retorno dos TAs.
O aumento da incidência e da preocupação com os TAs durante a gestação levou à criação de um termo para designar esse tipo de transtorno: pregorexia. O termo pregorexia deriva da mistura das palavras 'pregnancy', que significa gravidez em inglês, e 'orexia', de orexis, que significa apetite. Apesar de ser utilizado pela mídia, pela população e até mesmo por alguns médicos, esse termo não é formalmente reconhecido paradiagnóstico e pesquisas científicas.
Os principais TAs descritos no DSM-V (sigla em inglês para Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) são: Anorexia Nervosa (AN), Bulimia Nervosa (BN), Transtornos da Compulsão Alimentar Periódica (TCAP) e Outros Transtornos Alimentares Não Especificados (TANE). Em todos, encontramos uma preocupação exagerada com o peso e a forma corporal, auto-avaliação centrada no corpo, e em muitos casos distorção da imagem corporal. O valor e a autoestima estão completamente vinculados com o peso corpóreo. Por isso, vivenciar as mudanças corporais da gestação se torna muito difícil e assustador.
Enquanto as anoréxicas restringem a alimentação através de dietas rigorosas e jejuns, as pacientes com TCAP apresentam episódios recorrentes de compulsão alimentar. Essa compulsão também está presente na Bulimia Nervosa, mas nesse caso vem acompanhada de métodos compensatórios com o objetivo específico de evitar o ganho de peso, como vômitos auto induzidos, uso indevido de laxantes, diuréticos e exercícios físicos excessivos. É importante saber diferenciar a compulsão alimentar de eventuais exageros alimentares e do aumento no apetite relatado por algumas gestantes.
Um episódio de compulsão alimentar é caracterizado por ambos os seguintes critérios: 1. ingestão, em um período limitado de tempo (por exemplo, dentro de um período de duas horas), de uma quantidade de alimentos definitivamente maior do que a maioria das pessoas consumiria em um período similar, sob circunstâncias similares; 2. sentimento de falta de controle sobre o episódio (por exemplo, sentimento de não conseguir parar ou controlar o que ou quanto se come).
Além disso, esses episódios podem vir acompanhados de alguns dos seguintes comportamentos: comer mais rapidamente do que o normal; comer até sentir-se incomodamente repleto; comer grandes quantidades de alimentos mesmo quando não está fisicamente faminto; comer sozinho por embaraço devido à forma e quantidade de alimentos que consome; e sentir repulsa de si mesmo, depressão ou demasiada culpa após comer excessivamente. Por meio desses critérios, se torna mais fácil diferenciar a compulsão alimentar do aumento no apetite relatado por algumas gestantes e dos exageros aos quais estamos sujeitos, principalmente em ocasiões onde temos grande oferta de comida palatável.
Todos os comportamentos alimentares disfuncionais característicos dos TAs que citamos anteriormente afetam de forma negativa o desenvolvimento fetal e colocam as gestantes em um ciclo vicioso de insatisfação, angústia, culpa e vergonha. Devido aos sentimentos mencionados acima, os sintomas costumam ser mantidos escondidos, inclusive dos profissionais de saúde e da família.
Dentro do atual contexto histórico e cultural, assim como nos transtornos alimentares, o corpo se destaca como lugar privilegiado de investimento. Maria Helena Fernandes (2005) utiliza o termo "hipocondria da imagem" para falar da exagerada preocupação com a imagem corporal. A autora chama atenção para supervalorização e o excesso de cuidados dispensados ao corpo atualmente. Em nenhuma outra época, o corpo magro esteve em evidência como nos dias atuais, nem foi tão vinculado ao sentido de corpo ideal.
A idealização da magreza pode levar a uma preocupação excessiva com o ganho de peso durante a gravidez, além de uma cobrança para que se perca peso rapidamente após o nascimento do bebê. Não faltam exemplos desses fenômenos na mídia e nas redes sociais, sejam nas fotos de atrizes e modelos que voltaram ao peso pré-gestacional semanas após o parto ou nas imagens das "grávidas fitness" que mantém a musculatura do abdômen definida ao longo dos nove meses de gestação. A preocupação em apagar as marcar corporais da gravidez é tão imperativa que nos EUA chegaram ao ponto de desenvolver uma nova prática de cirurgia plástica para grávidas chamada de Mommy Makeover. O procedimento consiste em uma cirurgia plástica tripla de abdômen, seios, lipoaspiração (podendo acrescentar um rejuvenescimento genital), com duração de dez horas, que pode ser feita logo após o parto ou após três semanas de ter dado à luz.
A experiência da maternidade, assim como a vivência de um transtorno alimentar, varia imensamente dependendo de cada pessoa, mas alguns dados encontrados em estudos qualitativos e/ou quantitativos são interessantes para ilustrar o que apresentamos teoricamente até aqui. Em um estudo realizado em Israel por Tuval-Mashiach et al. (2013), foram selecionadas 13 mães internadas em uma clínica de tratamento para TAs, sendo que 3 delas tinham diagnóstico de BN, 4 de AN e 6 de TANE. O foco dos encontros foram tópicos relacionados à maternidade e aos transtornos alimentares, e as participantes (divididas em dois grupos que se reuniram 10 vezes cada) eram encorajadas a participar ativamente.
As mães identificaram vários desafios relacionados àvivência da gravidez e maternidade com um TA. Uma das preocupações que mereceu maior destaque foi o impacto negativo que o comportamento alimentar disfuncional das mães poderia ter sobre os seus filhos. Apontaram, também, que experimentar a maternidade juntamente com um TA envolvia grande desgaste emocional, mas conseguiram articular aspectos positivos dessa experiência, como o incremento da motivação para buscar tratamento como consequência direta do desejo de se tornarem bons exemplos para os filhos.
Um aspecto negativo citado foi o sentimento de inadequação ao papel de mãe. Corroborando com o que apresentamos teoricamente, essa inadequação foi associada diretamente às suas experiências com as suas próprias mães, com sua infância e com a tentativa intencional de não seguir o modelo das mães. Segundo os autores, o estudo revela como é difícil e complexo para essas mulheres administrarem os diferentes aspectos da sua identidade e destacam que a psicoterapia pode ajudar as futuras mães a desenvolver e se apropriar de estratégias para lidar com a culpa em relação à criação dos filhos e às questões reminiscentes com suas mães. Existem muitos estigmas associados aos TAs durante a gravidez, entãomuitas mulheres não admitem esses comportamentos já que são vistos pelo senso comum como frutos de vaidade e egoísmo. Esse rechaço ao tema tem implicações negativas na compreensão, detecção e tratamento da doença.
Em outro estudo, realizado em Londres (Tierney et. al., 2010), com 12.254 mulheres grávidas, mais de 4% relataram ter sofrido ou ainda sofrer de algum TA. O estudo pesquisou como essas mulheres com TA ou histórico de TA experimentaram a gravidez e o início da maternidade. Foram entrevistadas oito mulheres, entre 17 e 37 anos acerca de suas experiências durante a gravidez e (quando possível) na maternidade. Todas tinham algum TA antes da gravidez, exceto uma, que o desenvolveu na própria gravidez.
Os autores identificaram um conflito entre colocar os cuidados com o bebê em primeiro lugar e conviver com as demandas emocionais e comportamentais dos TAs. A amamentação foi destacada como a área em que as mães se sentiam mais inadequadas. Muitas delas não foram sinceras com seus parceiros sobre seus comportamentos alimentares durante a gravidez, pois temiam decepcioná-los. Algumas participantes evitaram socializar com outras mães por causa das conversas sobre ganho de peso e alimentação. Outra grande preocupação era o julgamento alheio de suas necessidades compulsivas e da maneira como lidavam com a alimentação e o corpo.
Algumas odiaram as mudanças corporais eminentes à gestação, pois sentiam-se gordas, enquanto outras conseguiam se sentir bem com seus corpos (cabe sublinhar que essa aceitação do corpo só era possível depois do crescimento da barriga, quando a gravidez se tornava óbvia, pois antes disso, elas relataram medo de aparentar estar apenas engordando). As dificuldades simbólicas de interpretar suas sensações e emoções são comuns nos casos de TA, e é possível que o crescimento da barriga com sua concretude física proporcione algum conforto emocional para essas pacientes.
A preocupação com a possibilidade dos filhos desenvolverem comportamentos obsessivos em relação à comida estava presente, e também foi relatado um grande temor deles se tornarem obesos. O peso dos filhos foi considerado um marcador privilegiado do sucesso materno. O controle e o perfeccionismo são muito frequentes nos TAs, especialmente na AN, podendo se estender para os cuidados maternos e levar à percepção dos corpos dos filhos como continuação dos seus próprios corpos, e as mudanças corporais e comportamentos alimentares das crianças como indicativos de seu próprio autocontrole, numa espécie de projeção do próprio transtorno na criança.
TAs são poderosos moduladores e supressores de emoções, as participantes relataram que lutaram contra a ansiedade e a depressão ao longo de suas vidas. Infelizmente, o humor depressivo persistiu em algumas delas durante a gravidez e até depois do nascimento dos bebês. Algumas mulheres relataram usar exercícios físicos extenuantes como reguladores das emoções negativas durante a gravidez, enquanto outras recorreram à compulsão alimentar e vômitos auto induzidos com a mesma finalidade.
Essas participantes que utilizavam comportamentos compensatórios inadequados para prevenir o ganho de peso, relataram sentirem-se culpadas pelas possíveis consequências de seu comportamento no feto, mas em contrapartida esse comportamento trazia um alívio imediato para a angústia gerada pelas mudanças corporais e psíquicas advindas da gestação. Por fim, os autores sugerem a existência de três categorias de mães com TAs: as incapazes de cessar seus comportamentos alimentares disfuncionais e perigosos durante a gravidez; as que são capazes de interromper temporariamente esses comportamentos durante a gravidez, mas são vulneráveis à recaídas após o parto; e as que abandonam seu controle alimentar e corporal durante a gravidez e conseguem manter essa mudança após o parto.
Essa divisão nos leva a pensar que a gravidez de uma mulher com transtorno alimentar não é impreterivelmente uma condenação em última instância(sem chances de recursos) do agravamento dos sintomas alimentares, pelo contrário, podemos pensar que esse período privilegiado para reativação da memória corporal e revivência dos vestígios psíquicos das relações parentais mais precoces também pode ser um período potencial para elaborações e reorganização de conflitos psíquicos que estavam ancorados no corpo, sem uma representação simbólica possível.
O tratamento mais indicado nesses casos deve ser realizado com equipe multidisciplinar, especializada em TAs, composta por psicólogo, nutricionista, psiquiatra, endocrinologista, entre outros. Todavia, na maioria das vezes, o tratamento só será possível se houver um olhar atento e cuidadoso dos profissionais de saúde e dos familiares para identificar os sintomas desses transtornos e oferecer ajuda as gestantes, sem preconceito nem pré-julgamento.
Conclusão
No Brasil, os estudos relacionados aos TAs na gravidez são escassos, consequentemente, os profissionais de saúde que trabalham com gestantes possuem poucas informações para identificar e tratar o problema. As pacientes costumam ocultar seus sintomas devido à vergonha e/ou culpa, por isso, se faz ainda mais importante estar atento à sinais como: ausência de ganho de peso ou ganho de peso inadequado ao longo dos meses gestacionais; compulsão alimentar frequente com sensação de perda de controle (identificar essa sensação é importante, pois muitas gestantes podem ter mais fome e por isso comer mais devido à própria gravidez); vômitos muito frequentes e auto induzidos por medo de ganhar peso; exercícios fisicos extenuantes, preocupação exagerada com a forma corporal, entre outros.
Identificar comportamentos alimentares inadequados em gestantes é fundamental para prevenir complicações no período pré-natal e após o parto. O acompanhamento dessas pacientes por equipe multidisciplinar é apontado por pesquisadores como fundamental para trabalhar as questões psíquicas e nutricionais dessa combinação perigosa que pode gerar sequelas físicas e emocionais, além de grande sofrimento para as futuras mães.
A existência de um TA durante a gravidez está diretamente associada ao aumento do risco de complicações no parto e pode ter um impacto negativo na saúde e desenvolvimento do bebê, sem contar as consequências físicas e emocionais na própria gestante. A gravidez é um evento particular no contexto dos TAs, posto que muitas mulheres desejam ter uma alimentação saudável quando engravidam, mas o aumento do peso e alterações na forma física durante a gestação, associados ao medo de engordar e à idealização da magreza na sociedade contemporânea, podem influenciar algumas delas a se engajar em dietas inadequadas e restritivas, e/ou episódios de compulsão alimentar e uso indevido de metódos compensatórios.
A experiência de gerar e ter um filho representa um grande acontecimento na vida emocional da mulher. Vejamos algumas das muitas transformações às quais ela está sujeita: novas introjeções; novas identificações; necessidade da elaboração do luto pela perda de sua identidade anterior e do bebê em seu interior (evocando as separações e perdas vividas anteriormente); resignificação de sua imagem inconsciente do corpo e de seu esquema corporal; adaptação ativa ao bebê ao mesmo tempo em que se encontra num estado particularmente regredido e, portanto, vulnerável, necessitando ela também de cuidados; reedição de suas vivências mais primitivas na relação com sua própria mãe.
Há o desejo pelo filho, a alegria de acolhê-lo nos braços, amamentá-lo, beijá-lo, mas há também o medo, a insegurança, certo humor deprimido e o vislumbrar de um futuro incerto: As angústias convivem lado a lado com a euforia, Como suportar o paradoxo presente neste começar de uma nova vida?
As transformações vividas pelas gestantes não modificam apenas as referências no que diz respeito às representações que elas têm de si mesmas, mas também aquelas vinculadas às modalidades relacionais. Na dinâmica psíquica particular da gravidez, são ativados os níveis mais profundos do psiquismo e da memória corporal materna. Um bom exemplo desse resgate corporal são as sensações corporais de náuseas e sono excessivo, que evidenciam a forte conexão entre corpo e mente nesta fase. Além disso, ocorre um retorno às vivências psíquicas mais precoces, principalmente aquelas ligadas à relação com os pais.
No presente artigo, propusemos que na gravidez, através de fenômenos como a transparência psíquica e o retorno ao "tempo do sensível", o corpo somático convoca o corpo libidinal, que é palco da inscrição de conflitos relacionados à sexualidade e à feminilidade. Nesse contexto, a presença de um TA poderia ser pensada como uma tentativa de lidar com a revivência de falhas na erogeneidade decorrentes das vicissitudes das primeiras relações.
Segundo Aulagnier (1999) o bebê pode vir a reativar determinadas representações na psique da mãe (ou dos pais) o que significa considerar a hipótese de que ela tenderá a instaurar com o seu bebê, interações tais que reproduzam os mesmos esquemas relacionais vivenciados por ela no começo da vida.
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Recebido em: 22/08/2015
Aprovado em: 02/11/2015