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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.10 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2018

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2018v2p.140 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

O discurso capitalista e seus gadgets*

 

The capitalist discourse and its gadgets

 

El discurso capitalista y sus gadgets

 

 

Rayssa BadinI; Maria Helena MartinhoII

IPsicóloga Clínica pela Universidade Veiga de Almeida
IIPsicanalista. Doutora e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do IP/UERJ. Professora e Supervisora Clínica do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC-Rio de Janeiro. Endereço: Rua Gildásio Amado 55/909 - Barra da Tijuca. Telefone: (21) 999253636. E-mail: mhmartinho@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este texto propõe-se tomar as proposições lacanianas sobre o discurso capitalista para interrogar: que lugar o sujeito contemporâneo ocupa neste discurso? Que efeitos esse discurso provoca no sujeito? Na expectativa de tentar responder a essas questões, o estudo busca fundamentos teóricos nas obras de Freud e de Lacan. O discurso capitalista é apresentado como um deslizamento do discurso do mestre, como um discurso que não faz laço social, foraclui a castração. Seu matema evidencia como os dois imperativos de gozo - "produza!" e "consuma!" - operam nesse discurso, e destaca os efeitos que provocam no sujeito consumidor.

Palavras-chave: DISCURSOS; CAPITALISMO; GADGETS; CASTRAÇÃO; GOZO.


ABSTRACT

This text proposes to take the Lacanian propositions about the capitalist discourse to interrogate: what place does the contemporary subject occupy in this discourse? What effects does this discourse have on the subject? In the expectation of trying to answer these questions, the study seeks theoretical foundations in the works of Freud and Lacan. Capitalist discourse is presented as a slip of the master's discourse, as a discourse that does not make social ties, forcows castration. His matema shows how the two imperatives of enjoyment - "produce!" And "consume!" - operate in this discourse, and highlights the effects they elicit in the consumer subject.

Keywords: SPEECHES; CAPITALISM; GADGETS; CASTRATION; ENJOYMENT.


RESUMEN

Este texto se propone a tomar las proposiciones lacanianas sobre el discurso capitalista para interrogar: ¿qué lugar ocupa el sujeto contemporáneo en este discurso? ¿Qué efectos ese discurso provoca en el sujeto? En la expectativa de intentar responder a estas cuestiones, el estudio busca fundamentos teóricos en las obras de Freud y de Lacan. El discurso capitalista es presentado como un deslizamiento del discurso del maestro, como un discurso que no hace lazo social, forcluye la castración. Su matema evidencia como los dos imperativos de goce - "¡produzca!" y "¡consuma!" - operan en ese discurso, y destaca los efectos que provocan en el sujeto consumidor.

Palabras claves: DISCURSOS; CAPITALISMO; GADGETS; CASTRACIÓN; GOZO.


 

 

Introdução

Este texto propõe-se tomar as proposições lacanianas sobre o discurso do capitalista para interrogar: que lugar o sujeito contemporâneo ocupa nesse discurso? Que efeitos esse discurso provoca no sujeito? Na expectativa de tentar responder a essas questões, o estudo busca fundamentos teóricos nas obras de Freud e Lacan. Nosso interesse em pesquisar sobre esse tema decorre da observação de que os gadgets1 produzidos pelo discurso capitalista são oferecidos aos sujeitos como uma promessa de felicidade plena, provocando, assim, um consumo avassalador na sociedade contemporânea.

Verifica-se que, na contemporaneidade, os sujeitos se utilizam do consumo como uma tentativa de dar conta de um vazio, de uma falta, da castração. Desde o final do século XIX, contudo, Freud já nos havia ensinado que a falta, a castração, inerente ao ser humano, é impossível de ser preenchida.

Em meados do século XX, Lacan ratificou a teoria de Freud ao observar que, por nascermos na linguagem, já nascemos faltosos, castrados, pois a própria linguagem tem furos, deixa brechas, não se pode dizer tudo. Enquanto a psicanálise de Freud e Lacan defende a tese de que a falta humana é impossível de ser preenchida, o discurso capitalista, ao contrário, munido de seus gadgets, segue numa direção oposta, desconsidera as proposições da psicanálise e assegura a possibilidade de tamponar a castração, sustentando assim, uma promessa de felicidade. O sujeito, na ilusão de existir a possibilidade de completude, banhado pelo mal-estar próprio da castração, vê-se seduzido por esse discurso, na crença de que a castração será dissipada, tamponada por seus objetos de consumo. Daí, pode-se observar que o que entra em cena é uma busca insaciada, infinita por esses gadgets.

Para melhor compreender o lugar que o sujeito contemporâneo ocupa no discurso capitalista e os efeitos que esse discurso provoca no sujeito, tomaremos três textos fundamentais da obra de Freud relacionados ao tema - "Prefácio à juventude desorientada de Aichhorn" (1925), "O mal-estar na cultura" (1930) e "Análise terminável e interminável" (1937). Os postulados destes textos nos servirão como base para apresentar os quatro discursos, explanados por Lacan em OSeminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970); assim como, o discurso capitalista, apresentado por Lacan na "Conferência de Milão", proferida em 1972.

 

O mal-estar: as três fontes do sofrimento humano

Em "O mal-estar na cultura" (1930), Freud observa que, se perguntássemos a qualquer pessoa sobre a finalidade da vida, certamente ela responderia: o propósito da vida é a felicidade. De fato, o que todo ser humano espera da vida é, sem sombra de dúvida, ser feliz. O homem quer tornar-se feliz e assim permanecer. Essa aspiração tem dois lados: por um lado, a ausência de dor e desprazer; por outro, a vivência de sensações intensas de prazer. O que estabelece a finalidade da vida é o princípio do prazer. Esse princípio comanda o funcionamento do aparelho psíquico desde o início, mas ele é absolutamente irrealizável, todas as disposições do universo o contrariam. Freud observa que o que é chamado de felicidade "surge antes da súbita satisfação de necessidade represadas em alto grau e, segundo sua natureza, é possível apenas como fenômeno episódico" (Freud, 1930 [1929]/1992, p. 76, tradução nossa).

Nesse premiado texto, fundamental para o nosso estudo, Freud aponta a razão pela qual essa felicidade plena, tão almejada pelo homem é impossível de ser alcançada. Ele postula que essa impossibilidade decorre do fato de que o ser humano é, desde o nascimento e até a morte, um ser desamparado, imerso em um mundo que lhe confronta com dores e horrores, mas apesar disso, ele não se cansa de buscar a felicidade. Freud descobre que o sofrimento humano provém de três principais fontes: o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos corpos e a deficiência das disposições que regulam os relacionamentos na família, no Estado e na sociedade.

Quanto às duas primeiras fontes, Freud verifica que somos forçados a reconhecê-las e a nos resignarmos com a sua inevitabilidade. Ao longo das últimas gerações, os homens fizeram progressos extraordinários nas ciências naturais e médicas, assim como nas suas aplicações técnicas, mas os avanços das ciências médicas e naturais não eleva o grau de satisfação que a humanidade espera da vida. Jamais dominaremos completamente a natureza e o nosso organismo, que também faz parte dessa natureza e que sempre será uma formação transitória, limitada em sua adaptação e em seu funcionamento.

Freud verifica que a terceira fonte de sofrimento, a principal, aquela que pode ser considerada como a maior fonte de sofrimento, está vinculada aos relacionamentos humanos. E ilustra isto enunciando a famosa frase "o homem é o lobo do homem" [homo homini lupus], extraída do livro de Thomas Hobbes, intitulado, Do cidadão (1642). Qual a visada de Freud a destacar esse aforismo? O próximo, transformado em objeto, é alguém em quem se tenta satisfazer a própria agressividade, abusando dele sexualmente, humilhando-o, causando-lhe sofrimento, torturando-o, matando-o. O próximo é, portanto, objeto da pulsão de morte.

[...] o próximo não é apenas um possível ajudante e um possível objeto sexual, mas também uma tentação para se satisfazer nele a agressão, explorar sua força de trabalho sem recompensá-lo, usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apropriar-se de seus bens, humilhá-lo, causar-lhe dor, torturá-lo e matá-lo (Freud, 1930 [1929]/1992, p. 138, tradução nossa)

Freud faz-nos enxergar que estar inserido na cultura significa viver em constante mal-estar. A vida é árdua, traz dores, desilusões e, para suportá-la, o ser humano busca satisfações substitutivas, como a arte por exemplo. Os entorpecentes também proporcionam sensações imediatas de prazer. Freud observa, contudo, que tais formas de proteção são tarefas impossíveis, justamente porque estas, além de não cumprirem a sua função de proteger o homem contra o desamparo fundamental, também não garantem a felicidade: "não oferecem uma couraça impenetrável contra as setas do destino, e costumam fracassar quando o próprio corpo se torna a fonte do sofrimento" (Freud, 1930 [1929]/1992, p. 85, tradução nossa).

Cinco anos antes de publicar seu premiado texto "O mal-estar na cultura" (1930) - no qual mencionou as tarefas impossíveis para obter felicidade -, Freud já havia mencionado em outro importante texto de 1925, intitulado "Prefácio à juventude desorientada de Aichhorn" (1925), que havia, na humanidade, três profissões impossíveis. Nesse estudo, afirma: "Eu aceitei o bon mot que estabelece existirem três profissões impossíveis: educar, governar e curar" (Freud, 1925/1979 p. 354, tradução nossa). Mais tarde, em "Análise terminável e interminável" (1937), Freud volta a abordar esse tema e substitui o termo "curar", mencionado em 1925, pelo termo "analisar", esclarecendo que a análise é a terceira profissão impossível, faz série com as duas outras: educar e governar.

Quarenta e quatro anos depois, em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970/1992), Lacan retoma as três profissões impossíveis mencionadas por Freud e acrescenta uma quarta profissão impossível: fazer desejar. Em seguida, articula os ensinamentos de Freud à tese sobre os quatro discursos que fazem laço social e observa que educar constitui o discurso do universitário, governar corresponde ao discurso do mestre, analisar ao discurso do analista e fazer desejar ao discurso da histérica. O discurso como laço social é um modo de aparelhar o gozo com a linguagem, na medida em que o processo civilizatório exige do sujeito uma renúncia pulsional no estabelecimento das relações. Dito de outra forma, todo laço social implica um enquadramento da pulsão e resulta em perda de gozo. Todo discurso é, portanto, um aparelho de gozo (Martinho, 2002).

Neste seminário, Lacan apresenta os elementos que compõem os discursos: S1, S2, a, $. S1 é o significante-mestre, significante que apresenta o poder. Constitui uma referência singular para o sujeito. O S1 deve ser visto como interveniente. S1 intervém no campo já constituído de outros significantes, uma vez que eles já se articulam entre si como tais, faz com que surja o $ (sujeito barrado); S2 é o saber, a bateria dos significantes integrantes de uma rede de saber; o saber do Outro. É o conjunto faltoso dos significantes do campo do Outro e designa todos os outros significantes que não possuem valor de S1 para o sujeito; do trajeto de intervenção do S1 é acentuado o surgimento de algo definido como uma perda é, a ela que se refere o objeto a, definido no campo do gozo como mais-de-gozar. Como perda, refere-se a uma tentativa de nomear o gozo que fracassa, algo do gozo que excede e, ao mesmo tempo, não é contabilizado (Lacan, 1969-1970/1992). Esses elementos se organizam articulados em quatro lugares designados: agente, outro, produção e verdade. Estes quatro lugares são fixos, podendo ser ocupados por qualquer um dos elementos.

 

 

O agente (dominante) organiza a produção discursiva, domina o laço social, é o que movimenta o discurso. O outro (dominado) é aquele a quem o discurso se dirige; é necessário à execução, precisa do agente para se constituir. A produção é o efeito do discurso. A verdade sustenta o discurso, é o lugar necessário para ordenar a função da fala. Alinhando os elementos às posições mencionadas e distinguidos por um quarto de giro, têm-se, então, os quatro discursos (Lacan, 1969-1970/1992).

Os quatro discursos que fazem laços sociais estão correlacionados ao que Freud batizou de "profissões impossíveis": governar, educar, analisar. Governar está correlacionado ao discurso do mestre; educar, ao discurso universitário; analisar, ao discurso do analista. Lacan acrescentou o "fazer desejar", que está correlacionado ao discurso da histérica.

 

O discurso do mestre

 

 

Lacan observa que o discurso do mestre fornece a estrutura do discurso do senhor. O S1 é o significante sobre a qual se apoia a essência do senhor e o S2, caracterizado como suporte do saber, é o escravo, "é aquele que tem um savoir-faire, um saber fazer" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 20).

O que está em questão nesse discurso é extrair a essência de saber, para que este se torne um saber de senhor. A finalidade é mostrar que o escravo sabe, mas, "confessando isto apenas

pelo viés de derrisão, oculta-se que se trata exclusivamente de arrebatar o escravo sua função no plano do saber" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 21). Ao senhor que opera esse deslocamento do saber do escravo, Lacan indaga se tem realmente uma vontade de saber e, em seguida preconiza: "um verdadeiro senhor não deseja saber absolutamente nada - ele deseja que as coisas andem. E por que haveria de saber?" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 23). Como verdadeira estrutura do discurso do mestre, Lacan esclarece que o escravo sabe muitas coisas, mas o que sabe mais ainda é o que o senhor quer, mesmo que este não o saiba - o que é o caso mais comum, pois sem isto ele não seria um senhor. O escravo o sabe, e é isto sua função de escravo. Nada indica, com efeito, de que modo o senhor impõe sua vontade.

Equivalendo os elementos às posições, tem-se uma relação sustentada pelo saber e, o que se produz nessa relação é gozo, "o que se diz ordinariamente é que o gozo é privilégio do senhor. O interessante, pelo contrário, é o que, lá por dentro, desmente isso" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 21). A verdade oculta do mestre é sua castração e o escravo tem um saber sobre ela. Dessa forma, o poder no lugar de domínio, tamponando sua castração, posta no lugar da verdade, governa sobre o saber do escravo, para então, fazê-lo produzir seu mais-de-gozar.

No discurso do mestre, quem ocupa o lugar do agente é quem tem o poder, que se relaciona com os seus "outros". Na posição de dominante, o mestre autoriza-se partir da subjetividade, pois, por "baixo" de seu cargo há um sujeito - $ no "lugar" da verdade - que o encobre. Em seu ato de comandar ele espera de seus subordinados a produção de algo, como um objeto ou uma tarefa que lhes são preciosos, pelo objeto a, mais-de-gozar. Para que o discurso funcione, o senhor faz um pequeno esforço, dá a ordem. Simplesmente cumprindo sua função de senhor, ele perde alguma coisa. Essa coisa perdida é onde pelo menos algo do gozo deve ser-lhe restituído, precisamente, o mais-de-gozar (Lacan, 1969-1970/1992).

A primeira linha comporta uma relação que está indicada por uma flecha, e que se define, conforme Lacan, sempre como impossível. Neste discurso, de fato é impossível que haja um mestre que faça seu mundo funcionar. Fazer com que as pessoas trabalhem, relata Lacan, é ainda mais cansativo do que a gente mesmo trabalhar. O mestre nunca faz isso; ele dá um sinal, o significante-mestre, e todo mundo corre. Daí parte a ideia de que é impossível (Lacan, 1969-1970/1992).

 

O discurso da histérica

 

 

Lacan (1969-1970/1992) observa que o discurso da histérica possibilita que haja um homem motivado pelo desejo de saber; saber o valor que ela própria tem, pois, como objeto a, ela é queda do efeito de discurso. O que lhe importa é que o Outro chamado homem saiba que objeto precioso ela se torna nesse contexto de discurso.

A posição dominante em questão aparece sob forma de sintoma. É em torno do sintoma que se situa e se ordena tudo que é do discurso da histérica. Este discurso tem o mérito de manter na instituição discursiva a pergunta sobre o que vem a ser a relação sexual, ou seja, de como um sujeito pode sustentá-la ou, melhor dizendo, não pode sustentá-la. Com efeito, a resposta à pergunta sobre como sustentá-la é a seguinte: deixando a palavra ao Outro, precisamente como lugar do saber recalcado. E essa é a verdade, o que está em jogo no saber sexual apresenta-se como inteiramente estranho ao sujeito. O discurso da histérica revela a relação do discurso do mestre com o gozo, dado que o saber vem no lugar do gozo. O próprio sujeito histérico se aliena do significante-mestre como aquele que esse significante divide aquele que se recusa a dar-lhe corpo (Lacan, 1969-1970/1992).

Seguindo o efeito do significante mestre, Lacan orienta que a histérica não é escrava. Atribuindo o gênero sexual, sob o qual esse sujeito se encarna mais frequentemente, ela faz, à sua maneira, uma espécie de greve; não entrega o seu saber. Desmascara, no entanto, a função do mestre com quem permanece solidária, valorizando o que há de mestre, do qual se esquiva na qualidade de objeto de seu desejo. A experiência da histérica, ou seus dizeres, leva a considerar que tudo deve ser questionado no nível da própria análise, o quanto de saber é preciso para que esse saber possa ser questionado no lugar da verdade (Lacan, 1969-1970/1992).

A impossibilidade no discurso da histérica insere-se no conceito da privação. Conforme nos explica Lacan (1969-1970/1992, p. 69), "o portador do falo se empenha em fazer sua parceira aceitar essa privação, em nome do que todos os seus esforços de amor, de pequenos cuidados e de ternos favores serão vãos, posto que ele reaviva a mencionada ferida da privação". Tal ferida, então, não pode ser compensada pela satisfação que o portador teria ao apaziguá-la. Muito pelo contrário, ela é reavivada por sua própria presença, pela presença daquilo cuja nostalgia causa essa ferida. A partir disso, entende-se que a histérica simboliza a insatisfação primeira, valorizando sua promoção do desejo insatisfeito.

No funcionamento desse discurso, o lugar que figura sob o desejo é o da verdade, aquele onde se produz a perda, a perda de gozo da qual extraímos a função do mais-de-gozar. Fazendo relação ao discurso anterior, o discurso da histérica revela a relação do discurso do mestre com o gozo, dado que o saber vem no mesmo lugar. O próprio sujeito aliena-se ao significante-mestre como aquele que esse significante divide, aquele que se recusa a dar-lhe corpo. Fala-se, a propósito da histérica, de complacência somática. Seguindo o efeito do significante-mestre, a histérica não é escrava. Ela faz, à sua maneira, uma espécie de greve, não entrega seu saber. No entanto, desmascara a função do mestre com quem permanece solidária do qual se esquiva na qualidade de objeto de seu desejo (Lacan, 1969-1970/1992).

Tomando o discurso da histérica tal como se articula, Lacan observa que não é possível que, pela produção de saber, se motive a divisão, o dilaceramento sintomático da histérica. Sua verdade é que precisa ser o objeto a para ser desejada. "O objeto a é, afinal de contas, um pouco magrelo, embora, é claro, os homens adorem isso e não possam sequer vislumbrar se fazer passar por outra coisa - outro sinal da impotência cobrindo a mais sutil das impossibilidades" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 187).

A histérica quer um mestre, afirma Lacan (1969-1970/1992). Ela quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas coisas, mas, mesmo assim, que não saiba demais, para que não acredite que ela é o prêmio máximo de todo o seu saber. Em outras palavras, quer um mestre sobre o qual ela reine. Ela reina, e ele não governa.

 

O discurso do analista

 

 

O primeiro ponto a destacar do discurso do analista, é que ele é o avesso do discurso do mestre. Avesso, pois o que está no lugar de agente do discurso não é o significante mestre (S1), mas sim o objeto a, como causa de desejo. Dessa forma, ao contrário do discurso do mestre, o analista, ao ocupar lugar de agente, oferece-se como causa de desejo. Além disso, é importante ressaltar que o discurso do analista é o único laço social que trata o outro como sujeito.

O que o analista institui nesse discurso como experiência analítica é a histerização. O analista está na posição de dominante, sob a forma de a e o saber (S2), quer seja adquirido pela escuta do analisante, quer seja um saber já adquirido, ocupa a posição da verdade, define o que deve ser a estrutura do que se chama uma interpretação (Lacan, 1969-1970/1992).

Em referência à experiência analítica, Lacan faz equivalência ao discurso da histérica, ao dizer que o agente histeriza seu discurso. Como sujeito dominante, faz dele um sujeito a quem se solicita que abandone qualquer referência que não seja das quatro paredes que o envolvem, e que produza significados que constituam a associação livre soberana. No discurso do analista o outro é o sujeito da fala, do desejo e da associação livre. O agente, objeto a, é causa de desejo. O analista está no lugar de objeto, e é o analisante que ele institui como sujeito suposto saber ao valorizar sua fala, ao garantir que, do material em aparente desordem que emerge da associação livre, se há de produzir um saber (Lacan, 1969-1970/1992).

Para o analisante, $, o conteúdo é o seu saber. O psicanalista está ali, diz Lacan (1969-1970/1992), para conseguir que ele saiba tudo o que não sabe, sabendo-o, contudo: o inconsciente é isso. Para o psicanalista, o conteúdo latente está do outro lado, em S1. O conteúdo latente é a interpretação que vai produzir, na medida em que esta não é aquele saber que descobrimos do sujeito, mas o que se lhe acrescenta para dar-lhe um sentido.

O S2 no lugar da verdade é um enigma. Ambos têm a mesma característica, que é própria da verdade: a verdade, nunca se pode dizê-la a não ser pela metade. A função do enigma neste discurso é um semi-dizer. A interpretação é, com frequência, estabelecida por um enigma. A esta, Lacan pontua que o analista que escuta pode registrar muitas coisas e, por isso, a ideia que alguns podem ter é a equivalente de construir uma máquina de saber: "constroem a máquina eletrônica graças à qual o analista só tem que retirar o ticket para dar-lhes a resposta" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 35).

O que Lacan chama de histeria desse discurso resulta precisamente do fato de que ele elude a distinção que permitiria perceber que mesmo que essa máquina histórica nunca atingisse o saber absoluto, isto seria apenas para marcar a anulação, o fracasso, o desvanecimento ao término da única coisa que motiva a função do saber, sua dialética com o gozo. O saber absoluto seria pura e simplesmente a anulação deste (Lacan, 1969-1970/1992).

Tratando-se da posição dita do analista, ele é o próprio objeto a, que vem no lugar do mandamento. É como idêntico ao objeto a, ou seja, a isso que se apresenta ao sujeito como a causa do desejo, que o analista se oferece como ponto de mira para essa operação insensata, uma psicanálise, na medida em que ela envereda pelo desejo de saber. O obstáculo constituído pelo gozo se encontra entre o que pode se produzir como significante-mestre, e o campo de que o saber dispõe na medida em que se propõe como verdade. "Eis o que permite articular o que veridicamente corresponde à castração - é que, mesmo para a criança, apesar do que se pensa, o pai é aquele que não sabe nada da verdade." (Lacan, 1969-1970/1992, p. 137).

Espera-se de um psicanalista que ele faça funcionar seu saber em termos de verdade, confirmando-se, assim, como um semi-dizer e, é de onde está posicionado o mais-de-gozar, o gozar do outro, de onde o ato analítico deve advir. O lugar da verdade é ocupado por um saber que deve ser sempre colocado em questão, em compensação, deve prevalecer na análise, que haja um saber que se retira do próprio sujeito; o discurso analítico coloca o $ no polo do gozo. "É do tropeço, da ação fracassada, do sonho, do trabalho do analisante que esse saber resulta,

esse saber que não é suposto, ele é saber, saber caducado (...), é isso o inconsciente." (Lacan, 1971-1972, lição de 03/02/1972). É este saber definido como somente podendo colocar-se pelo gozo do sujeito.

Em O Saber do Psicanalista (1971-1972/inédito), Lacan propõe que o que a psicanálise revela é um saber não-sabido por si mesmo. Este é um saber que se articula, exatamente, estruturado com uma linguagem. O discurso psicanalítico só pode ser articulado ao mostrar que o objeto a, através da chamada experiência psicanalítica, tenha-o trazido ao lugar de semblante e, complementa ainda dizendo que, é sob a forma deste discurso que a castração faz sua entrada irruptiva. Este lugar de semblante o qual faz referência faz parte da reformulação das posições dos discursos, o qual Lacan propõe neste escrito: no lugar do agente, o semblante; no lugar do outro, o gozo e no lugar da produção, o mais-de-gozar.

 

O discurso do universitário

 

 

Lacan, em Televisão (1974/1993) apontou o discurso do capitalista como o discurso da ciência. Cinco, seis anos antes, em 1969-1970 - no Seminário 17, Lacan tinha feito isso com o do universitário. Ele referiu-se ao discurso universitário como o que mostra onde o discurso da ciência se estabelece com o imperativo: continuar a saber. Neste discurso, o S2 tem o lugar dominante na medida em que foi no lugar da ordem, do mandamento, no lugar primeiramente ocupado pelo mestre que surgiu o saber, derivando, daí o movimento atual da ciência. É destacado, ainda, ser impossível deixar de obedecer ao mandamento que está inserido no discurso, no lugar do que é a verdade da ciência: "vai, continua. Não para. Continua, a saber, sempre mais" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 110). Sobre este lugar, pontua Lacan:

Pelo fato de o signo do mestre ocupar este lugar, toda pergunta sobre a verdade é silenciada, toda pergunta precisamente sobre o que este signo - o S1 do mandamento Continua a saber - pode velar, sobre o que este signo, por ocupar esse lugar, contém de enigma, sobre o que é este signo que ocupa tal lugar (Lacan, 1969-1970/1992, p. 98).

Como em todos os outros discursos, quem sempre trabalha é o que está no alto à direita do esquema para fazer a verdade brotar, pois esse é o sentido do trabalho. No discurso do mestre, é o escravo, e no discurso da universidade é o a, estudante. Lacan define o estudante como "estudado"(1), "é astudado porque, como todo trabalhador - situem-se nas outras pequenas ordens - ele tem que produzir alguma coisa" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 110).

O mal-estar dos "astudados" faz referência para que haja uma ciência bem assentada por um lado e, conquistadora por outro, o bastante para se qualificar de humana, sem dúvida porque toma os homens como húmus e, o mestre, não está sempre ocupando o seu lugar. O que permanece é o mandamento, o imperativo categórico; não há mais necessidade de que ali haja alguém, visto que todos já estão inseridos no discurso da ciência (Lacan, 1969-1970/1992).

O discurso universitário, segundo Lacan (1969-1970/1992), faz surgir como dominante um saber desnaturado de sua localização primitiva no nível do escravo por ter-se tomado puro saber do senhor, regido por seu mandamento. A verdade do sujeito, no discurso universitário, é rejeitada em prol do mandamento de tudo saber. Sua verdade (S1), impulsiona seu saber, para que opere sobre o estudante a, - seu mais-de-gozar - e então este produz um sujeito dividido. Trata-se de objetivar, objetalizar para aplicar o saber. Dessa forma, ao outro só resta o silêncio e, quando enunciar algo será da ordem da reprodução de enunciados dos quais se torna apenas um porta-voz.

É possível notar, após discorrer sobre os quatro discursos e, fazendo referência às profissões impossíveis postuladas por Freud, que a estruturação dos discursos denominados discursos radicais, aqueles que possuem S2 ou S1 no lugar de agente, representa a impossibilidade de abarcar a totalidade por meio da linguagem. Há uma disjunção entre os lugares da produção e da verdade, o que implica na impossibilidade de se produzir uma verdade por meio da articulação significante.

O lugar da verdade de cada discurso revela, nos matemas de Lacan, aquilo que se encontra velado nos laços sociais: há um sujeito no ato de dominar; há um imperativo tirânico no ato de educar; há um gozo no ato histérico; há um saber no ato analítico. Isso corrobora a ideia de que abarcar a realidade por meio da função mediadora da linguagem comporta a falta e os discursos vêm como aparelhos de tentar suprimi-las. Uma vez que a psicanálise pressupõe que os discursos carregam a incurabilidade da falta estrutural, cabe questionar de que modo o sistema capitalista se aproveita disso em seu discurso.

 

O discurso do capitalista

Em 12 de maio de 1972, em Milão, Lacan proferiu uma conferência na qual dissertou sobre o discurso do capitalista, já introduzido por ele em seu OSeminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970/1992). Além dos quatro discursos já expostos, este discurso se apresenta não como um quinto discurso, mas como mais um, por diferir dos anteriores. A diferenciação, que vai além da estrutura do discurso, está no fato de que, enquanto os outros quatro discursos são formadores de laço social, o discurso do capitalista foraclui o laço social.

Ao introduzir o discurso do capitalista, Lacan (1969-1970) faz referência, em relação à sua estrutura, ao discurso do mestre: "o que se opera entre o discurso do senhor antigo e o senhor moderno, que se chama capitalista, é uma modificação no lugar do saber" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 29-30). Além desta modificação, o discurso do capitalista passa a ser considerado um deslizamento do discurso do mestre.

 

 

O termo "deslizamento" aplica-se em virtude do fato de que, por muito tempo, o discurso do mestre manteve-se em dominação, mas, posteriormente, o do discurso do capitalista passaria a assumir o comando:

[...] o discurso do mestre viveu durante séculos de um modo proveitoso para todo mundo, até um certo desvio, no qual se tornou, em razão de um ínfimo deslizamento que passou despercebido aos próprios interessados, aquilo que o especifica desde então como o discurso do capitalista (Lacan, 1971-1972/inédito, lição de 06/01/1972)

Ao apresentar este discurso, Lacan chama atenção para o fato de que todo discurso está atrelado aos interesses do sujeito, sendo assim, se o interesse na sociedade capitalista, é inteiramente mercantil, há uma mutação capital de um discurso ao outro. "Falo dessa mutação capital, também ela, que confere ao discurso do mestre seu estilo capitalista" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 178).

Um ano após discorrer sobre os quatro discursos, em um seminário intitulado O Saber do Psicanalista (1971-1972/inédito), Lacan renomeia alguns lugares desses discursos. No lugar do agente, ele propõe o semblante; no lugar do outro, ele situa o gozo; no lugar da produção, ele coloca o mais-de-gozar; a verdade, se mantem na mesma posição. Afirma ainda, que alguma coisa nesta estrutura foi alterada no percurso da história. Essa alteração centraliza-se no fato de que o mais-de-gozar passou a ser contabilizado e, então, começou o que se chama de capital.

Em uma conferência contemporânea ao seminário mencionado anteriormente, a "Conferência de Milão" (1972), Lacan considera o discurso do capitalista como astucioso, "de jeito nenhum lhes digo que o discurso capitalista seja medíocre; é, pelo contrário, algo loucamente astucioso." (Lacan, 1971-1972/inédito, lição de 01/06/1972). Embora astucioso, ele é, contudo, insustentável:

É insustentável... num truque que poderia lhes explicar... porque o discurso capitalista está como uma pequenininha inversão simplesmente entre o S1 e o $... que é o sujeito... basta para que isso ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido demais, se consome [consomme], se consome tão bem que se consuma [consume]. Agora vocês estão embarcados (Lacan, 1971-1972/inédito, lição de 01/06/1972).

Neste discurso, não há relação entre o agente/semblante e o outro/gozo, por isso não faz laço social. O que se verifica é um endereçamento dos objetos de consumo, produzidos pela ciência e tecnologia (a) ao sujeito ($), foracluindo assim o laço social. No discurso do capitalista, o sujeito passa a ser reduzido a um consumidor, enquanto o objeto causa de seu desejo se torna um gadget - que ocupa a posição do outro do discurso capitalista. Pode-se afirmar assim que o saber (S2) deste discurso é o da ciência/tecnologia; enquanto o significante-mestre (S1), o poder, é o capital.

 

 

A estrutura do discurso do capitalista evidencia a razão pela qual este discurso não promove o laço social. O discurso não é feito entre o campo do agente e do outro, além disso, têm-se as posições das setas cruzadas, e não direta como nos demais discursos. O circuito do discurso passa a ser fechado, onde cada termo é comandado pelo anterior e orienta o seguinte. Isso significa que o sujeito comanda e o objeto a, por sua vez, pode também comandar o sujeito, fazendo um circuito fechado. É este circuito fechado que não permite a circulação do discurso do capitalista com os demais. Este discurso propõe ao sujeito a relação com um gadget, um objeto de consumo curto e rápido [$ - a]:

Esse discurso promove um autismo induzido e um empuxo-ao-onanismo, fazendo a economia do desejo do Outro e estimulando a ilusão de completude não mais com uma pessoa, e sim com um parceiro conectável e desconectável ao alcance da mão (Quinet, 2012, p. 57).

Na posição do mais-de-gozar, ocupada pelos gadgets, Lacan (1969-1970/1992) aponta o oco, a hiância, que de saída há um número de objetos que vêm certamente preencher. Objetos que são de algum modo, pré-adaptados, feitos para servir de tampão. Neste discurso, o sujeito, consumidor, impulsiona o capital o qual determina a ciência e a tecnologia e faz com que se produza um gadget com o qual o sujeito se identifica e se relaciona. O que distingue de fato o discurso do capitalista é a rejeição que ele induz, rejeição da falta inerente ao sujeito haja vista sua castração. Talvez por este motivo, ele seja tão atraente.

 

O mais-de-gozar do discurso do capitalista

Quando forjou o discurso do capitalista, Lacan partiu da observação do funcionamento do sistema capitalista. Ao falar sobre este sistema, Lacan faz menção à mais-valia - termo usado por Karl Marx em O Capital, de 1897, referente ao lucro do capitalismo sobre o trabalho exercido pelo empregador. Lacan parafraseia Marx e equivale o termo mais-valia ao termo mais-de-gozar no discurso capitalista. No ano de 1974, em Televisão, Lacan avalia o saber do sujeito do sistema capitalista como o saber que não pensa, não calcula e nem julga. Dessa forma, diz Lacan:

O capitalismo teria recebido seu impulso [coup d'ailes]. [...] Eu diria que poderiam fazer as pessoas [...] um pouco, se verdadeiramente interrogassem o significante, o funcionamento da linguagem. Se elas interrogassem da mesma forma que um analisante [...] talvez daí saísse alguma coisa (Lacan, 1972/inédito, sem paginação).

Lacan observa que a sociedade capitalista instaurou a ilusão de distribuição igualitária de gozo por meio do acesso aos produtos. Por conseguinte, no capitalismo propriamente dito, reconhecemos o funcionamento de uma sociedade de consumo em que os trabalhadores se tornam um material humano tão consumível quanto os produtos (Lacan, 1969-1970/1992).

Assim, a mais-valia adquire o estatuto de espoliação do gozo do escravo pelo capitalista, podendo ser acumulada e utilizada na lógica econômica de investimento no próprio sistema para produção de maior lucro. O sentido da sociedade de consumo dá-se quando o humano é qualificado por um mais-de-gozar qualquer, sendo equiparado a um produto forjado pela indústria. O proletariado torna-se material humano produtor dessa sociedade e é impulsionado pelo mandamento de trabalhar mais para produzir mais. Como os produtos não possuem estatuto de completude deve-se continuar a produção (Lacan, 1969-1970/1992).

O que Marx denuncia na mais-valia, escreve Lacan (1969-1970/1992), é a espoliação do gozo:

Essa mais-valia é o memorial do mais-de-gozar, é o seu equivalente do mais-de-gozar. A sociedade de consumidores adquire seu sentido quando ao elemento, entre aspas, que se qualifica de humano se dá o equivalente homogêneo de um mais-de-gozar qualquer, que é o produto de nossa indústria, um mais-de-gozar - para dizer de uma vez - forjado. Além do mais, isso pode pegar. Pode-se bancar o mais-de-gozar, isso ainda atrai muita gente. (Lacan, 1969-1970/1992, p. 76).

Em seu Seminário 17 (1969-1970/1992), Lacan pontua que não foi Marx quem inventou a mais-valia, só que antes dele ninguém sabia o seu lugar. Era o mesmo lugar ambíguo, compara Lacan, com o do trabalho a mais, do mais-de-trabalho. Dessa forma, conclui que isso paga justamente o gozo, o qual é preciso que vá para algum lugar. Postula, contudo, que "o que há de perturbador é que, se o pagamos, o temos, e depois, a partir do momento em que o temos, é urgente gastá-lo. Se não se o gasta, isso traz todo tipo de consequências" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 18).

Lacan (1970/2003), conceitua o mais-de-gozar como o termo que é aplicado no nível que é chamado de desejo; mais exatamente, produz a causa do desejo. A mais-valia torna-se causa de desejo do sistema, operando com uma produção extensiva, portanto insaciável da falta-de-gozar. Ela se acumula, por um lado, para aumentar os meios dessa produção como capital e, por outro lado, amplia o consumo, sem o qual essa produção seria inútil, justamente por sua inépcia para proporcionar um gozo com que possa tornar-se mais lenta.

Ao tomar o sujeito como uma mercadoria a mais, o discurso capitalista faz do "mais-de-gozar" apenas um valor a registrar ou deduzir do que se acumula. A mais-valia do sujeito inserido neste discurso parte-se de um ideal em que tudo se baseia em conta - a própria energia nada mais é do que conta - e é isto que faz com que se instaure no lugar do senhor, uma articulação nova do saber, completamente redutível e que surja, no lugar do escravo, não algo que se insira de algum modo na ordem desse saber, mas que é, antes, seu produto. O trabalhador é apenas unidade de valor (Lacan, 1969-1970/1992).

Observa-se a relação que este discurso produz, mas não o que está inserido intimamente nele, mas em seus resultados. Trata-se de trabalhar para poder adquirir capital e comprar tudo que as vitrines oferecem, assim baseia-se o sistema capitalista. O que Lacan enfatiza é o que passa por trás deste "simples" sistema, onde o sujeito atua com o próprio comprar e vender-se. É pela mais-valia, pelo mais-de-gozar, pela espoliação do trabalho que é fabricado o capital, que vai produzir o que aparenta ser o ideal de cura de qualquer mal-estar.

 

Os gadgets que tentam tamponar a castração

Em 1925, Freud postula as três profissões impossíveis; em 1930, em O mal-estar na cultura (1930/2010), destaca as três fontes de sofrimento humano e, entre elas, o relacionamento com os outros como a causa de maior sofrimento do homem. O mal-estar na cultura é o mal-estar inserido nos laços sociais decorrentes das profissões impossíveis. As formas das pessoas se relacionarem - governando, educando, psicanalisando e fazendo desejar - corroboram para a formação dos discursos. Todo laço social é, portanto, um enquadramento resultante em uma perda de gozo. Sendo assim, os quatro discursos, provenientes das profissões ditas impossíveis, geram mal-estar, mas o discurso do capitalista surge com uma promessa de felicidade, promessa de que vai resolver o problema da castração no homem. Ao rejeitar a castração este discurso insinua que o homem pode ser completo, sem falta.

De que forma o discurso do capitalismo opera? Ao colocar a mais-valia como causa de desejo, movimenta o sistema capitalista, entretanto, essa perda, espoliação de gozo sofrida pelo sujeito, reaparece no chamado mais-de-gozar de que fala Lacan (1969-1970/1992). Se o sujeito sofre um desperdício de sua energia ao ceder parte de seu trabalho ao capitalista, ao que Lacan denomina entropia, esse gozo será parcialmente restituído com um mais de satisfação.

De fato, é apenas nesse efeito de entropia, nesse desperdiçamento, que o gozo se apresenta, adquire um status. Eis porque o introduzi de início com o termo Mehrlust, mais-de-gozar. É justamente por ser apreendido na dimensão da perda - alguma coisa é necessária para compensar, por assim dizer, aquilo que de início é número negativo - que esse não-sei-quê, que veio bater, ressoar nas paredes do sino, fez gozo, e gozo a repetir. Só a dimensão da entropia dá corpo ao seguinte - há um mais-de-gozar a recuperar (Lacan, 1969-1970/1992, pp. 47-48).

No lugar dessa perda, podemos situar a função do objeto a. Lacan nos ensina como o sistema capitalista se articula à nossa falta fundamental gerada pela castração e, dessa forma, parte para a proposta do discurso capitalista em tentar iludir o sujeito a tamponá-la. Este discurso altera a definição do objeto a como objeto perdido, passando a oferecer objetos que visam à completude. O capitalismo propõe um gozo absoluto que sabemos que é impossível ao real; o gozo está voltado, antes de tudo, às diferentes formas e fracassos que constituem a castração.

Para abordar o excesso de objetos de consumo e a forma como se propagam na sociedade, Lacan, em seu Seminário 17, usa os neologismos: aletosfera e latusa. O neologismo latusa é aplicado no contexto em que discorre sobre os objetos oferecidos pela ciência e, associados a eles, as tentativas do sujeito contemporâneo de se livrar das frustrações geradas pelo mal-estar da nossa civilização. Somos, dessa forma, conduzidos pelo discurso do capitalista à ilusão da existência de objetos que, supostamente, seriam capazes de suprir a falta fundamental do ser humano. Latusa é o nome que Lacan dá a esses suplementos de gozo ofertados pelo capitalismo enquanto promessa de satisfação plena, até então, conhecido objeto a.

Para definir tal neologismo, Lacan (1969-1970/1992, p. 172) diz que esses objetos podem ser encontrados por toda a parte: "ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines e, mesmo, na proliferação dos objetos feitos para causar o desejo (...) agora é a ciência que governa". A latusa não tem razão alguma para se limitar em sua multiplicação, o importante é saber o que acontece quando a gente entra verdadeiramente em relação com ela.

De um lado, temos os objetos de consumo fabricados e oferecidos pela ciência, do outro, os sujeitos em busca destes objetos que, nomeado de gadgets por Lacan, causam a ilusão de que, ao possuí-los, o sujeito encontraria sua completude e, por consequência, uma satisfação e defesa ao mal-estar. Ao contrário do que é proposto, contudo, enquanto o sujeito tem o ideal de que ao consumir os objetos terá uma completude, o sistema capitalista visa a fabricação de objetos cada vez mais avançados, mas sem longa duração, a fim de movimentar o sistema.

Na propagação dessas latusas, há o efeito da aletosfera. Esta é derivada da fusão das palavras alétheia [do grego "verdade"] e atmosfera. A aletosfera diz respeito ao mundo moderno, povoado por um sem-número de ondas imperceptíveis que, no entanto, ocupam lugares de rádio, de TV, de internet. As latusas, definidas, anteriormente, como estando nas vitrines, não se presentificam somente lá. É através da aletosfera que sua atração se faz presente.

O que torna cada latusa é o que nela está contido de singularidade: podendo ser um objeto qualquer, de modo que não é qualquer objeto. Cada objeto é atrativo para um sujeito quando evoca o brilho do objeto perdido, ou, melhor dizendo, de sua perda. A aletosfera pode ser perfeitamente articulada com o gozo, desde que este seja entendido como o encontro com algo faltoso. Cada vez mais, a televisão nos acossa com intermináveis propagandas, a internet, com seus sites de compra, tem forte apelo comercial, já se afigurando como um verdadeiro mercado virtual. Dessa maneira, estamos como que capturados na aletosfera, nessas ondas que causam nossos desejos e tentam fazer supor que o encontro com o objeto é viável, quando não há objeto natural na ordem humana (Olivieri, 2002).

Ao mesmo tempo em que o sujeito idealiza seu gozo ao usufruir de gadgets, o capitalismo o vende já pronto a fabricar algo novo que, mais uma vez, vai tentar tamponar, ele não visa à supressão das necessidades do consumidor, pelo contrário, tendem a deixá-lo na falta. Essa verdade, porém, fica escondida por trás das promessas de felicidade vendidas junto aos objetos. Ao associarmos com os outros discursos, podemos enquadrá-lo no campo do semi-dizer.

Alguns pontos podem ser destacados como os principais efeitos do discurso do capitalismo sobre o sujeito. Além de propor uma exclusão do laço social, a estrutura do discurso em que o sujeito ocupa o lugar de agente faz com que ele adquira a condição de semblante de mestre, como se obtivesse o poder, podendo, através do saber, controlar a produção e o consumo do próprio objeto mais-de-gozar. Desse modo, no discurso do capitalista, o sujeito, ao mesmo tempo em que controla a produção e o consumo do objeto, passa também a ser por este comandado. Há, então, um sujeito que se confronta com os objetos de consumo produzidos pelo saber científico e tecnológico, financiados pelo capital, não havendo espaço para a falta, ou seja, para a emergência do sujeito desejo. Ao rejeitar a castração, o discurso rejeita que do sujeito parta qualquer tipo de desejo. Mesmo sendo da ordem do impossível, a ciência tenta nos fazer crer que é possível uma completude. Ao foracluir a castração, foraclui-se o laço social. O discurso atual da ciência é um discurso que ilude, segrega e isola, contudo, atrai.

Retomamos aqui as questões levantadas no início desse texto: que lugar o sujeito contemporâneo ocupa no discurso do capitalista? Que efeitos esse discurso provoca no sujeito?

Como no discurso do capitalista o sujeito está no lugar de consumidor, isso nos permite pensar a relação do discurso do capitalista com a sociedade capitalista contemporânea, caracterizada pela produção e pelo consumo.

Porque o discurso do capitalista está ali, vocês veem... (indica o discurso no quadro negro) uma pequenininha inversão simplesmente entre S1 e $... que é o sujeito...basta para que isso ande como sobre rodinhas, não poderia andar melhor, mas, justamente, anda rápido demais, se consome, se consome tão bem que se consuma. (Lacan, 1972/inédito, sem paginação).

No discurso do capitalista há um duplo imperativo: Produza!!! Consuma!!! A seta que vai do S1 (significante-mestre), que está no lugar da verdade, à S2 (saber científico), que está no lugar do outro, aponta para um imperativo de gozo: produza!!! A seta que vai do objeto a (mais-de-gozar), que está no lugar da produção, em direção ao $ (sujeito dividido - consumidor) aponta para um outro imperativo de gozo: consuma!!!

Pode-se verificar assim, quais os efeitos que este discurso provoca no sujeito. O sujeito é comandado pelos produtos produzidos pelo saber científico e tecnológico. Os objetos a produzidos pela ciência (gadgets), atuam num fluxo repetitivo no qual quanto mais se consome, mais há o aumento da insatisfação. Há neste discurso algo que circula: promessa de gozo, insatisfação (porque os gadgets não satisfazem plenamente), produção de novas mercadorias. Os mais-de-gozar só fazem aumentar a falta de gozar.

 

Notas

(1) No original, astudé. O termo remete foneticamente ao verbo étudier (estudar), que tem no particípio a forma étudié (estudado). A troca operada na vogal inicial evoca o estudante mencionado mais acima.

 

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Recebido em: 13/06/2018
Aprovado em: 31/08/2018

 

 

* Este texto é produto de uma pesquisa de monografia realizada no Curso de Graduação em Psicologia da UVA (2017).

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