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Analytica: Revista de Psicanálise

On-line version ISSN 2316-5197

Analytica vol.10 no.19 São João del Rei July/Dec. 2021

 

A voz em Daniel Paul Schreber, Louis Wolfson e James Joyce

 

The Voice in Daniel Paul Schreber, Louis Wolfson and James Joyce

 

La voix chez Daniel Scheber, Louis Wolfson et James Joyce

 

La voz en Daniel Paul Schreber, Louis Wolfson y James Joyce

 

 

Ana Beatriz FreireI; Fernanda Mara da Silva LimaII

IPsicanalista. Professora titular (aposentada) do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP. Supervisora do Projeto de Extensão Circulando/UFRJ-Unirio: atendimento para jovens autistas e psicóticos
IIPsicanalista. Pós-doutorado em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestra em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta a particularidade da voz como causa e efeito do sujeito, sendo um objeto que resta das operações lógicas de constituição do sujeito. No entanto, é possível que a extração de objeto não se efetive, deixando o sujeito demasiadamente próximo a ele. Também aborda a constituição do sujeito a partir das primeiras marcas de gozo no corpo do infans. Trata-se de lalangue, que, não por acaso, é dita materna. A partir da proposição de que a homofonia é o modo pelo qual, por meio do fonema, articulam-se letra e voz com a destituição do sentido, será apresentado o testemunho do trabalho com a homofonia por parte de três escritores: Daniel Paul Schreber, Louis Wolfson e James Joyce. A hipótese defendida é de que um certo saber-fazer com lalangue possibilitaria ao sujeito a modulação do objeto voz, não extraído.

Palavras-chave: Psicanálise. Voz. Lalangue. Escritores. Homofonia.


ABSTRACT

This article presents the particularity of the voice as the subject's cause and effect, being an object that remains from the logical operations of the subject's constitution. However, it is possible that object extraction does not take place, leaving the subject too close to him. It also addresses the constitution of the subject from the first marks of jouissance on the infans' body. It is lalangue, which, not by chance, is said to be maternal. From the proposition that homophony is the way in which, through the phoneme, letter and voice are articulated with the destitution of meaning, the testimony of the work with homophony by three writers will be presented: Daniel Paul Schreber, Louis Wolfson and James Joyce. The hypothesis defended is that a certain know-how with lalangue would enable the subject to modulate the voice object, not extracted.

Keywords: Psychoanalysis. Voice. Lalangue. Writers. Homophony.


RÉSUMÉ

Cet article présente la particularité de l'objet voix, à la fois cause et effet du sujet, étant le reste des opérations logiques de la constitution du sujet. Néanmoins, il est possible que l'extraction d'objet n'aie pas lieu, laissant le sujet trop près de lui. De plus, la constitution du sujet est ici abordée à partir des premières marques de jouissance dans le corps de l'infans. Il s'agit de lalangue, qui, non par hasard, est dite maternelle. Partant de la proposition que l'homophonie est la manière dont, par le phonème, la lettre et la voix s'articulent à la destitution du sens, le témoignage du travail avec l'homophonie sera présenté à partir de l'œuvre de trois écrivains : Daniel Schreber, Louis Wolfson et James Joyce. L'hypothèse soutenue est qu'un certain savoir-faire avec lalangue permettrait au sujet d'effectuer la modulation de l'objet voix, non extrait.

Mots-clés: Psychanalyse. Voix. Ecrivains. Lalangue. Homophonie.


RESUMEN

Este trabajo presenta la particularidad de la voz en cuanto causa y efecto del sujeto, resultando como objeto remaneciente de las operaciones lógicas de la constitución del sujeto. Sin embargo, es posible que la extracción del objeto no tenga efecto, dejando al sujeto demasiadamente cercano a él. Además, aborda la constitución del sujeto de las primeras marcas de gozo en el cuerpo del infans. Se trata de lalangue, que, no por casualidad, se dice materna. De la propuesta de que la homofonía es la manera por la cual, a través del fonema, se articulan letra y voz con la destitución del sentido, se presentará testimonio del trabajo con la homofonía por parte de tres escritores: Daniel Paul Schreber, Louis Wolfson y James Joyce. La hipótesis defendida es la que un cierto saber hacer con lalangue permitiría al sujeto la modulación del objeto voz, no extraído.

Palabras clave: Psicoanálisis. Voz. Lalangue. Escritores. Homofonía.


 

 

Introdução

Este artigo tem por objetivo apresentar o testemunho do trabalho com a homofonia por parte de três escritores: Daniel Paul Schreber, Louis Wolfson e James Joyce, pois reconhecemos aí um trabalho do sujeito na tentativa de produzir uma modulação do objeto voz.

Estamos nos referindo a sujeitos que apresentaram impasses em sua constituição, de modo que não incidiu a extração de objeto. Devido à proximidade com o objeto, é possível dizer que o sujeito o carrega em seu bolso.

Para apresentar a especificidade da voz, trataremos desse objeto no campo psicanalítico a partir da obra de Sigmund Freud e no ensino de Jacques Lacan. A partir desses norteadores teóricos, podemos afirmar que a voz é causa e efeito do sujeito. Daí a importância de avançarmos sobre o estudo acerca da voz na constituição do sujeito.

 

Alguns apontamentos acerca da constituição do sujeito

No Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise (1964/1998b), Lacan formaliza as operações de causação do sujeito, a saber: a alienação e a separação. Enquanto a primeira operação, a alienação, aponta para a primazia do simbólico, a separação, que concluirá o tempo lógico da alienação, implica uma "resposta de gozo" (Miller, 2000, p. 93).

Lacan afirma que "[...] não é concebível nenhuma relação que gere alienação a não ser a do significante" (Lacan, 1960/1998a, p. 854). E para pensar sobre a primazia do campo do significante, o psicanalista francês retorna a Freud ao se remeter às formações do inconsciente.

Conferir essa prioridade ao significante em relação ao sujeito é, para nós, levar em conta a experiência que Freud nos descortinou, a de que o significante joga e ganha, por assim dizer, antes que o sujeito constate isso, a ponto de, no jogo do witz, do chiste, por exemplo, ele surpreender o sujeito. Com seu flash, o que ele ilumina é a divisão entre o sujeito e ele mesmo. (Lacan, 1960/1998a, p. 854).

O significante é o operador que promove a divisão constitutiva do sujeito. "Produzindo-se o significante no lugar do Outro ainda não discernido, ele faz surgir ali o sujeito do ser que ainda não possui a fala, mas ao preço de cristalizá-lo." (Lacan, 1960/1998a, p. 854).

O sujeito se constitui a partir do Outro, mas "não é o fato de essa operação se iniciar no Outro que a faz qualificar de alienação. Que o Outro seja para o sujeito o lugar de sua causa significante só faz explicar, aqui, a razão por que nenhum sujeito pode ser a causa de si mesmo" (Lacan, 1960/1998a, p. 855).

Para abordar a constituição do sujeito, Lacan (1964/1998b) busca suporte na teoria dos conjuntos e associa a alienação à propriedade matemática designada por reunião e, para tanto, se vale do termo latino vel. "O vel é uma palavra oriunda da lógica e que indica a relação entre dois conjuntos através da conjunção 'ou'." (Brodsky, 2006, p. 280). Na célebre escolha entre "a bolsa ou a vida", está em jogo a escolha chamada forçada entre "o sentido e o ser". É preciso perder a bolsa para ter a vida, ou perde-se os dois, caso a escolha seja pela bolsa. É, portanto, uma escolha forçada, pois não é possível escolher entre um ou outro, já que se perde uma delas ou as duas.

O Outro primordial, muitas vezes encarnado pela mãe, oferece significantes, pela fala, e o sujeito se submete a um dentre os muitos significantes ofertados. "[O] Outro é o lugar em que se situa a cadeia de significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer." (Lacan, 1964/1998b, p. 193-194).

O sentido dado pelo Outro não recobre o ser do sujeito; há sempre algo que se perde. Trava-se uma espécie de luta entre "vida e morte", de modo que, se a escolha for pelo ser, perde-se o sentido, mas, ao se escolher o sentido, perde-se o ser e produz-se a afânise, o desaparecimento do sujeito. "A alienação consiste nesse vel que [...] condena o sujeito a só aparecer nessa divisão que venho, me parece, de articular suficientemente ao dizer que ele aparece de um lado como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise." (Lacan, 1964/1998b, p. 199).

Desse modo, o sujeito nasce numa divisão entre sentido e afânise, entre o deslizamento da cadeia que remete um significante a outro, e o desaparecimento, afânise.

[S]e lhes falei do inconsciente como do que se abre e fecha, é que sua essência é de marcar esse tempo pelo qual, por nascer com o significante, o sujeito nasce dividido. O sujeito é esse surgimento que, justo antes, como sujeito, não era nada, mas que, apenas aparecido, se coagula em significante. (Lacan, 1964/1998b, p. 188).

A alienação é "nossa única escolha" (Soler, 1997, p. 59). Um destino inexorável frente à impossibilidade de escapar do campo da linguagem. A alienação, portanto, concerne a todos, na medida em que não há como fugir da incidência da linguagem que nos antecipa.

A segunda operação é nomeada de separação e refere-se ao ponto "onde se fecha a causação do sujeito, para nela constatar a estrutura de borda em função de limite, bem como na torção que motiva a invasão do inconsciente" (Lacan, 1960/1998a, p. 856). A separação possibilita a conclusão do tempo lógico da alienação.

Para efetuar a segunda operação de causação do sujeito, para se separar, "[p]ara se enfeitar com o significante sob o qual sucumbe, o sujeito ataca a cadeia, que reduzimos à conta exata de um binarismo, em seu ponto de intervalo" (Lacan, 1960/1998a, p. 857-858). O sujeito é o efeito da separação de uma cadeia de significantes que lhe subscreve e dela se serve para se engendrar, se produzir, se enfeitar e, assim, mantém sua filiação à cadeia de significantes.

Com o suporte da teoria dos conjuntos, podemos afirmar que a separação refere-se à interseção de dois conjuntos, o sujeito e o Outro, o ser e o sentido. Trata-se do recobrimento de duas faltas: uma produzida pela perda do ser do sujeito inerente à alienação. E a outra é aquela que o sujeito verifica nos intervalos do discurso do Outro, de onde se apreende algo do desejo do Outro. O sujeito surge da falta que produz no Outro, o que significa dizer que o sujeito se localiza na falta no campo do Outro.

Mas o que ele assim preenche não é a falta que ele encontra no Outro, e sim, antes a da perda constitutiva de uma de suas partes, e pela qual ele se acha constituído em duas partes. Nisso reside uma torção através da qual a separação representa o retorno da alienação. É por ele operar com sua própria perda, a qual reconduz a seu começo. (Lacan, 1960/1998a, p. 858).

É no ponto de falta da cadeia significante que o sujeito se defronta com o enigma do desejo do Outro: O que queres? O sujeito responde a essa questão enigmática circunscrevendo sua falta-a-ser na falta no campo do Outro, mas o sujeito se depara com a impossibilidade de o sentido recobrir todo o seu ser. O sujeito desejante surge na divisão, oscilando entre o sentido e o ser. Desse modo, a separação conclui a operação lógica da alienação, o que significa dizer que temos uma configuração de circularidade em que a separação reconduz à alienação.

Para Lacan, as operações lógicas de causação do sujeito apontam para uma hiância, na medida em que as faltas se realizam nos dois campos, do sujeito e do Outro. "A relação do sujeito ao Outro se engendra por inteiro num processo de hiância." (Lacan, 1964/1998b, p. 196), que é caracterizado por ser circular, dissimétrico e sem reciprocidade, no que se refere à relação entre sujeito e Outro.

O que decorre das operações de alienação e separação é uma perda, o objeto a, pois "[...] é na relação do sujeito com o Outro que ele [o objeto a] se constitui como resto" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 128).

Esse objeto nomeado pequeno a resulta, portanto, da operação de "divisão do Outro pelo sujeito" (Vieira, 2005, p. 10). "É nessa terra de ninguém feita de angústia e êxtase, entre eu e o Outro, que Lacan situa o objeto a." (Vieira, 2008, p. 77).

A queda do objeto a, objeto causa de desejo, é o que possibilitará a constituição do sujeito como desejante. "Ora, é justamente esse dejeto, essa queda, o que resiste à 'significantização', que vem a se mostrar constitutivo do fundamento como tal do sujeito desejante [...]." (Lacan, 1962-1963/2005, p. 193). É preciso que o sujeito consinta em perder algo de si para vir a se constituir. Esse objeto perdido e irrecuperável é a função de causa de desejo do sujeito em torno do qual se articula todo circuito pulsional.

Para Miller, haveria um paradoxo em tentar localizar o objeto a ou no campo do Outro ou no lado do sujeito. O paradoxo se coloca, posto que o objeto a escapa à significantização. "O objeto a, esse termo que faz exceção paradoxal - o paradoxo se marca porque não se sabe verdadeiramente de que lado inscrevê-lo entre o sujeito e o Outro." (Miller, 2005, p. 24).

No seminário da Angústia (Lacan, 1962-1963), é possível verificar que o objeto a se localiza ora no campo do sujeito, ora no campo do Outro. Lacan indica a placenta e o seio como vestimentas do objeto a. Enquanto o primeiro objeto indica a junção entre o sujeito e o Outro materno, o seio é um objeto que primeiramente será incorporado pela criança e reconhecido como pertencendo a ela, e só depois será representado como objeto externo a ela. Vejamos o que Miller (2007, p. 107) nos diz a esse respeito: "vemos que a se encontra ora do lado do sujeito, ora do lado do Outro, ora como amboceptor, cumprindo uma conjunção dos dois. Também se o vê como ectópico ou sob a forma do parasitismo fetal ou inclusive da intrusão do Outro no espaço corporal do sujeito".

Com as formulações das operações lógicas de causação do sujeito (Lacan, 1964/1998b), é possível situar o objeto a na interseção entre o sujeito e o Outro. Como se trata de duas faltas, a do sujeito e a do Outro, com recurso à teoria dos conjuntos, é uma mesma interseção que representará as duas faltas (Brodsky, 2006).

É possível localizar o objeto a no campo da neurose, na interseção entre o sujeito e o Outro, a partir da premissa da queda do objeto. Com a extração do objeto a, produz-se uma escansão entre os significantes, de modo que o primeiro significante S1 envia a um segundo significante S2 e, assim, institui-se a simbolização do primeiro par de significantes primordiais. Engendra-se a cadeia de significantes. Com a queda do objeto, a operação de simbolização da falta do Outro se realiza. O Outro é, por definição, estruturalmente inconsistente, mas se trata de verificar se houve para o sujeito a possibilidade de vir a simbolizar essa falta no campo do Outro.

Devemos enfatizar que, enquanto a alienação concerne a todos, o mesmo não se passa com a segunda operação lógica de constituição do sujeito, a separação. Soler (1997, p. 62) nos adverte que "a separação não é um destino", pois a separação pode não se efetivar, o que configura o campo das psicoses.

Na psicose, a separação não se realiza e, por consequência, não há a perda fundamental e a queda do objeto a; o que não é sem consequências para o sujeito e sua relação com o objeto, uma vez que sem a extração do objeto, o psicótico fica demasiadamente próximo a ele.

Se vamos abordar a relação do psicótico com o objeto voz, é fundamental que estejamos avisados da particular relação desse sujeito com o objeto, já que a extração não se realizou.

 

Voz e lalangue

É possível verificar a importância da voz na obra de Sigmund Freud. Podemos destacar alguns momentos em que o objeto voz se faz presente na obra freudiana de forma intensa, mesmo que em surdina. No primeiro, trata-se da afonia como expressão sintomática da histeria; o segundo, quando da instauração da associação livre, que, dando lugar às manifestações do inconsciente, como os atos falhos, sonhos, por exemplo, rompe com a lógica do sentido e aponta para uma cena Outra. Um terceiro momento refere-se ao manejo da transferência, que, ao incluir na cena analítica o divã, faz cair o olhar para dar lugar à voz. Há também um quarto momento, no "Projeto" (1895/1996a), em que podemos verificar indicações importantes sobre a constituição do sujeito e as vozes parentais (Gilles & Vivès, 2012 citados por Mattos, 2011).

E no que se refere especificamente ao campo das psicoses, Freud, ao abordar a sintomatologia da paranoia, fará uma articulação com a voz do supereu parental. Inclusive, Vivès (2012a) chega a afirmar que toda vez que Freud aborda o conceito de supereu reporta-se às psicoses e, especificamente, ao fenômeno da alucinação.

Parece que a voz sai da surdina na teoria psicanalítica de Sigmund Freud a partir da elaboração teórica do supereu, que sempre esteve articulado ao fenômeno da alucinação.

Se, para Freud, a voz teve lugar na teoria psicanalítica a partir dos fenômenos clínicos da psicose, o mesmo ocorreu com Lacan, que "isolou a voz como objeto a, a partir das vozes alucinadas" (Porge, 2015, p. 23). Devemos inclusive fazer notar que, para Lacan, há uma passagem do plural (vozes enquanto fenômeno) para o singular (voz enquanto objeto), com a inclusão da voz na lista de objetos a (Porge, 2015).

Desse modo, podemos afirmar que as vozes ganham lugar na teoria psicanalítica de Sigmund Freud e Jacques Lacan como fenômenos elementares da psicose.

Vamos agora voltar ao tema da constituição do sujeito para colocar em pauta a particularidade do objeto voz. Para tanto, é imprescindível citar a formulação lacaniana de que "tudo o que o sujeito recebe do Outro pela linguagem, diz a experiência comum que ele o recebe como forma vocal" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 298-299). O objeto voz se escora no nível do desejo, a voz é signo do desejo do Outro, e, com isso, circunscrevemos sua especificidade entre os demais objetos da lista dos pulsionais, a saber, seio, fezes e olhar.

A voz do Outro materno transmite a linguagem ao infans e põe em curso o processo de subjetivação (Vivès, 2012a). Essa operação é o que constitui a pulsão invocante como "a mais próxima da experiência do inconsciente" (Lacan, 1964/1998b, p. 102).

No entanto, a linguagem de início não existe (Lacan, 1972-1973/1998c), eis aí a importância de lalangue como marcas de um gozo prévio à própria linguagem. Dediquemos uma explicação sobre essa formulação.

Para Lacan, "a linguagem, sem dúvida, é feita de alíngua.1 A linguagem é uma elucubração de saber sobre a alíngua" (Lacan, 1972-1973/1998c, p. 190). Portanto, a linguagem é o que se tenta saber concernentemente à função de lalangue, configurando-se como uma elucubração de saber sobre lalangue. Miller (1996) afirma que essas elucubrações podem ser igualmente perpassadas pelas fantasias neuróticas, como as elaborações científicas que tentam apreender o real.

A linguagem deixa de ter um lugar originário e passa a ser derivada de lalangue. No entanto, devemos esclarecer que o gozo de lalangue é prioritário em relação à linguagem, mas não em relação aos significantes. Isso se deve ao fato que de lalangue é um enxame de significantes que não se encadeiam, articulam diferencialmente, entre si, com os quais cada um terá que lidar. Por isso é possível escutar de uma criança muito pequena palavras como "talvez", "ainda não", mesmo antes que ela chegue a formular uma frase inteira (Lacan, 1975/1988).

Sendo os primeiros significantes que o infans recebe do Outro, não é por acaso que "lalangue é dita materna" (Lacan, 1972-1973/1998c). Esses primeiros significantes constituem detritos da língua falada pelo Outro que deixam marcas no corpo do infans. Detritos com os quais cada um terá que se arranjar.

A voz é causa e efeito do sujeito, já que "o sujeito não é somente produtor da voz, ele é igualmente produto dela" (Vivès, 2012b, p. 70) e, por isso, nos reportamos às operações lógicas de constituição do sujeito das quais pode vir a resultar um produto, a voz. Além disso, também nos remetemos às primeiras marcas de gozo no corpo do infans, a "lalangue materna" (Lacan, 1972-1973/1998c).

A voz é causa e efeito do sujeito, na medida em que é pela invocação que o infans é chamado a advir como sujeito e a esse chamado poderá responder cunhando sua própria voz.

Nas operações lógicas de causação do sujeito, no campo da neurose, o processo resulta na extração do objeto voz; mas, no campo das psicoses, verificamos impasses decorrentes da não efetivação da separação, de modo que o objeto não cai.

Em sintonia com essas formulações, Maleval (2015, p. 18) afirmará que "[é] certo que a retenção do objeto a é comum ao autista e ao psicótico: ambos o levam em seu bolso".

Vivès (2013) cunhou o conceito de "ponto surdo" para explicar o que resulta do recalque originário2 na neurose. Eis aí instaurado uma distância em relação ao objeto, ao passo que o psicótico o carrega consigo, em seu bolso. "Os homens livres, os verdadeiros, são precisamente os loucos. Não há demanda de pequeno a, seu pequeno a, ele o tem, é o que ele chama de vozes, por exemplo. [...] Ele não se situa no lugar do Outro pelo objeto a, o a, ele o tem a sua disposição. [...] ele tem a sua causa em seu bolso."3 (Lacan, 1967, p. 13).

A célebre formulação lacaniana (1975/1988) de que "os autistas escutam a si mesmos" merece destaque aqui, na medida em que Bruno (1993) toma essa proposição como antinômica à definição de neurose, já que o neurótico, em função da inscrição do recalque, poderia ser definido como aquele que "não se escuta a si mesmo" (Bruno, 1993, p. 30). Acreditamos que essa formulação de Bruno (1993) estaria em sintonia com a formulação de Vivès (2013) de que o neurótico cunha o ponto surdo decorrente do mecanismo do recalque.

O que é possível para o sujeito diante dessa aproximação extrema do objeto voz?

Freud localizou em Daniel Paul Schreber várias tentativas de lidar com as vozes. Tocar piano, recitar poesias e colocar o radinho no ouvido foram tratamentos dados a esse objeto (Vivès, 2013). Também podemos citar o ato de falar com força, produzir ruídos altos para tentar abafar as vozes e relembrar de poemas (Bernard & Delaplace, 2014).

Vale inclusive citar que Louis Wolfson (1970), para evitar os efeitos devastadores causados pela audição da língua inglesa, se colocava ao trabalho de tapar seus ouvidos, ler livros em outras línguas, escutar no rádio programas estrangeiros, fazer barulhos com a garganta e grunhidos com os dentes. Esses grunhidos e barulhos provenientes da laringe, ao percorrerem os canais auditivos e chegarem aos ouvidos, para Wolfson, faziam anteparo ao som de uma palavra de língua inglesa. Wolfson se nomeia inventor de um aparelho que se refere a um estetoscópio que se liga a um gravador portátil, em que é possível manusear os tubos e alterar o volume. Esse aparelho, utilizado nos ouvidos, é citado em seu segundo livro (Wolfson, 1975) e foi inventado em 1975; portanto precedeu o surgimento do walkman.

Em relação a James Joyce, a escrita serviu de escudo para a imposição das palavras. Para realizar seu trabalho, era necessário decompor a língua materna para criar uma nova língua. (Ellmann, 1989).

Daniel Paul Schreber, Louis Wolfson e James Joyce apresentam construções singulares com um único e mesmo objetivo: cifrar o gozo.

 

A homofonia em Daniel Paul Schreber, Louis Wolfson e James Joyce

Daniel Paul Schreber não foi analisando de Sigmund Freud; no entanto, a partir de Memórias do Doutor em Direito Daniel Paul Schreber, Freud pôde formular uma teorização acerca da psicose. O mesmo se deu com Jacques Lacan, que, ao ler James Joyce, reformulou sua teoria sobre o campo das psicoses e cunhou o conceito de sinthoma. Além desses dois escritores, acrescento Louis Wolfson, para destacar o trabalho realizado com a homofonia por cada um deles.

David Bernard, em A letra e a voz, afirma que Joyce é um autor que se destaca pelo manejo da relação entre letra e voz. Assim Bernard (2013, p. 62) descreve o trabalho de Joyce: "[...] seu manejo do equívoco, de letra e da voz, acaba por quebrar a identidade fonatória da linguagem".

Em outro artigo, David Bernard, em coautoria com Joseph Delaplace (2014), afirma que Schreber foi um joyciano na sua articulação entre letra e voz. "As Memórias demonstram efetivamente que ele foi igualmente joyciano, utilizando-se de um manejo dos fonemas e de seu alcance de equívoco. É o socorro precioso que a homofonia lhe fornece, 'uma simples analogia de sons'." (Bernard & Delaplace, 2014, p. 565).4

A partir da formulação de David Bernard (2013) e, também, de outro artigo seu em coautoria com Joseph Delaplace (2014), sustentamos que a homofonia de Joyce e de Schreber apontam para uma lógica que circunscreve a homofonia como uma articulação entre voz e letra, via fonema, a partir do equívoco. Foi seguindo essa lógica que ousamos também incluir Louis Wolfson na série dos que trabalham com a homofonia, para então pesquisar a importância do que aí se realiza.

Se estamos nos dedicando ao tema da voz, precisamos justificar e defender o motivo pelo qual nos debruçaremos sobre a homofonia. Para defender a proposição de que há voz no sonoro, vamos nos remeter ao Seminário, livro 22: RSI (1974-1975), quando Lacan localiza a voz na região de interseção entre os três registros e, com isso, a voz, ao mesmo tempo que mantém um lugar êxtimo à cadeia, pode participar dos três registros. Desse modo, é possível que a voz, embora pertença ao registro do Real, participe de todos os registros.

É com Inês Catão (2009) que apresentamos o som como faceta imaginária da voz. Encontramos correspondência para essa formulação em Brousse (2008, p. 42), que afirma que o "[...] objeto a também é isto: um som". E assim defendemos a proposição de que há voz no sonoro; que, portanto, há voz na homofonia.

Assim sendo, podemos afirmar que na homofonia está presente a dupla vertente da voz, a material e a imaterial.

Caldas (2007, p. 92) dirá que "o objeto voz surge no vazio desenhado pela sonoridade transformada em material significante".

Gostaríamos de destacar a relação entre dois aspectos aparentemente paradoxais da voz, o fônico e o afônico. Sobre esse ponto, Heloísa Caldas (2003, p. 102) nos oferece um esclarecimento exemplar:

A voz se articula sobre o fônico, mas seu caráter de objeto decorre justamente do fato de que nesse material se produz um vazio, que faz com que o objeto não se confunda com o material com o qual é produzido. Assim, a voz permanece e emerge afônica do material fônico de que é feita, tal como o vaso não é o barro, mas o oco que este cria [...].

Podemos então afirmar que o oco funda o vaso, assim como a voz modela nosso vazio.

[...] as considerações que podem ser feitas sobre a voz, por exemplo, a partir do som como distinto do sentido ou sobre todas as modalidades de entonação, só possam se inscrever na perspectiva de Lacan se forem ordenadas a partir da função da voz, se assim posso dizê-lo, como afônica. Isso é sem dúvida um paradoxo, mas que diz respeito ao fato dos objetos ditos a só poderem se afinar com o sujeito do significante se perderem toda substancialidade, se estiverem centrados por um vazio que é a castração. (Miller, 2013, p. 4).

Miller é categórico em defender que na leitura lacaniana a voz é disjunta do som. O que não impede que a proposição de que há voz também no sonoro seja também verdadeira.

Outro ponto importante diz respeito ao fato de que a homofonia é o que impulsiona lalangue (Miller, 2003). Segundo Miller (1996, p. 70), em lalangue "os sentidos se cruzam e se multiplicam sobre os sons".

"[...] lalangue permanece indeciso entre o fonema, a palavra e a frase, e até mesmo o pensamento como um todo" (Lacan, 1972-1973/1998c, p. 196). Dizer lalangue numa só palavra é se referir a lalangue do som (Miller, 1996).

Lacan (1974) enfatiza que lalangue não é sem letra. Pensamos ser possível formular então a proposição de que o trabalho com a homofonia encontra a letra como cifra de gozo, possibilitando a modulação da voz. Seria um trabalho de produzir um certo afastamento do objeto voz. Não exatamente extraído, o que é próprio ao campo da neurose, mas ocorre aí um destacamento do objeto. Então, estaremos nos referindo a um certo saber-fazer com lalangue quando apresentarmos os trabalhos desses escritores com a homofonia.

Vamos apresentar cada um dos escritores. Iniciaremos com Daniel Paul Schreber com suas famosas Memórias de um doente de nervos (1984), as quais chegaram às mãos de Freud por Jung. Destacaremos o trabalho realizado por Schreber com a homofonia para o propósito deste artigo, embora estejamos avisados de que esta não fora a única via de trabalho subjetivo de Schreber, que também elabora uma construção delirante. Assim é que podemos afirmar que Schreber inventou mais de uma solução para o "tratamento de sua psicose" (Bernard & Delaplace, 2014, p. 562).

As Memórias de um doente dos nervos demonstram que Schreber inventou não apenas uma, mas soluções para fazer face ao que lhe era imposto. Ele confia, com efeito, ter sido levado a "mudar [] de sistema" para se defender das vozes, na medida em que os raios divinos encontravam aí, em cada caso, um amparo. Assim, o delírio e seu desencadear de uma significação estabilizadora constituem um modo de tratamento de sua psicose, ao qual são adicionadas, mesmo se de um modo discreto, outras tentativas de solução que se distinguem da primeira. Ao significante, em todo seu peso de revelação e enigma, Schreber replica com efeito de duas maneiras: de uma parte, visando elaborar esta revelação pela via da significação; de outra, se esforçando para abolir seu sentido. Reconheceremos a divisão entre um tratamento da psicose pela linguagem, outro por lalangue [...]. (Bernard & Delaplace, 2014, p. 562)5

Porge (2015, p. 44), ao apresentar o trabalho de Schreber na tentativa de cura, também cita dois recursos utilizados por ele, a construção delirante e a homofonia endereçada aos pássaros. O que David Bernard esclarece sobre essa divisão é que o trabalho da construção delirante de Schreber seria orientado pela significação delirante circunscrevendo um tratamento pela linguagem, enquanto o trabalho com a homofonia dizia respeito ao "manejo dos fonemas, e de seu alcance de equívoco. Trata-se da ajuda verdadeiramente preciosa que a homofonia lhe fornecia para sua defesa" (Bernard & Delaplace, 2014, p. 62). Essa última maneira pautava-se na demissão do sentido, orientado pela equivocidade de lalangue.

Vejamos como Schreber se serve da homofonia para lidar com as vozes dos pássaros miraculosos:

Eu já o disse, os pássaros miraculosos não compreendem o sentido das palavras que eles pronunciam; em contrapartida, parece que eles são dotados de uma sensibilidade natural à homofonia. De fato, se eles percebem - enquanto estão ocupados em debitar suas frases apreendidas de cor - seja nas vibrações de meus próprios nervos (meus pensamentos), seja nos propósitos que se mantêm em minha proximidade imediata, palavras que produzem um som idêntico ou vizinho do som das palavras que eles têm a recitar (a descarregar), isso cria neles, parece, um espanto apropriado para atordoá-los completamente: mediante o que eles vêm, por assim dizer, fornecer o painel da homofonia, o estupor os faz esquecer as frases que lhes restam ainda a debitar, e ei-los repetidamente voltados à expressão de um sentimento autêntico. (Schreber,1975, citado por Porge, 2015, pp. 43- 44).

Para Schreber, é uma alegria e, de certo modo, um passatempo "perturbar" os pássaros que lhe falam de modo confuso palavras que mantêm entre si uma homofonia. Assim é que Schreber se serve da mesma arma utilizada pelos pássaros: a homofonia. "Não é necessário que a homofonia seja completa, é suficiente que os pássaros discirnam uma analogia nos sons, mais ou menos: Santiago ou Cartago, Chinesenthum ou Jesum-Christum..." (Porge, 2015, p. 44). E podemos também incluir Abendrot ou Atemnot (Bernard & Delaplace, 2014, p. 62).

Tendo apresentado a homofonia em Daniel Paul Schreber, passaremos, agora, a outro escritor: Louis Wolfson.

Louis Wolfson6 (1970), em seu livro Le schizo et les langues, apresenta ao leitor seus inúmeros procedimentos linguísticos, os quais Deleuze (1970) nomeou de protocolo de atividade ou de ocupação, referindo-se ao árduo trabalho que Wolfson se dedica a fazer na tentativa de se proteger da língua materna. A língua inglesa tem estatuto de ser a própria peste para Wolfson e chega a equivaler ao toque em seu corpo, já que uma palavra em inglês ressoava em seus tímpanos.

Procedimento linguístico é como Wolfson nomeia seu trabalho de produzir uma descoberta científica, a criação de um novo código, transformando as palavras de língua inglesa em outras palavras de outros idiomas. Nas palavras de Wolfson: "[...] sua língua materna, mas ele não queria se servir deste idioma, parecendo preferir fazer assim uma verdadeira original ele mesmo" (Wolfson, 1970, p. 221).

Trata-se de um trabalho obstinado de transformar, transmutar, neutralizar e até mesmo destruir as palavras pronunciadas na língua inglesa. Esse procedimento seguia o seguinte protocolo: Wolfson devia procurar nos dicionários interlinguísticos uma palavra estrangeira com o mesmo som, fonema e sentido que a palavra inglesa que acabara de escutar. Como o próprio Wolfson esclarece, era preciso matar a língua inglesa, transformando-a em uma mistura de restos de outros idiomas. Assim, fica evidente que uma tradução não atingiria o objetivo, na medida em que não era o sentido que estava sendo visado. Era preciso instaurar uma nova relação com os significantes.

[...] uma simples, correta, direta tradução em língua estrangeira, ao contrário, não o satisfaria nos casos em que esta tradução introduzisse no seu espírito apenas uma palavra estrangeira foneticamente diferente da palavra em inglês que lhe fazia mal, isto não lhe proporcionaria então o sentimento de destruir tal palavra do inglês. (Wolfson, 1970, p. 240).

Prosseguindo como uma verdadeira mania esses estudos, ele buscava sistematicamente não escutar sua língua materna, que era empregada exclusivamente no seu entorno e falada por muitas pessoas. Portanto, como se fosse possível não escutar sua língua natal, ele tentava desenvolver meios de converter as palavras de língua inglesa, quase instantaneamente, em palavras estrangeiras, cada vez que aquelas penetrassem sua consciência (Wolfson, 1970, p. 33).

Dentre todas as estratégias empreendidas para fazer um anteparo à língua materna, quer dizer, à língua inglesa, Wolfson dará um especial destaque para o procedimento linguístico. Como podemos verificar nas suas palavras:

[...] parecia, felizmente, que à medida que o jovem homem alienado insistia em seus jogos linguísticos baseados nas semelhanças ao mesmo tempo de sentido e de som entre as palavras inglesas e as palavras estrangeiras, sua língua materna, aquela de seu entorno, tornava-se para ele mais e mais suportável. (Wolfson, 1970, p. 247).

É assim que se nomeia "estudante de línguas esquizofrênico", "estudante doente mental", "estudante de línguas demente". Sendo estudante um lugar diferente daquele completamente subjugado ao Outro. Inclusive, seu primeiro livro escrito na terceira pessoa pode indicar um possível afastamento desse lugar tão acossado pelo Outro, já que tinha por objetivo estudar línguas para ajudar as outras pessoas. Além de ser valorizado por sua família por saber outras línguas, já que esta o considerava um imbecil.

Interrogado sobre seu ofício, Wolfson respondeu: "Eu apenas estudo algumas línguas: francês, alemão, hebreu e russo", e é possível verificar a importância vital dessa ocupação em sua vida: "[...] não me dão nenhum dinheiro por isto [...], mas eu existo!" (Wolfson, 1970, p. 191-192).

O estudo das línguas é um trabalho árduo, diário e constante do qual Wolfson não pode se furtar de realizar. Há aí impressa uma dimensão de exigência; no entanto, é fundamental apontar outra dimensão que lhe é correlata: tal trabalho lhe é agradável.

Wolfson afirma que "[...] é agradável estudar línguas, mesmo que de uma maneira louca, senão imbecil! [...] muito raramente as coisas na vida seguem deste modo: pelo menos um pouco ironicamente" (Wolfson, 1970, p. 70).

Vejamos um exemplo de decomposição linguística desenvolvida por Wolfson:

[...] Wolfson modifica a palavra inglesa tree (árvore), decompondo-a, pois o som do t pronunciado nesta palavra o machuca. Ele trabalha com o t e o r para transformá-la em tere, convertendo-a foneticamente em dere, a qual faz surgir a palavra russa derevo (árvore). Faz essa conversão porque o som do t associado ao ree, formando a pronúncia [tri:] (conforme o alfabeto internacional de fonética), o irrita e invade seu espírito, impulsionando-o a se livrar desse som. Wolfson fazia longas pesquisas nos dicionários de línguas, sempre recorrendo ao alfabeto internacional de fonética para fazer suas conversões linguísticas, buscando se apoiar e se servir do código de um contexto mais universal em seu combate às mensagens que se interrompiam ao esbarrar na "palavra como gozo": aquela que destrói a associação da cadeia significante e, por conseguinte, a unidade corporal se desfaz. (Generoso, 2008, p. 278).

Wolfson transforma a palavra inglesa early em urliche, que é do alemão. Nesses momentos de conversão, ele chega realmente a acreditar que o idioma inglês foi apagado da Terra e, com isso, sente-se brilhante e esplêndido como inventor.

Outra palavra que é um exemplo do procedimento linguístico realizado por Wolfson é a palavra "MAD" que significa "louco/a" em inglês. O tratamento dado a ela foi transformá-la em "MAlaDe" cujo sentido é "doente", na língua francesa. As armas verbais são, como o estudante de línguas nomeia, sua empreitada de transformar a língua parasita em língua morta e, assim, criar um novo sistema de línguas.

Algumas vezes nas suas reflexões sobre como livrar rapidamente seu cérebro ecomático ou mais precisamente ecolálico de certas palavras inglesas [...] o estudante de línguas esquizofrênico se dava conta de uma certa generalização de um fenômeno fonético que ele havia suposto estar antes limitado a um ou talvez dois casos [...], e fazendo estas descobertas linguísticas, por assim dizer, ele se sentia muito inteligente, muito capaz, muito dotado, talvez como se ele tivesse feito contribuições verdadeiramente importantes à soma do conhecimento humano. (Wolfson, 1970, p. 140).

Já apresentamos a homofonia de Louis Wolfson, e agora vamos para o terceiro escritor.

Para abordar o tema da homofonia na obra joyciana, é preciso enfatizar que a musicalidade e a sonoridade são marcas essenciais da obra desse autor. Seu primeiro livro intitulou-se Música de Câmara, com poemas elaborados numa estrutura musical. Joyce explicava que seus livros deveriam ser escutados: "É tudo tão simples. Se alguém não entende uma passagem, tudo o que precisa é ler em voz alta" (Joyce, 1939/2004, citado por Ellmann, 1989, p. 729).

Um exemplo dado por Lacan (1975-1976/2007) referente a Joyce é sobre a transliteração de "sujo assassinato político" para "sujo assistanato político".

Um exemplo de homofonia translinguística aparece neste trecho de Finnegans Wake: "who ails tongue coddeau a space of dumbillsilly", escrito aparentemente em inglês, ("Kedê kadô, bobinha do meu xodó?"), mas que podemos escutar em francês como "Où est ton cadeau, spèce d'imbécile?" ("Onde está seu presente, seu imbecil?"). Lacan (1975-1976/2007, p. 162) aponta para o fato de se tratar de um som translinguístico, já que o who da língua inglesa se transforma em do idioma francês. Mantém-se o caráter fonemático com a demissão do sentido. "Barulhos, sons, música, ocupam nos textos de Joyce um lugar preponderante, e se fazem ouvir, desde que a leitura de seus textos se faça acompanhar da voz. Letra e voz são, solidamente, ligadas em seu texto. Ler Joyce significa emprestar-lhe a voz, mas não necessariamente, sentido" (Borges, 2008, p. 351).

Para dimensionar o árduo trabalho de Joyce na elaboração de sua escrita, cito um episódio que mostra claramente a sua intensa dedicação. Encontramos em "A idade moderna" (Pelican Guide da literatura inglesa, n. 7) uma conversa entre Joyce e um amigo. Frank Budgen (1972, p. 20), amigo de Joyce, vai visitá-lo e indaga como vai o trabalho com Ulysses. "Estou trabalhando nele o dia todo", diz Joyce. "Escreveu muito então?" ao que Joyce responde: "Duas sentenças". O amigo estranhou e perguntou: "Você está à procura de algum 'mot juste'? "Não", responde Joyce, "As palavras já as tenho todas, apenas não decidi sobre a ordem delas".

O árduo trabalho não implica necessariamente um sofrimento, pelo contrário. É possível verificar na biografia de Joyce, que Nora Barnacle, sua mulher, tinha dificuldade para dormir, pois Joyce, mesmo na hora de dormir, não parava de rir de seu romance, o Ulysses. Palavras de Nora: "Eu vou para a cama e, em seguida, esse homem se senta na sala ao lado e continua rindo de sua própria escrita. E então eu bato na porta e digo 'Jim, agora pare de escrever ou pare de rir'." (Bowker, 2012, p. 401).

Para Joyce, a escrita literária pôde produzir uma escrita do nó borromeano (Lacan, 1975-1976). Disso decorre a modulação do objeto voz, como objeto a, situado no centro do nó, no lugar vazio. Não se trataria de uma extração do objeto tão próprio à neurose, mas de um possível destacamento desse objeto.

O conceito de sinthoma opera como uma suplência para a "falha" na amarração dos três registos, o real, o simbólico e o imaginário (Lacan, 1975-1976/2007). Segundo Lacan (1975-1976/2007, p. 136), Joyce pôde prescindir do Pai, na condição de dele se servir a partir de sua escrita literária. Desse modo é que a obra teve a função de sinthoma para Joyce, sendo essa a via pela qual Joyce inventou uma maneira de articular os três registros. Essa função, a qual a obra veio cumprir, se estabeleceu por duas vertentes, seja pela publicação em que o endereçamento aos universitários vem a corresponder a um sintoma a ser decifrado, seja pela extração de uma forma de gozo que comparecia na própria escrita com a demissão do significante e do simbólico (Guerra, 2010, p. 71).

É com Lacan (1971/2001) que podemos situar o valor da escrita como um enxugamento do excesso de gozo, a partir de "Lituraterra", com a célebre pontuação acerca de ravinamento, um fenômeno que ocorre a partir de uma enxurrada e que produz uma depressão no solo. A escavação do solo é uma metáfora que aponta para o que a escrita promove como corte, marca, fissura.

 

Palavras finais...

Se para Joyce sua escrita teve função de sinthoma, o mesmo não se pode dizer em relação a Schreber e Wolfson. No entanto, é necessário reconhecer que há aí um trabalho de sujeito com a lalangue dita materna, numa tentativa desenfreada de localizar o gozo. Enquanto Joyce e Schreber falam de uma alegria nesse trabalho, Wolfson afirma categoricamente que esse trabalho, embora não remunerado, é o que dá lugar à sua existência.

Estamos no campo das construções singulares elaboradas pelo sujeito para tratar o gozo de modo a cifrá-lo. Para tanto, cada um lançará mão de recursos próprios inventando uma solução, uma suplência, ou mesmo um sinthoma.

 

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1 Mantivemos a versão no português para o termo lalangue, pois trata-se de uma citação.
2 Freud afirmará que "a essência do recalque consiste simplesmente em afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a à distância" (Freud, 1915/1996c, p. 171).
3 Cito a versão original: "Les hommes libres, les vrais, ce sont précisément les fous. Il n'y a pas de demande du petit a, son petit a il le tient, c'est ce qu'il appelle ses voix, par exemple. [...]. Il ne tient pas au lieu de l'Autre, du grand Autre, par l'objet a, le a il l'a à sa disposition. [...] il a sa cause dans sa poche." (Lacan, 1967, p. 13).
4 Cito a versão original: "Les Mémoires démontrent en effet qu'il fut aussi joycien, s'employant à un maniement des phonèmes et de leur portée d'équivoque. C'est là le secours précieux que lui fournit l'homophonie, 'une simple analogie des sons' [...]." (Bernard & Delaplace, 2014, p. 565).
5 Cito a versão original: "Les Mémoires d'un névropathe démontrent que Schreber inventa non pas une, mais des solutions pour faire face à ce qui s'imposait à lui. Il confie en effet avoir été poussé à « changer [...] de système » [11, p. 186) pour se défendre des voix, tant les rayons divins ne manquaient pas en chaque cas d'y trouver parade. Ainsi, le délire et son déploiement d'une signification stabilisatrice constituent un mode de traitement de sa psychose, auquel se sont ajoutées, même si de fac¸on plus discrète, d'autres tentatives de solution, à distinguer de la première. Au signifiant lourd de son poids d'énigme et de révélation, Schreber répliqua en effet de deux fac¸ons: d'une part, en visant à élaborer cette révélation par la voie de la signification, de l'autre em s'efforc¸ant d'abolir son sens. Où l'on reconnaîtra le partageentre un traitement de la psychose par le langage, l'autre par lalangue [...]." (Bernard & Delaplace, 2014, p. 562).
6 Lacan aborda os procedimentos linguísticos de Louis Wolfson no Seminário, livro 02, O eu na teoria de Freud e na técnica da Psicanálise (1954-1955/1997).

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