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Revista Psicologia e Saúde
On-line version ISSN 2177-093X
Rev. Psicol. Saúde vol.8 no.1 Campo Grande June 2016
https://doi.org/10.20435/2177093X2016103
Psicologia e saúde pública: cartografia das modalidades de prática psicológica nas policlínicas
Psychology and public health: mapping of forms of psychological practice in polyclinics
Psicología y salud pública: cartografía de las mmodalidades de la práctica psicológica en las policlínicas
Ana Paula Noriko CiminoI; Danielle de Fátima da Cunha Cavalcanti de Siqueira LeiteII
IInstituto Brasileiro de Gestão & Marketing
IIInstituto Brasileiro de Gestão & Marketing
RESUMO
A inserção dos psicólogos na Saúde Pública foi estimulada a partir da Reforma Sanitária Brasileira. No entanto a formação em Psicologia, ao privilegiar um modelo de clínica tradicional, desconsidera as especificidades da prática nesse âmbito. Tal contexto justifica a presente pesquisa, que buscou cartografar a prática dos psicólogos nas Policlínicas Municipais do Recife. A metodologia utilizada funda-se em um enfoque qualitativo de cunho fenomenológico. Os dados foram colhidos via narrativas e interpretados através do método proposto por Giorgi. As conclusões apontam para a necessidade de desenvolver uma atitude clínica ético-política vinculada às dimensões histórico-culturais e socioeconômicas da população. Assinala para a necessidade de se repensar a formação acadêmica dos psicólogos, privilegiando modalidades de prática psicológica que possam acolher a demanda de sofrimento dos usuários, privilegiando uma maior articulação com o social.
Palavras-chave: Fenomenologia; Formação do psicólogo; Políticas públicas; Modalidades de prática.
ABSTRACT
Psychologists' incoming in Public Health was stimulated since the Brazilian Health Reform. However, psychology formation privileges a traditional clinical model which does not consider this practice's specificities. Such context justifies the present research, which aimed to map psychologists' practice in Municipal Polyclinics from Recife City. Used Methodology based on a qualitative phenomenological focus. Data were collected through narratives and interpreted using Giorgi method proposal. Conclusions point to a need to develop an ethical-political clinical attitude, linked to the population's historical, cultural and socio-economical dimensions. It also sign the need to rethink psychologists' academic formation, privileging modalities of psychological practices that can answer to users' suffering in articulation with social aspects.
Key-words: Phenomenology; psychologists' formation; public policies; modalities of practice.
RESUMEN
La inserción de los psicólogos en la Salud Pública fue estimulado a partir de la Reforma Sanitaria Brasileña. Por lo tanto, la formación en Psicología, al privilegiar un modelo de clínica tradicional, desconsidera las especificaciones de la práctica en ese ámbito. En este contexto se justifica la presente investigación, que busco cartografiar la práctica de los psicólogos en las Policlínicas Municipales de Recife. La metodología utilizada se asenta en un enfoque cualitativo de cuño fenomenológico. Los datos fueron recogidos o escogidos por la vía narrativa e interpretados atraves del método propuesto por Giorgi. Las conclusiones señalan para la necesidad de desarrollar una actitud clínica ético-política vinculada a las dimensiones histórico-culturales y socio-económicas de la población. Señala para la necesidad de replantear la formación académica de los psicólogos, privilegiando modalidad de práctica psicológica que puedan acoger la demanda del sufrimiento de los usuarios, privilegiando una mayor articulación con lo social.
Palabras-clave: Fenomenología; formación del psicólogo; políticas publicas; modalidades de práctica.
Introdução
Ao longo dos anos, foram criadas convenções sobre o conceito de doença e o tratamento adequado, tanto na dimensão física do ser humano, quanto na psíquica. As especificidades variavam de acordo com a época, o perfil económico e político da sociedade e sua organização. No que se refere ao portador de sofrimento mental, a internação foi o recurso mais utilizado no tratamento por muito tempo. Tal terapêutica nega ao paciente a possibilidade de participação nos atos da vida social e caracteriza o aniquilamento do sujeito, então denominado doente mental. Em 1793, Pinel trouxe uma importante reflexão sobre o assunto, quando considerou que a reclusão e isolamento dos pacientes levavam a uma alienação e estimulava a criação de um mundo e linguagem próprios. Essa condição de reclusão e aniquilamento do sujeito, através da privação do convívio social, confirmava a inadequação do modelo de confinamento hospitalar, característica da instituição médica clássica (Tenório, 2001).
A essas críticas podemos também somar as reflexões realizadas pelo italiano Basaglia, que, a partir da sua atuação como psiquiatra, discordou enfaticamente dos tratamentos dados aos pacientes dessas instituições. Essa situação pôde ser vista com frequência nos hospitais psiquiátricos brasileiros, a exemplo do Hospital Colônia de Barbacena, instituição essa visitada por Basaglia em 1979 (Antunes, Botelho & Costa, 2013).
Tal contexto histórico foi o marco disparador da necessidade de inserir o doente mental na sociedade, tarefa assumida pela Reforma Psiquiátrica. Datada na virada da década de 1970 para a de 1980, fundamentava-se nas críticas de maus tratos, abandono, fraudes no financiamento e em todos os excessos e desvios constatados nos hospícios (Tenório, 2001). A Reforma objetivava responder às questões sociais, políticas, clínicas e, principalmente, à crise do modelo hospitalocêntrico e aos esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos. Buscava possibilitar a recuperação da cidadania dos asilados, defendendo a convivência social com a loucura e, nessa direção, um processo de politização na prática clínica, com novas formulações em relação a essa prática e propostas de reformulação legal nas políticas públicas de saúde.
O movimento da Reforma Psiquiátrica teve como meta principal a luta antimanicomial convocando a todos para a discussão e reconstrução da relação com o louco e a loucura. O marco dessa luta foi a VIII Conferência Nacional de Saúde realizada em 1986, essa conferência teve um papel primordial em todo o movimento desencadeado pela crítica ao modelo hospitalocêntrico e apresentou as bases da Reforma Sanitária:
- concepção ampliada de Saúde, entendida numa perspectiva de articulação de práticas sociais e econômicas;
- saúde como direito de cidadania e dever do Estado;
- instituição de um Sistema Único de Saúde que tem como princípios fundamentais a universalidade, a integralidade das ações, a descentralização e hierarquização dos serviços de saúde;
- participação popular e controle social dos serviços públicos de Saúde (Dimenstein, 1998, p. 62).
Apesar de se configurar como um fator inédito no que tange às discussões sobre a história das políticas públicas de saúde, dada a representatividade da sociedade civil nas discussões pautadas nessa conferência, algumas críticas ao seu relatório são apontadas na I Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM). E, como um dos eixos de discussão da I CNSM, são apontadas importantes necessidades no tocante às políticas de recursos humanos, indicando inclusive, a necessidade de reformulação curricular para a formação de profissionais de saúde, além da contratação de novos profissionais. E, como um dos requisitos básicos levantados pela I CNSM, foi a "implantação e privilegiamento das equipes multiprofissionais na rede básica e nos hospitais e de práticas ambulatoriais destinadas a reverter o modelo assistencial organicista e medicalizante que havia" (Dimenstein, 1998, p. 63).
É nesse momento histórico que o profissional de Psicologia passa a atuar na rede pública de saúde, inserindo-se no setor público de atenção à saúde mental. Desde a criação da Psicologia como profissão, em 1962, a ação do psicólogo estava voltada para a atuação na clínica privada, na escola e na indústria, centrada na dimensão técnico-científica, alienada do processo histórico e político em que a Psicologia estava inserida. A partir da década de 1980, uma nova problemática se impõe à Psicologia, advinda da inserção dos psicólogos na rede pública de saúde sob a influência da Reforma Psiquiátrica. No entanto, apesar desse novo direcionamento,
[... ] os cursos universitários de psicologia, particularmente os de graduação, se mostraram geralmente inertes frente aos desafios dos novos campos de atuação profissional na área pública, repetindo os padrões hegemônicos de formação voltados para uma prática clínica nos consultórios privados. (Vasconcelos, 2004, p. 76).
Nesse sentido, o psicólogo brasileiro - inserido na rede pública - deparou-se com questionamentos sobre sua prática, até então fundados em modelos técnico-científicos derivados da Ciência da Natureza Moderna e transportados para a constituição da Psicologia sem uma explicitação e diferenciação de seu objeto de estudo, gerando os grandes sistemas psicológicos sustentados por uma pseudo unidade da Psicologia (Cimino & Barreto, 2013). E, em
[...] decorrência desse tipo de formação e da cultura mais difusa na categoria, os psicólogos que entraram na rede pública se mostraram completamente despreparados para os novos desafios e serviços que encontraram, tendendo a repetir nos serviços ambulatoriais, com clientela oriunda principalmente das classes populares, o padrão de prática hegemônico nas clínicas privadas. (Vasconcelos, 2004, p. 76).
Assim, a prática do psicólogo na Saúde Pública tem se ancorado, predominantemente, nos saberes da clínica psicológica tradicional sem que haja revisão e/ou contextualização, e colabora com a percepção social da psicologia como sinônimo de psicoterapia. Esse cenário aponta para a necessidade de um redirecionamento da prática psicológica indicando a urgência de uma atuação atravessada por uma série de questionamentos político-sociais e comprometida com a dimensão ético-política da profissão. Assinala, assim, para a necessidade de construção de modalidades de prática que atendam a essa nova demanda, contextualizando as problemáticas emergentes das diversas comunidades atendidas. Esse 'outro' modo de implicação da prática no contexto da saúde coletiva acolhe, de modo efetivo, a demanda das classes sociais menos favorecidas, o que vem gerando uma revolução no que se refere aos modelos dos serviços psicológicos tradicionais, que são voltados para o atendimento de uma minoria pertencente às classes média e alta. O crescente envolvimento com os serviços ofertados pelas Unidades Básicas de Saúde, vinculadas à assistência em Saúde Pública, "vem gerando desafios e angústia para os psicólogos compromissados com uma transformação pessoal. Para que esta se efetive, faz-se necessária outra postura, outra forma de conceber as relações sociais, o homem, a vida" (Andrade & Morato, 2004).
Retomando o foco da Reforma psiquiátrica, novos mecanismos de cuidado foram apresentados no Projeto de Lei 3657 de 1989 - "Lei da Reforma Psiquiátrica", aprovado somente em abril de 2001. Apresentava artigos que apontavam para modificações substanciais, no entanto ainda indicava uma postura tímida em relação à substituição asilar. É importante ressaltar que a referida Lei regulamenta o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), além de deliberar também assistência em outros dispositivos, como por exemplo, os Serviços Residenciais Terapêuticos, criando moradia para clientela egressa de longa permanência institucional.
Tal perspectiva coincide com a proposta de uma "clínica ampliada", que aponta para a necessidade de buscar outros saberes/fazeres extraclínicos, necessários à reformulação do conceito de doença mental oriundo da clinica tradicional. Esse olhar supõe uma não valorização da doença ou da sintomatologia tradicional, privilegiando um voltar-se para a existência da pessoa doente em sua totalidade, valorizando tanto as condições objetivas de vida, como as subjetivas (Tenório, 2001).
Pesquisas já assinalam diversas dificuldades encontradas pelos psicólogos que atuam na Saúde Pública (Dimenstein, 1998; Yamamoto & Cunha, 1998; Lima, 2005; Carvalho, Bosi, & Freire, 2009). Os resultados apontam para três principais fatores dificultadores: a inadequação da formação acadêmica para a atuação do psicólogo em instituições de Saúde Pública, dificuldade de adaptar-se às condições de perfil profissional exigido pelo SUS e a transposição do modelo hegemónico de clínica psicológica tradicional para o setor público. Os fatores expostos pelas pesquisas mencionadas corroboram para a transposição do modelo de atuação tradicional de clínica privada para Saúde Pública, o que gera uma prática descontextualizada, não atendendo muitas vezes às reais demandas da clientela. As especificidades da Saúde Pública demandam maior flexibilidade por parte dos psicólogos exigindo novas possibilidades de prática psicológica, contextualizadas e constituídas com os atravessamentos das dimensões políticas e sociais.
Assim, um horizonte de possibilidades se faz necessário para o atendimento das diferentes demandas da clientela usuária dos serviços, de forma a contemplar o compromisso ético-político da profissão. Como proposta, a psicologia fenomenológica existencial vem desenvolvendo pesquisas e trabalhos que contemplem diferentes possibilidades de prática psicológica, as quais têm se mostrado eficazes no atendimento ao sofrimento contemporâneo, entre eles destacam-se: plantão psicológico, psicodiagnóstico colaborativo e oficinas de criatividade. O Plantão Psicológico surgiu nos anos 1960, sob a coordenação de Rachel Rosenberg e Oswaldo de Barros Santos, sendo considerado um serviço inovador de atenção psicológica prestado à população. É um atendimento destinado a pessoas que necessitam de uma ajuda especializada, no momento da demanda, ampliando suas compreensões acerca da situação vivida e busca de soluções concretas e circunscritas à realidade sociocultural da clientela atendida (Barreto, 2009). Pode ser implantado em ambiente clínico, educacional, comunitário ou institucional. Outra importante modalidade de prática psicológica a ser considerada é o psicodiagnóstico colaborativo, que se constitui como uma proposta diagnóstica que considerada o cliente como um parceiro ativo do processo (Yehia, 2009). Nesse sentido, cliente e psicólogo participam e constroem em conjunto as possibilidades diagnósticas de modo a beneficiar o cliente com intervenções durante o processo, através de uma compreensão mútua para a solução dos problemas. A Oficina de Criatividade é outra modalidade a ser considerada; trata-se de atividades realizadas em grupos - que podem ser oferecidas em diferentes contextos - e utiliza recursos expressivos para o acesso à experiência do cliente (Cupertino, 2008). Tal modalidade de prática aponta para o trabalho do psicólogo - voltado para uma postura de facilitador do processo de transformação - gerado a partir do esclarecimento da demanda dos clientes. Após essa breve apresentação das modalidades de prática psicológica, voltamos a enfocar o objetivo principal da pesquisa - cartografar o trabalho realizado por psicólogos nas Unidades Ambulatoriais/ Policlínicas da Rede Municipal de Saúde da cidade do Recife.
Diante desse contexto, considerando as possibilidades apresentadas e buscando indicadores que possam nortear a adequação entre a formação acadêmica do psicólogo e a prática psicológica que desenvolve nas Unidades Ambulatoriais, justifica-se a importância desta pesquisa. Nessa direção, é de fundamental importância que busquemos compreender a prática dos psicólogos na Saúde Pública, suas dificuldades e especificidades. Para tanto, realizou-se um mapeamento das modalidades de prática psicológica desenvolvidas pelos psicólogos nas Unidades Ambulatoriais dos diversos territórios sanitários da cidade do Recife; e buscou-se identificar o paradigma de ciência que referenda tais modalidades de prática, buscando explicitar seus efeitos, tanto no modo como os psicólogos compreendem o sofrimento e o desamparo social dos usuários do serviço público de saúde, como nas diversas formas de intervenção.
Diante da amplidão da rede pública, optamos por cartografar a ação do psicólogo nas Unidades Ambulatoriais - Policlínicas da cidade do Recife, distribuídas nos seis Distritos Sanitários, estes no momento da realização da pesquisa, contavam com nove Unidades Ambulatoriais - Policlínicas. Tal delimitação justifica-se pelo fato de que a presente pesquisa está inserida em um projeto mais amplo, onde as demais instâncias de atenção psicológica foram estudadas por outros pesquisadores (CAPS, Programa de Saúde da Família, entre outras).
Material e Métodos
Na presente pesquisa, o método utilizado recorreu a um enfoque qualitativo e privilegiou a perspectiva clínica interventiva de cunho fenomenológico, como estratégia para o acesso e registro da experiência clínica de psicólogos no âmbito da Saúde Pública.
O enfoque qualitativo pressupõe "que as pessoas agem em função de suas crenças, percepções, sentimentos e valores, e seu comportamento tem sempre um sentido, um significado que não se dá a conhecer de modo imediato, precisando ser desvelado" (Alves, 1991, p. 54).
O caráter interventivo, próprio do agir clínico, ao possibilitar espaço para que alguém conte sua experiência, enfocando o trabalho cotidiano, oportuniza a elaboração da experiência no próprio ato de contar. O conhecimento passa a ser construído na ação entre os envolvidos, momento em que o participante narra sua experiência e o pesquisador acolhe a narrativa e, de alguma forma, dá um retorno ao entrevistado, que passa a assumir o papel de coparticipante da experiência. Nessa postura metodológica, o pesquisador assume a atitude "de um estar junto", na qual é gerada a oportunidade de construção e comunicação do conhecimento, possibilidade criativa característica do humano.
Assim, o pesquisador passa a ser uma parte importante da pesquisa, demandando contato direto e prolongado com o campo a ser pesquisado, buscando interagir com os participantes a fim de apreender o significado atribuído aos fenómenos estudados. Uma investigação de inspiração fenomenológica caracteriza-se por:
[...] sempre colocar em andamento uma interrogação. É perguntar. Não se sai em busca da compreensão de um fenómeno tentando aplicar sobre ele uma resposta já sabida sobre ele mesmo. Investigar não é, assim, uma aplicação sobre o real do que já se sabe a seu respeito. Ao contrário, é a ele que perguntamos o que queremos saber dele mesmo. (Cri-telli, 1996, p. 25).
Em relação à fenomenologia, é importante esclarecer que existem diversas possibilidades de articulações metodológicas, no sentido em que há diferentes métodos e compreensões possíveis que se enquadram nessa perspectiva. Na presente pesquisa, optou-se pela fenomenologia pautada no pensamento de Edmund Husserl (1976/2008). A fenomenologia husserliana, conhecida também como fenomenologia pura, considera fenómeno aquilo que se torna presente e pode ser conhecido por meio da consciência. Segundo ele, a consciência humana é intencional, ou seja, ela é sempre consciência de alguma coisa, cabendo à fenomenologia o estudo da significação dessas vivências. Para tanto, propõe "voltar às coisas mesmas" como acesso às essências contidas no modo de aparecer dos fenómenos que permite aproximar dos conceitos que distinguem e classificam os fatos. Indica a necessidade de suspender os juízos em relação ao mundo transcendente (mundo exterior) para chegar ao fenómeno. Essa postura denominou-se "redução fenomenológica" e, através dela, é que se chega à essência do fenómeno em questão.
Quanto à metodologia de pesquisa, a psicologia fenomenológica vincula-se à filosofia interpretati-vista (Schawandt, 2008). Toda ação humana é considerada significativa, ou seja, possui um conteúdo intencional, cabendo ao pesquisador compreender o significado que constitui essa ação. A compreensão interpretativa tem três diferentes formas, são elas: identificação empática, sociologia fenomenológica e jogos de linguagem. A presente pesquisa é baseada na compreensão pela identificação empática, que busca captar o significado contido na experiência dos psicólogos, ou seja, requer entender a intenção subjetiva do ator a partir de dentro (crenças, desejos) de maneira objetiva.
Tal atitude, segundo Souza e Cury (2009), consiste num processo especifico para abordar a consciência e a experiência humana imediata, com o objetivo de fazer uma análise fenomenológica das vivências relatadas. Pode ser definida como um tipo de observação sistemática e de descrição da experiência de um indivíduo consciente, numa dada situação.
Nesse contexto, apreender a experiência dos psicólogos - considerados sujeitos colaboradores - nas policlínicas significa criar um espaço para que falem de sua experiência no atendimento aos usuários. Tal experiência foi "colhida" pelo depoimento oral dos profissionais colaboradores.
A metodologia de relatos orais se sintoniza com a concepção de narrativa, adotada nesta pesquisa, e baseia-se nas reflexões de Benjamin (1989). Para o referido autor, a narrativa possibilita entrar em contato e elaborar (tematizar) a experiência vivida, privilegiando a manutenção de seu caráter artesanal como forma principal de comunicação dos narradores. Permite, assim, uma compreensão abrangente e integradora das vivências dos participantes, respeitando a riqueza da experiência contada em seus múltiplos sentidos. Lançando mão da figura do narrador, Benjamin ressalta a ambiguidade que sustenta a elaboração da experiência, condição que possibilita tanto a singularização como o conhecer sua própria história, no próprio lugar em que está.
Considerando a narrativa como instrumento, após anuência dos gestores das nove Unidades Ambulatoriais - Policlínicas, os psicólogos foram informados sobre a pesquisa e convidados a colaborar com o estudo. Dos profissionais convidados, cinco participaram, e a eles foi solicitado - individualmente, e em local previamente combinado - que relatassem sua experiência clínica na Policlínica à qual estavam vinculados. A narrativa foi estimulada pela seguinte colocação disparadora: "Fale-me da sua experiência nos atendimentos psicológicos realizados nas policlínicas". A partir dessa posição, o pesquisador atentava para os fenómenos vivenciados pelo sujeito colaborador nas suas experiências profissionais e buscava enfocar os significados relacionados à prática clínica destes.
As narrativas/depoimentos foram gravadas com a autorização dos sujeitos colaboradores que aceitaram participar da presente pesquisa. Posteriormente foram transcritos e literalizados - diz-se do processo de trabalhar as narrativas - a fim de tornar o texto mais fluido e acessível à leitura e à compreensão respeitando-se o texto original. Após a confirmação dos depoimentos literalizados pelos sujeitos colaboradores, os depoimentos foram interpretados, buscando a compreensão do seu sentido pelo pesquisador.
Como método de conhecimento e interpretação dos depoimentos, foi utilizada a proposta de Giorgi (2008). Tal método fenomenológico "parte das descrições ou entrevistas transcritas dos participantes sobre suas experiências vividas em relação a um fenômeno e contém quatro passos" (Andrade, 2007, p. 34). São eles:
1º) O sentido do todo - De posse das narrativas transcritas e literalizadas, buscou-se o sentido do todo para melhor apropriação da experiência comunicada e compreensão da linguagem utilizada pelos sujeitos colaboradores. Os depoimentos foram lidos diversas vezes, na tentativa de encontrar os significados relacionados ao objetivo da pesquisa, buscando apreendê-los a partir do contato do pesquisador com a experiência, considerada como fenómeno, narrada pelos sujeitos colaboradores.
2º) Identificação das unidades de significado -Após o primeiro passo, o pesquisador buscou identificar as unidades de significado nas narrativas, privilegiando a perspectiva psicológica que emerge dos depoimentos conforme significados reais atribuídos pelo narrador.
3º) Transformação das expressões cotidianas dos sujeitos numa linguagem psicológica - etapa que objetiva privilegiar as múltiplas descrições dos sujeitos e elucidar os aspectos psicológicos, num aprofundamento teórico que corresponda à compreensão das narrativas.
4º) Síntese das unidades de significado transformadas - Com as unidades de significado presentificadas, buscou-se o que havia de comum nos relatos de experiência dos sujeitos colaboradores, para fins de confirmação e verificação das convergências entre as experiências destes sobre a pesquisa contida nas unidades significativas.
Resultados e Discussão
Como proposto no primeiro momento metodológico, foi feita a leitura geral de cada entrevista, buscando a compreensão do sentido do todo, para, posteriormente, partir para identificação das unidades significativas que configuram o segundo momento metodológico. As unidades significativas identificadas nas entrevistas dos sujeitos colaboradores, focadas na experiência quanto ao atendimento psicológico nas Unidades Ambulatoriais/Policlínicas, são as seguintes: I) acolhimento do usuário; II) compreensão de sofrimento; III) modalidades de prática; IV) sentimento frente às dificuldades; e V) formação acadêmica.
Com a identificação das unidades significativas, passamos para o terceiro momento metodológico, que se constitui na transformação das expressões cotidianas dos sujeitos numa linguagem psicológica. Pelo fato de os sujeitos colaboradores serem psicólogos, os relatos já apresentam uma linguagem psicológica, o que facilitou o trabalho dos pesquisadores na elaboração da compreensão empática dos depoimentos. Partindo para o quarto momento metodológico, a fim de estruturar melhor a experiência, foi feita a síntese das unidades significativas transformadas, constituída como apreensão dos fenômenos descritos presentes no conjunto dos depoimentos. Sempre que possível, serão expostos fragmentos da entrevista para exemplificação da estruturação da experiência dos psicólogos no atendimento em Unidades Ambulatoriais/ Policlínicas.
Importa esclarecer que a análise não se restringiu à apresentação da compreensão empática elaborada pelos pesquisadores. Optou-se por trazer algumas reflexões que dialogassem com os autores consultados que também desenvolveram pesquisas sobre a atuação do psicólogo no serviço público, como Dimenstein (1998), Vasconcelos (2004), Andrade e Morato (2004); além disso, também trazer reflexões de autores que desenvolveram pesquisas, na fenomenologia existencial, apresentando outras possibilidades de prática psicológica, como Barreto (2009), Yehia (2009) e Morato (2009).
I) Acolhimento do usuário: O acolhimento segue o modelo de clínica ambulatorial em que o usuário do serviço busca uma ajuda, seja para um acompanhamento inicial ou para dar continuidade ao tratamento iniciado em algum dos serviços da rede pública, e é atendido dentro de uma das modalidades de prática oferecidas. Há também os casos em que os demais setores da Policlínica encaminham o usuário para o atendimento no setor de psicologia, pois não foram encontradas causas biológicas para os sintomas encontrados; mas, apesar desse encaminhamento, não há troca entre os profissionais envolvidos. Os psicólogos afirmam que, entre os casos que foram encaminhados e aqueles que são considerados urgentes, os últimos são priorizados. Nesse sentido, percebemos posturas diferentes em relação à grande procura, que gera a lista de espera, uma vez que alguns psicólogos, pelo modo de marcação da Policlínica, sequer têm acesso ao número de usuários que não são atendidos. Já alguns profissionais relatam que, diante da grande procura e aliada ao pequeno número de profissionais para o atendimento aos usuários, muitas vezes se faz necessário uma 'seleção' daqueles que serão atendidos, já que não há vagas para todos.
PSI 01: "a demanda de psicologia é grande... há momentos de saturação... quando encontro aquele corredor cheio... e digo para mim mesma... o que eu tenho é muito pouco para favorecer... não há vagas para a realização de atendimentos mais específicos que requerem tempo... essa é uma das dificuldades na prática psicológica em Policlínica Pública... não há vaga para todo mundo, e você tem que favorecer um limite... às vezes, é preciso selecionar quem entra... isso é difícil porque os sintomas são graves, e o sofrimento mais ainda... um sofrimento mental que precisa de uma intervenção... não temos como atender..."
Nessa direção, Amatuzzi (2009) ressalta que uma psicologia de inspiração fenomenológica é, principalmente, caracterizada pela importância que dá ao vivido, pois nele que o fenómeno se manifesta, reação essa antes mesmo de uma reflexão ou elaboração de conceitos teóricos. Tal situação pode ser vislumbrada no depoimento acima que ilustra as inquietações sofridas pelos profissionais frente à demanda que, muito embora surja de uma necessidade conceitual - psicologia -, coloca os profissionais frente às pessoas. E esse 'encontro' emerge nos profissionais a necessidade de "... lidar com a angústia através de movimentos construtivos e reflexivos. Tais movimentos partem da experiência prática para uma reflexão sobre os recursos teóricos permitindo a elaboração de novos conceitos" (Cimino & Barreto, 2013, p. 451).
Em relação às queixas dos usuários, os profissionais relatam que o modelo da clínica psicológica em ambulatório não consegue vislumbrar a totalidade do contexto em que o usuário do serviço convive, uma vez que o contexto é muito amplo e abrange uma problemática muito complexa. Nesse sentido, indicam a necessidade de uma maior articulação entre os serviços públicos, como forma de otimizar suas intervenções e obter um suporte social.
Apesar de reconhecerem o desencontro entre a formação e a prática clínica nas Policlínicas e a falta de articulação entre os diversos setores dos serviços públicos em saúde, os psicólogos entrevistados revelam, nas suas falas, um sentimento de impotência diante da demanda, experiência acentuada quando necessitam selecionar os clientes que "precisam" ser atendidos, reconhecendo a dificuldade de tal decisão diante de sintomas e sofrimentos mentais graves. Nessa direção, podemos inferir o quanto a objetividade metafísica da atuação profissional assume importância secundária diante das 'coisas como aparecem' (Goto, 2008).
Compreensão de sofrimento: Em relação à compreensão do sofrimento vivenciado pelos usuários das Policlínicas, os psicólogos ressaltam que ele possui íntima ligação com os fatores familiares, culturais, económicos, políticos e sociais. Diante de tamanha amplitude, os recursos clínicos se mostram insuficientes para responder às queixas, que trazem sofrimentos muito concretos.
PSI 1: "[o paciente] vive num contexto tão complexo de sofrimento, junto a outros, que a intervenção feita ali, no espaço clínico, é uma intervenção pequena frente ao que está sendo revelado".
PSI 04: "Uma angústia existencial como qualquer criatura na face da terra... o fato de serem pessoas pertencentes a uma classe económica muito carente... mas as necessidades são... angústias... preocupações... dificuldades... dificuldades com emprego... problema familiar... violência... violência doméstica... separação... adolescentes com... problemas de aprendizagem..."
Diante de tais relatos, percebe-se a consciência da insuficiência da intervenção psicológica realizada, o sofrimento dos usuários revela carências que apontam para a necessidade de uma ação interdisciplinar. Para além de tal percepção, os psicólogos entrevistados reconhecem também o fato de, no geral, o público não conhecer o trabalho de um psicólogo, frequentando o serviço porque foi encaminhado ou porque quer ser medicado. Tal situação demanda um trabalho psicoeducativo por parte do psicólogo, para que haja o reconhecimento da importância do investimento do usuário no atendimento psicológico oferecido. Sousa corrobora com essa visão, indicando que a Saúde Pública aponta "para uma polissemia tanto no aprendizado em psicologia, quanto nas invenções e inovações" (Sousa, 2006, p. 53) para atender à diversidade e singularidade própria da prática nesse contexto.
PSI 02: "[...] existem muitos casos de abandono também algumas... alguns casos porque há uma melhora às vezes significativa... e eles acham que aquela melhora já é o suficiente... não tem... por mais que seja trabalhado aquela noção que aquele processo não é só uma melhora da sintomatologia... mas acontece... como há também aquelas que vêm com o contrário... aquela expectativa de que vindo ao psicólogo é aquela coisa mágica... vindo ao psicólogo tudo vai ser resolvido... num curtíssimo espaço de tempo... então, quando isso não acontece, muitas vezes há o abandono..."
A situação de abandono do tratamento é associada a uma remissão dos sintomas ou a uma expectativa mágica sobre o poder do psicólogo. Estas são possibilidades compreensivas que acompanham a descrição da pratica exercida, uma tentativa de encontrar a "essência do fenómeno" gerado na relação psicólogo-usuário. No entanto ainda consideram que o não engajamento ao tratamento proposto centra-se na dificuldade do usuário de "investir" ou "entender" o tratamento, como apresentado no relato indicado abaixo:
PSI 03: "[...] porque a questão do investimento é uma coisa complicada... o investimento no tratamento aqui... porque tem pacientes que não conseguem investir por mais mobilizados que esteiam... não conseguem... na realidade... entender esse tratamento.... não conseguem evoluir bem... não conseguem usufruir de todos os benefícios... é como se não tivesse ainda uma compreensão... têm muitos que procuram... porque... assim... tem 'n' motivos.. têm aqueles que procuram para se afastar do trabalho... tem uns que procuram para poder pegar remédio... e tem aqueles que pegam o remédio e não usam... naturalmente não é comigo... vai para o psiquiatra e ele percebe que precisa de um acompanhamento do psicólogo e aí vem pra cá..."
Dessa forma, os psicólogos indicam que o usuário não consegue investir no "tratamento", por não entender a proposta, buscando atendimento psicológico como motivo para afastar-se do trabalho ou ser medicado. Fica evidente que, nesse momento, o psicólogo não questiona se está atendendo às necessidades do usuário, não conseguindo abrir-se para outras modalidades de prática psicológica. Fica preso à perspectiva da clínica tradicional de acompanhamento em longo prazo, uma vez que são levantados aspectos dificultadores com relação ao abandono e à falta de investimento financeiro por parte do usuário. Dimenstein (1998), ao pesquisar sobre a prática do psicólogo no contexto da Saúde Pública, aponta que modelo clínico na formação e prática profissional do psicólogo influencia até os dias atuais para a predominância dessa visão clássica da psicologia que, desde o seu nascimento, dedica-se a prestar serviços às classes mais abastardas. Nessa direção, reconhecem os fatores culturais e económicos como fatores invibilizadores do acompanhamento, uma vez que os usuários, às vezes, não possuem sequer condições financeiras de se locomoverem até a Policlínica.
Tal postura diante do fenómeno apontado revela uma atitude centrada no modelo de clínica já estabelecido e transportado para a Policlínica, sem considerar os fenómenos que emergem da relação intersubjetiva entre psicólogo e usuário, que poderiam apontar para outras possibilidades compreensivas, levando á busca de outros modos de estar na relação e de exercer a prática clínica. Dessa forma, a herança médica, apontada por Dimenstein (1998) como necessária para alcançar o reconhecimento e status social da psicologia, na compreensão de Giorgi (1978 citado por Sousa, 2006, p. 60), é "... a outra possibilidade [pois] prioriza a subjetividade humana e aproxima-se do método qualitativo ... a Psicologia deve partir de sua própria visão de mundo em sua construção científica, de um retorno às origens fenomenológicas dos processos psicológicos".
Segundo Andrade e Morato (2004), a possibilidade de assumir outras modalidades de prática psicológica exige uma transformação pessoal que leva a outra postura, outro modo de conceber as relações sociais, o homem e a vida. Tal mudança implica a suspensão dos conhecimentos definidos previamente sobre a prática psicológica, exigindo um mergulhar na relação intersubjetiva que se estabelece entre psicólogo e usuário, para assim poder intuir sua "essência" (Penna, 2001). Ou, dito de outro modo, partir do que se revela na relação intersubjetiva para questionar o modelo proposto a priori pelo psicólogo, fazendo uma redução fenomenológica ao modo de Husserl (1976/2008), na busca de outras modalidades de pratica que venham a acolher a real demanda dos usuários.
III) Modalidades de prática: Apesar da ênfase na psicoterapia individual, foram encontradas também as seguintes modalidades de prática: oficina diagnóstica, plantão psicológico, ludoterapia e atendimentos em grupo para crianças, adolescentes e adultos. As práticas desenvolvidas enfatizam a dimensão subjetiva do sofrimento vivido pelos usuários e revelam a limitação da ação clínica para acolher a demanda trazida vinculada às questões concretas que envolvem condições económicas, culturais, violência, falta de moradia, entre outros. Essas possibilidades de atendimentos foram implantadas para responder ao grande número de clientela e à complexidade da demanda, de modo a garantir o acolhimento e acompanhamento ao sofrimento no serviço prestado. Apesar da implantação de novas modalidades de prática, o atendimento é considerado insuficiente e é ressaltada para a necessidade de ampliação do número de atendimento e de criação de outras modalidades de prática psicológica.
PSI 1: "[...] favorece o plantão psicológico que é a porta de entrada para o atendimento psicológico no Distrito... temos a oficina diagnóstica [...] Temos as grupoterapias... recursos clínicos de atenção ao adulto... ao adulto portador ou não de transtorno psíquico... para o adolescente e o idoso, em programas específicos em que o psicólogo é inserido num trabalho multiprofissional..."
No entanto a maioria dos serviços realizados pelos psicólogos entrevistados privilegia o modelo de atendimento individual, em alguns casos norteados pela perspectiva da psicoterapia breve, na tentativa de responder ao grande número de usuários em busca por atendimento psicológico. Os dados indicam a necessidade de redefinição para a formação da ação do psicólogo na sociedade, precisando acolher a população de baixa renda, que também tem despertado o interesse por esse tipo de acompanhamento. Além disso, aponta a necessidade da reformulação do modo de funcionamento do serviço prestado nos ambulatórios, de forma a discutir sobre o papel dessas unidades, e para a necessidade de construção de práticas que atendam a essa nova demanda, contextualizando as problemáticas emergentes das diversas comunidades atendidas.
Para além de tais compreensões, importa ressaltar a importância da experiência e dos fenómenos que emergem da relação psicólogo-usuário que apontam para a necessidade de uma atitude fenomenológica, privilegiando a descrição e a compreensão dos fenómenos que emergem de tal relação. Atitude fenomenológica, conforme indica Penna (2001), consiste numa experiência direta das coisas como se dão à consciência. Nessa direção, ao relatarem o modo como trabalham, os psicólogos descrevem sua ação como pautada na clínica individual, mesmo considerando a possibilidade de uma psicoterapia breve. Ficam na descrição e no reconhecimento da insuficiência de tal modelo, não conseguindo voltar-se "para as coisas mesmas" que emergem na relação intersubjetiva com o usuário.
PSI 2: "Temos que trabalhar com os recursos que a gente pode... então... faço aqui atendimento individual ... Procuramos trabalhar mais com a psicoterapia breve... mais focal...".
PSI 4: "O trabalho que eu desenvolvo aqui no serviço público... na policlínica... é um trabalho ambulatoria! e é um trabalho de psicoterapia com adolescentes e com adultos ... e eu trabalho da mesma forma que eu trabalho no meu consultório particular..."
PSI 5: "Eu faço atendimento individual nos pacientes... eu não trabalho... não tenho formação para trabalhar em grupo... muito embora... ache interessante a proposta para alguns tipos de transtorno..."
Retomando a reflexão anterior, os depoimentos acima apresentados confirmam a dificuldade dos psicólogos de questionarem e até abandonarem o modelo de clínica psicoterapêutica individual, apesar de reconhecerem a sua limitação para a situação de atendimento em serviço público. Reafirmam assim, a necessidade de "uma modificação de olhar, um direcionamento para a investigação da experiência vivida" (Sousa, 2006, p.60). Nessa mesma direção, Cimino e Barreto (2013) refletem sobre esse fenómeno, indicando a necessidade de um posicionamento profissional que envolva não apenas conteúdos didáticos e/ ou teóricos, mas que seja, sobretudo, uma atitude que envolve um compromisso profissional frente às questões sociais.
IV) Sentimento frente às dificuldades: através do relato dos psicólogos, percebemos que a experiência do atendimento nas Policlínicas gera diversos sentimentos, no entanto o sentimento de impotência frente às diversas dificuldades encontradas perpassa as narrativas de muitos dos psicólogos. Tal contexto evidencia os limites da prática psicológica exercida, apontando para a insuficiência da intervenção psicológica frente ao grande número de pacientes e complexidade da demanda apresentada, confirmando a especificidade da clínica psicológica e das interfaces que a rodeiam.
PSI 1: "... são poucos psicólogos na Policlínica para atender as pessoas que buscam atenção... em termos de remuneração, também é algo frustrante... fica difícil para nós... Há momentos de saturação... quando encontro aquele corredor cheio... e digo para mim mesma... o que eu tenho é muito pouco para favorecer... não há vagas para todo mundo e você tem que favorecer um limite...".
PSI 2: "As dificuldades que a gente tem primeiro é em relação ao número de profissionais... que eu acho que ainda é muito restrito ... é a dificuldade da frustração... daquele sentimento de tristeza porque em alguns locais vemos que as pessoas não têm o mínimo para sobreviver... De impotência... inclusive já citei isso no próprio serviço...".
Nota-se que, embora haja nos profissionais o reconhecimento das nuances que a prática em Saúde Pública demanda, ainda predomina o sentimento de impotência, possivelmente gerado pela dificuldade de apropriação dos conhecimentos necessários para a atuação na Saúde Pública. Conhecimentos esses, diferentes daqueles já referendados tradicionalmente na construção da identidade do psicólogo e na formação profissional. As dificuldades no rompimento com esse referencial também foi evidenciado por Dias e Muller (2008, p. 58) como um processo "muito difícil, pois coloca em cheque o fazer do psicólogo e sua identidade profissional". Essa problemática coloca os profissionais diante de um dilema que, muitas vezes, extrapola a compreensão aqui empreendida, mas, que, ao mesmo tempo abre para novos questionamentos, como os que vemos a seguir:
PSI 3: "O número de pessoas é deprimente ... eu não tenho condição de fazer uma evolução ... tem dias de eu atender 9 a 10 pacientes... num turno de 4 horas... aí eu me estendo... 5 horas... já aconteceu de eu sair daqui quase 2 horas da tarde... mas não tem condições... eles pedem para a gente atender 7 pacientes por dia... não tem condição..."
PSI 4: "... o que a gente faz para sobreviver em relação ao que acontece é estabelecer contatos... na rede ... enquanto o profissional dentro dos limites do possível a gente vai se ajudando... e vai fazendo com que o usuário sofra o menos possível..."
Nesse contexto, percebemos que, diante dos sentimentos experienciados, os psicólogos apontam diferentes reações que repercutem no modo como realizam seu serviço. A inquietação frente às dificuldades mobiliza mudanças e aperfeiçoamento nos serviços oferecidos, além de um maior investimento em nível pessoal no seu trabalho. A impotência experenciada mobiliza os psicólogos, na sua ação clínica, levando a uma maior disponibilização para acolher, compreender e responder à demanda dos clientes. Nesse ponto, observa-se que, à medida que é promovida experiência dialógica entre o vivido e a atuação profissionais promovendo rupturas com o estabelecido nos modelos institucionais e/ou teóricos, aproxima-se assim, da dimensão ético-política necessária para a prática psicológica em Saúde Pública (Cimino & Barreto, 2013). Nessa mesma direção, Sá (2009) indica que o setting clínico não é mais visto na sua ambiência física e/ou conceitual emergindo da própria experiência no exercício do cuidado. Tal problemática corrobora as reflexões de Amatuzzi (2009), que indica que o atendimento e, por consequência, a sua qualidade adquirem grande importância no processo clínico "pois é a partir desta que a capacidade de ver claramente e de orientar a própria conduta por parte da pessoa que se relaciona com o psicólogo vai se estabelecendo" (p.98). Reafirmando, segundo o autor, a necessidade de a prática psicológica requerer mais que esclarecimentos teóricos recorrendo, também, às elucidações de experiências vividas em contextos específicos.
V) Formação acadêmica: os psicólogos afirmam não terem tido apoio de sua formação acadêmica para atuação no serviço público de saúde. As teorias e técnicas aprendidas são importadas e não se adaptam à realidade brasileira. Tal contexto demanda grande flexibilidade em nível profissional e pessoal por parte do psicólogo, além da necessidade de estudos complementares. Além dos fatores já discutidos sobre a identidade/formação profissional do ponto de vista histórico, Dias e Muller (2008) apontam também o desconhecimento e desvalorização da atuação do psicólogo do serviço público, como reflexos de uma formação que, muitas vezes, não atende às necessidades dessa população. Segundo tais autores, apesar do crescimento nas demandas e espaços de intervenção do psicólogo, aparentemente, "o desenvolvimento teórico não acompanhou essa prática" (Dias & Muller, 2008, p. 58). Essa reflexão reafirma a crítica da fenomenologia em relação à ciência positivista, que não valoriza as questões referentes à subjetividade, assim, "meras ciências de fatos fazem meros homens de fatos" (Husserl, 1991, p. 6 citado por Goto, 2008, p.105).
PSI 1: "Minha formação não deu condição nenhuma para eu atender no campo da saúde... Uma experiência desalojante..."
PSI 6: "... eu sempre fui assim de buscar muito... participar de congresso... de reuniões... sempre estou... em grupo de estudos ... eu acho importante você sempre estar se atualizando..."
A esse respeito, Sousa (2006) indica, como uma possibilidade de transformação na realidade dos psicólogos, uma formação que privilegie serviços de atenção básica, uma vez que esta possibilitaria a quebra de preconceitos e paradigmas depreciativos promovendo uma atitude de defesa e valorização do SUS. Colabora para que as mudanças iniciadas a partir da Reforma Psiquiátrica possam resvalar cada vez mais na formação/prática dos profissionais de psicologia, bem como nas melhorias necessárias aos atendimentos prestados por eles na Saúde Pública. Reverberando a atualidade das críticas outrora feitas por Husserl (1991 citado por Goto, 2008, p. 106), ao observar que a ciência moderna está carente de significados, "isso quer dizer que a ciência não tem respondido, e ainda, nem dado a importância para a existência humana".
Diante do que foi revelado, nas entrevistas realizadas, percebemos que os dados confirmam os principais fatores dificultadores expostos por Dimenstein (1998), Lima (2005), Yamamoto e Cunha (1998), Carvalho, Bosi e Freire (2009): a inadequação da formação acadêmica para a atuação do psicólogo em instituições de saúde pública, dificuldade de adaptar-se às condições de perfil profissional exigido pelo SUS e a transposição do modelo hegemónico de clínica psicológica tradicional para o setor público. Aliados a esses fatores, ressaltamos, como dificuldades, o grande número de pacientes, falta de condições físicas e materiais e número reduzido de profissionais. Os resultados apontam para a necessidade de reformulação do modo de funcionamento do serviço prestado nos ambulatórios, de forma a discutir sobre o papel dessas unidades, buscando uma eficaz integração com os outros serviços existentes, de modo a potencializar os atendimentos em número e qualidade.
Considerações Finais
As conclusões apontam para a necessidade de desenvolver uma atitude clínica ético-política vinculada às dimensões histórico-cultural e socioeconómica da população atendida. Essa postura é percebida por uma atitude que privilegia uma visão global desse usuário, não o desvinculando dos aspectos históricos, culturais, sociais e económicos que constituem sua existência. Essa perspectiva deve atravessar a atuação do psicólogo brasileiro na intervenção clínica e não pode ser desconsiderada, devendo tornar-se alvo de reflexões e questionamentos.
Os resultados assinalam para a necessidade de se repensar a formação acadêmica dos psicólogos, privilegiando modalidades de prática psicológica que possam acolher a demanda de sofrimento dos usuários, possibilitando uma maior articulação com o social. Desse modo, indicam para a necessidade de ampliar o campo de atuação do psicólogo, de modo a assumir uma preocupação com a população antes excluída do "cuidado" psicológico. O atendimento nas Policlínicas exige uma atenção à dimensão coletiva do sofrimento aliada a uma preocupação ético-política da ação do psicólogo, ação esta, não privilegiada na formação acadêmica tradicional.
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Recebido: 30/07/2013
Última revisão: 26/04/2016
Aceite final: 26/04/2016
Sobre as autoras:
Ana Paula Noriko Cimino - Instituto Brasileiro de Gestão & Marketing. Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco e docente da graduação e pós-graduação (lato sensu) do Instituto Brasileiro de Gestão & Marketing - Faculdade IBGM. E-mail: ananoriko@hotmail.com
Danielle de Fátima da Cunha Cavalcanti de Siqueira Leite - Doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco e docente da pós-graduação (lato sensu) do Instituto Brasileiro de Gestão & Marketing - Faculdade IBGM. E-mail: daniellesiqueira_psico@hotmail.com