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Revista Subjetividades
Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.17 no.1 Fortaleza Jan. 2017
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v17i1.5192
ESTUDO TEÓRICO
A dimensão de domínio na constituição do Ego
The domain dimension in the constitution of the Ego
La dimensión de dominio en la constitución del Ego
La dimension du domaine dans la constitution de l'ego
Pedro Henrique de Oliveira Efken (Lattes)
Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO
O objetivo deste artigo é analisar a presença da dimensão de domínio na constituição do ego no pensamento freudiano. A noção freudiana de um aparelho psíquico forjado para dominar as excitações - que se originam no organismo e chegam à mente como exigência de trabalho em virtude de sua ligação com o corpo - abre uma perspectiva de leitura em que tal dimensão ocupa lugar central. De fato, embora Freud nunca tenha dedicado um artigo, ou mesmo um capítulo, à tematização da dimensão de domínio, esta se faz presente em toda a sua obra. No presente artigo, buscaremos mostrar como a dimensão de domínio, atrelada à polaridade atividade/passividade, atravessa a constituição do ego: da experiência alucinatória de satisfação, passando pelo autoerotismo/narcisismo, até estágios onde o ego já ascendeu ao registro simbólico. A passagem da passividade à atividade é essencial ao funcionamento psíquico e, portanto, à apropriação subjetiva realizada no narcisismo.
Palavras-chave: domínio; autoerotismo; narcisismo.
ABSTRACT
The purpose of this article is to analyze the presence of the domain dimension in the constitution of the ego in Freudian thought. The Freudian notion of a psychic apparatus forged to dominate the excitations - which originate in the organism and arrive at the mind as a work requirement by virtue of its connection with the body - opens a reading perspective in which such dimension occupies central place. In fact, although Freud has never devoted an article, or even a chapter, to the thematization of the domain dimension, it is present throughout his work. In the present article, we will try to show how the domain dimension, linked to the activity / passivity polarity, crosses the constitution of the ego: from the hallucinatory experience of satisfaction, through autoerotism narcissism, to stages where the ego has already ascended to the symbolic register. The passage from passivity to activity is essential to the psychic functioning and, therefore, to the subjective appropriation carried out in narcissism.
Keywords: domain; autoerotism; narcissism.
RESUMEN
El objetivo de este artículo es evaluar la presencia de la dimensión de dominio en la constitución del ego en el pensamiento freudiano. La noción freudiana de un aparato psíquico forjado para dominar las excitaciones - que se originan en el organismo y llegan a la mente como exigencia de trabajo en virtud de su vínculo con el cuerpo - abre una perspectiva de lectura en que tal dimensión ocupa lugar central. De hecho, aunque Freud nunca haya dedicado un artículo, o un capítulo, a la tematización de la dimensión de dominio, esta está presente en toda su obra. En este trabajo, buscaremos enseñar cómo la dimensión de dominio, junto a la polaridad actividad/pasividad, cruza la constitución del ego: de la experiencia alucinatoria de satisfacción, pasando por el autoerotismo/narcisismo, hasta fases donde el ego ya ascendió al registro simbólico. El paso de la pasividad a la actividad es esencial al funcionamiento psíquico y, por lo tanto, a la apropiación subjetiva realizada en el narcisismo.
Palabras claves: dominio; autoerotismo; narcisismo.
RÉSUMÉ
L'objectif de cet article est analyser la présence de la dimension de domaine dans la constitution de l'ego chez Freud. La notion freudienne d'un appareil psychique forgé pour dominer les excitations - que sont originaires de l'organisme et arrivent à l'esprit comme exigence de travail grâce à sa liaison avec le corps - ouvre une perspective de lecture où telle dimension occupe la place centrale. En fait, bien que Freud jamais n'ait pas dévoué un article, ou même un chapitre, à la tematização de la dimension de domaine, celle-ci se fait cadeau dans toute la son oeuvre. Dans cet article, nous chercherons à montrer comment la dimension de domaine, liée à la polarité activité/passivité, passe par la constitution de l'ego: à partir de l'expérience hallucinatoire de satisfaction, en passant par l'autoeroticism/narcissisme, jusqu'aux êtages où l'ego est déjà monté au registre symbolique. Le passage de la passivité à l'activité est indispensable au fonctionnement psychique et, donc, à l'appropriation subjective réalisée dans le narcissisme.
Mots-clés: domaine; autoérotiques; narcissisme.
Bemächgtingungsapparat, Bemächtigungstriebe, Bemächtingungsdrang, Liebesbemächtingung, Bewältingung e Beherrshungsão os termos referidos ao domínio na obra de Freud, uma noção abundante, mas cuja dimensão é pouco precisa, apesar do rico potencial teórico.
De fato, até a publicação de Vocabulário de psicanálise, em 1967, muito pouco foi escrito acerca do domínio em psicanálise. No artigo Pulsão de domínio, Laplanche e Pontalis (1967/1986, p. 514) destacam a carência de referências bibliográficas dedicadas à temática que, segundo eles, foi tratada por poucos, sendo citado apenas Ivés Hendrick (1943), como citado em Laplanche e Pontalis (1967/1986, p. 515), autor americano que, no horizonte da psicologia do ego, tratou do domínio como um instinto (instincttomaster) que, independente da sexualidade, teria caráter primordial no domínio do meio circunvizinho, estando mais ligado ao plano adaptativo.
Quatorze anos mais tarde, em 1981, é publicada uma edição da La Nouvelle Revue de Psychanalyse consagrada ao domínio (L'emprise). A partir de então, o número de referências ao domínio é largamente ampliado, mas ainda é como noção metapsicológica de natureza secundária que ele é majoritariamente tratado na teoria psicanalítica. É com Paul Denis (2002) que o domínio é, possivelmente, pela primeira vez, tratado como noção de importância primordial na metapsicologia freudiana. Seu projeto é reconstituir a teoria das pulsões fazendo do domínio uma noção central, o que, segundo o autor supõe, teria sido o projeto inicial de Freud. Concordamos com ele quanto ao rico potencial da dimensão de domínio, o qual ainda resta a ser explorado, mas a substância de sua teorização não vai de encontro ao que pensamos.
No Brasil, as referências à dimensão de domínio são ainda escassas. Destacamos o artigo Violência, domínio e transgressão, da Marta Rezende Cardoso (2002), como uma inspiração valiosa. Reconhecendo o rico potencial teórico de tal dimensão, a autora a articula as passagens ao ato de natureza violenta. Elas seriam uma forma precária de "dominação pulsional", estreitamente relacionada às angústias de transgressões pulsionais das patologias limite. Seu artigo nos levou a considerar o caráter central do domínio, no sentido de que os diversos modos de funcionamento psíquico refletem os diversos modos que cada um encontra para dominar o seu capital pulsional.
A partir de então surgiu o nosso interesse em aprofundar essa articulação entre modos de funcionamento psíquico e domínio pulsional. Para tal, seria necessário pensar a dimensão de domínio integrada à metapsicologia freudiana. Elegemos a constituição do ego como o primeiro passo, uma vez que a apropriação subjetiva relativa a essa operação relaciona-se diretamente à dimensão de domínio, isto é, ao domínio de si a ser alcançado no desenvolvimento de uma unidade egóica.
Na metapsicologia freudiana a constituição do ego está estreitamente relacionada à passagem do autoerotismo ao narcisismo, de maneira que tematizar a relação desses conceitos com a dimensão de domínio será fundamental em nosso trabalho. De fato, na perspectiva a ser apresentada no presente artigo, a dimensão de domínio revela-se implicada tanto no conceito de autoerotismo quanto no conceito de narcisismo. No primeiro, já nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/2006a) e, no segundo, sobretudo nos artigos Sobre o narcisismo: uma introdução (1914/2006b) e As pulsões e seus destinos (1915/2014). Tratar dos conceitos que fundamentam o esboço de uma unidade comparável ao ego é condição de possibilidade para o nosso próximo passo - pensar a dimensão de domínio em estágios mais avançados do desenvolvimento egóico, quando o aparelho psíquico ascende ao registro simbólico e a unidade egóica pode ganhar consistência.
É necessário salientar, contudo, que os conceitos de autoerotismo e narcisismo, fundamentais em nossa elaboração, nascem no horizonte da primeira dualidade pulsional, sendo, fundamentalmente, sob este registro que desenvolveremos nossa elaboração. Não ignoramos o fato de que a entrada da pulsão de morte levanta novas problemáticas à dimensão de domínio, mas o espaço necessário à sua discussão e aprofundamento exige outro artigo.
Antes de iniciarmos a tematização dos conceitos que tratam diretamente da constituição do ego, mister se faz primeiro responder algumas questões preliminares: É legítimo tratar de uma "dimensão de domínio"? Como situá-la? Como Freud se refere a ela? E em que contexto? Daremos início ao nosso trabalho tratando dessas questões com o intuito de introduzir a dimensão de domínio. Dado esse passo, tentaremos delimitar o caráter essencial e originário da dimensão de domínio na metapsicologia, para então integrá-la aos conceitos de autoerotismo e narcisismo e, assim procedendo, alcançar o objetivo de tematizar a dimensão de domínio na constituição do ego.
Para Introduzir a Dimensão de Domínio
No verbete "pulsão de dominação", do Vocabulário da Psicanálise, encontramos a seguinte definição: "Denominação usada em algumas ocasiões por Freud, sem que o seu emprego possa ser codificado com precisão. Freud entende por ela uma pulsão não sexual que só secundariamente se une à sexualidade e cujo alvo é dominar o objeto pela força" (Laplanche & Pontalis, 1967/1986, p. 514). No entanto, a questão do domínio aparece em vários momentos na obra de Freud, sendo enunciada em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914/2006b p. 92) como função geral do aparelho psíquico, que estaria "acima de tudo [...] destinado a dominar as excitações que de outra forma teriam efeitos patogênicos". Como bem destaca Assoun (1989), a pulsão de dominação termina por ser um fragmento de uma função geral de domínio essencial ao aparelho psíquico freudiano.
Outro autor que destaca a importância e a generalidade da dimensão de domínio é Gantheret (1981), que nos mostra que, ao longo da elaboração freudiana, a questão do domínio perpassa todos os modos do funcionamento psíquico em um entrecruzamento dos registros intrassubjetivo e intersubjetivo. No que concerne à dimensão intrassubjetiva, o autor ressalta o domínio que a pulsão exerce sobre o ego, o domínio do superego e o da fantasia. Quanto à dimensão intersubjetiva, o domínio dos homens sobre outros homens, do perverso sobre seu parceiro, do hipnotizador sobre o hipnotizado, do líder sobre a massa e do pai morto como lei sobre a coletividade dos filhos.
Como veremos a seguir, a própria semântica dos termos utilizados por Freud em referência ao domínio trazem matizes relativas a diferentes formas de domínio. Os termos de que ele se utiliza com mais frequência para se referir ao domínio são Bemächtigung e Bewältingung. Embora ambos se refiram ao domínio, seus matizes aludem a formas e níveis distintos de domínio:
1) Bemächtigung, vem de Die Macht, que significa poder, potência, força, como o poder de um estado ou de um império, sendo aqui enfatizado o pressuposto da força para legitimar o domínio. O termo é utilizado, portanto, para designar as forças armadas de um estado (Wehrmacht). Bemächtigungdiz mais respeito, portanto, ao ato de apoderar-se, de tomar pela força, sendo Bemächtigungstrieb, por vezes, traduzido como "pulsão de apoderamento".
2) O significado de Bewältigung traz mais a ideia de reinar, governar, no sentido de gerir, administrar. Gantheret (1981, p. 105), partindo da proposição waltenüber (dispor de), assinala que se trata de um "domínio por meio de uma força tranquila", de modo que aqui o domínio já deve ter sido conquistado, não sendo mais necessário tomar o objeto pela força. O matiz semântico de Bewältingungdiz respeito a garantir, assegurar o domínio.
Outro termo usado por Freud com menos frequência é Beherrshung, onde Herr significa senhor, de modo que Beherrshungremete à ideia de alguém assenhorear-se, obter controle sobre algo. Semanticamente este termo estaria mais próximo de Bewältigung, posto que não se refere diretamente à dominação pela força.
No contexto da obra freudiana é possível fazer teoricamente essas distinções semânticas, pois o termo Bemächtigungestaria referido a um domínio que visa submeter o objeto pela ação de dominar. Já Bewältigung e Beherrshungcostumam indicar o domínio interno do capital pulsional. Nesse caso, estaríamos tratando de uma função de domínio geral que se configura no trabalho psíquico de ligação da energia que invade o aparelho, a dominação do objeto não estando aqui necessariamente em questão.
Nessa perspectiva, ainda em referência ao Vocabulário da Psicanálise (Laplanche & Pontalis, 1967/1986, p. 514), lemos que o termo Bemächtigung é comumente utilizado como Bemächtigungstrieb - pulsão de dominação - e denota o ato de apoderar-se, de dominar pela força. Já o termo Bewältigungé usado na maioria das vezes por Freud para designar o fato de alguém se tornar senhor da excitação, quer seja de origem pulsional, seja externa. Contudo, os autores nos alertam que essa precisão terminológica não é totalmente rigorosa, em função da existência de vários pontos de passagem entre a dominação do objeto e o domínio da excitação pulsional.
Essa breve análise terminológica nos traz um indício do rico potencial teórico da dimensão de domínio na obra de Freud. Apesar do autor nunca a ter tematizado, em qualquer artigo ou tópico específico ela atravessa a construção de sua teoria sob diversos avatares, constituindo uma noção central que merece ser tematizada em todo seu alcance.
De acordo com o que dissemos acima, no presente trabalho nos debruçaremos sobre a dimensão de domínio na constituição do ego. Começaremos nosso percurso a partir de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, haja vista ser nesta obra que a dimensão de domínio foi originalmente concebida e revisada ao longo das várias reformulações realizadas ao longo do desenvolvimento da teoria.
O Domínio: Atividade/passividade
Na obra de Freud, a primeira referência ao domínio é feita em Três ensaios sobre a sexualidade (1905/2006a, p. 149), no tópico Sadismo e Masoquismo, os quais são definidos por Krafft-Ebing, respectivamente, como prazer em infligir dor (forma ativa), e sua contrapartida passiva, o prazer em sentir dor. O sadismo, enquanto perversão, seria caracterizado por uma satisfação exclusivamente condicionada pela sujeição e maus-tratos infligidos ao objeto sexual. De forma oposta e complementar, o masoquismo implica em uma extrema passividade perante à vida sexual e o objeto sexual, sendo a satisfação condicionada pelo padecimento de dor física e anímica advinda do objeto sexual. (Freud, 1905/2006a, p. 150)
O destaque do tópico é dado à correspondência do par sadismo/masoquismo com a polaridade atividade/passividade. O masoquismo estaria ao lado da passividade, e o sadismo, da atividade. Contudo, o caráter especular do sadomasoquismo impõe pensar a dominação como essencial tanto ao sádico quanto ao masoquista. Nas palavras de Freud: "A particularidade mais notável dessa perversão reside, porém, em que suas formas ativa e passiva costumam encontrar-se juntas numa mesma pessoa" (Freud, 1905/2006a, p. 151). O sádico é sempre, e ao mesmo tempo, um masoquista, e o masoquismo, por sua vez, não é outra coisa senão uma continuação do sadismo que se volta contra a própria pessoa (Freud, 1905/2006a, p. 150). Portanto, a dimensão de domínio revela-se basilar à relação sadomasoquista, em uma lógica onde a sujeição do objeto teria caráter privilegiado para o domínio do capital pulsional.
Merece destaque o fato de que a indexação da polaridade atividade-passividade à dimensão de domínio ganha corpo a partir de acréscimos feitos em 1915 na obra Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, os quais são relativos ao desenvolvimento teórico alcançado com o artigo "A disposição à neurose obsessiva" (Freud, 1913/2006c, p. 346), onde é enunciada relação de identidade entre atividade, pulsão de domínio e sadismo.
Em tal artigo é dito que a antítese masculino/feminino é precedida pela antítese ativo/passivo, sendo a atividade suprida pela pulsão de domínio, denominada sadismo quando à serviço da pulsão sexual. A tendência passiva, por sua vez, "é alimentada pelo erotismo anal", sendo necessariamente relacionada à pulsão de domínio, uma vez que a experiência anal-erótica implica na atividade de domínio esfincteriano. Como afirmam Laplanche e Pontalis (1967/1986, p. 235), há correspondência entre o sadismo e o erotismo anal, uma vez que o predomínio da ação de dominar é essencial tanto ao funcionamento do esfíncter anal quanto ao modo de funcionamento que rege a relação de objeto no sadismo.
O sadismo e o erotismo anal evidenciam a complementariedade da atividade e da passividade na constituição da dimensão de domínio, que, embora marcante nos modos de funcionamento da fase anal-sádica e do sadismo, de maneira alguma pode ser reduzida a eles. A dimensão de domínio parece, de fato, ter caráter mais fundamental quando um "aparelho de dominação" vinculado à oralidade é enunciado.
Um Aparelho de Dominação (bemächtigungsapparat)
Uma primeira indicação acerca do caráter originário do domínio é fornecida quando Freud tece considerações acerca das origens do sadismo. Vemos aí uma primeira referência direta ao domínio quando se estabelece estreita relação entre crueldade, pulsão sexual, e "aparelho de dominação":
Que a crueldade e a pulsão sexual estão intimamente correlacionadas é nos ensinado, acima de qualquer dúvida, pela história da civilização humana, mas no esclarecimento dessa correlação não se foi além de acentuar o fator agressivo da libido. Segundo alguns autores, essa agressão mesclada à pulsão sexual é, na realidade, um resíduo de desejos canibalísticos e, portanto, uma coparticipação do aparelho de dominação, que atende à satisfação de outra grande necessidade ontogeneticamente mais antiga. (Freud, 1905/2006a, pp. 150-151)
Essas afirmações têm algumas implicações das quais queremos destacar a alusão a "uma necessidade ontogeneticamente mais antiga", que parece apontar para o caráter fundamental desse "aparelho de dominação". A esse respeito Denis (2003)afirma haver prevalência da dimensão do domínio, implicada no "aparelho de dominação" dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, o qual seria relativo aos órgãos funcionais, sobretudo à musculatura e aos órgãos dos sentidos, que teriam por função a efetivação das ações necessárias à satisfação da pulsão.
Tendo em vista que as fontes somáticas do "aparelho de dominação" não dispõem de um poder erógeno em si, não sendo, portanto, capazes de autodescarga, o seu trabalho consistiria então na atividade necessária para alcançar a satisfação. Nas palavras de Denis (2003, p. 75, tradução nossa): "O domínio é, por assim dizer, o braço secular da pulsão, que assegura o poder sobre o objeto e se coloca a serviço da realização da satisfação"1.
Segundo a perspectiva desse autor, a pulsão se constitui em dois movimentos complementares e indissociáveis: o primeiro é conduzido pelo domínio e o segundo se manifesta na experiência de satisfação, ou seja, o domínio é, tanto quanto a satisfação, um componente da pulsão. O domínio teria caráter intermediário, entre o sexual e o não sexual, sendo responsável pelo trabalho de ligação entre o ego e o objeto, que é primeiramente investido pelo domínio e depois pela satisfação.
Essa perspectiva faz jus à afirmação de Freud de que "o objeto é levado do mundo externo ao Eu, inicialmente, pelas pulsões de autopreservação" (1915/2014, p. 55), ou seja, a princípio, é pela necessidade vital que os objetos serão trazidos para o ego por meio do movimento deste "aparelho de dominação" que, nesse contexto, parece estar no limite entre o pulsional e o instintivo. De fato, em As pulsões e seus destinos, ao caracterizar as polaridades que regem a vida psíquica, é notável a alusão à dimensão de domínio (cuja marca é a polaridade atividade-passividade) quando Freud afirma que "poderíamos designar a da atividade-passividade com a biológica" (1915/2014, p. 63).
Os "desejos canibalísticos" que carregam "uma co-participação do aparelho de dominação" evocam a atividade necessária à alimentação, ou seja, "a satisfação de outra grande necessidade ontogeneticamente mais antiga". Se originalmente é possível estabelecer distinção entre o "aparelho de dominação" e o sexual, este é imediatamente convocado a trabalhar ao lado da sexualidade, pelo fato de a satisfação da necessidade ser logo erotizada. A partir de então, o limite entre o instintual e o pulsional se extrapola, e o domínio do psíquico ultrapassa o domínio do biológico com a emergência da pulsão, como veremos a seguir.
A Emergência do Domínio Pulsional
Encontramos esclarecimentos acerca de como o "aparelho de dominação" é convocado a trabalhar ao lado da sexualidade quando Freud (1905/2006a, p. 171) nos fala do chuchar como a busca de um prazer já vivenciado e agora relembrado, uma vez que a primeira e mais vital das atividades das crianças - mamar no seio - a familiarizou com esse prazer:
Diríamos que os lábios da criança comportaram-se como uma zona erógena, e a estimulação pelo fluxo cálido de leite foi sem dúvida a origem da sensação prazerosa. A princípio, a satisfação da zona erógena deve ter-se associado com a necessidade de alimento. A atividade sexual apóia-se primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente delas. [...] A necessidade de repetir a satisfação sexual dissocia-se então da necessidade de absorção de alimento [...]
A noção de apoio traz consigo a originalidade de Freud na compreensão da sexualidade ampliada como fundamental ao existir humano, no sentido de que, conforme ensina Anzieu (1988), a vida psíquica começa pelo intercâmbio dos estados de sensorialidade e sexualidade. Os cuidados maternos cobertos de erotismo despertam a pulsão sexual do bebê (Freud, 1905/2006a) à medida que trazem uma experiência de prazer que possibilita a ultrapassagem do corpo orgânico ao corpo pulsional.
Trata-se da montagem de um circuito pulsional que começa pela atividade do recém-nascido que, por meio de seu "aparelho de dominação", vai à busca do objeto externo que lhe oferece um além do leite, uma "vivência de satisfação" que virá se inscrever enquanto traço mnêmico a ser evocado na ausência do objeto como experiência alucinatória (Freud, 1950/2006d).
O "aparelho de dominação" ascende ao registro do domínio pulsional, onde a necessidade de repetir a satisfação encontra na experiência alucinatória a primeira atividade para sua efetivação. Podemos pensar na implicação da dimensão de domínio em tal experiência a partir do que nos fala Freud em uma passagem de Totem e Tabu (1913 [1912-13]/2006e, pp. 95-95) quando, sem evocar de modo explícito o domínio, relaciona-o à experiência alucinatória de satisfação. Aborda a questão da onipotência do desejo do homem primitivo, estabelecendo analogia com as crianças, as quais se encontrariam em "situação psíquica análoga". Primeiramente, elas "satisfazem seus desejos de uma maneira alucinatória, isto é, criam uma situação satisfatória por meio de excitações centrífugas dos órgãos sensoriais". O homem primitivo, "tem à sua disposição um método alternativo", "seus desejos são acompanhados de um impulso motor, a vontade, que está destinado, mais tarde, a alterar toda a face da terra para satisfazer seus desejos". Podemos ver nesse "impulso motor" uma clara alusão ao domínio o qual, nessas condições, se aproximaria de um domínio onipotente.
Vimos que o polo da atividade/passividade é indexado à dimensão de domínio e agora estamos diante de uma operação que se refere à necessidade de repetir as excitações prazerosas vivenciadas a partir dos cuidados maternos, a saber, a reversão da passividade em atividade que está aqui em questão. Tal operação representa uma primeira atividade do aparelho psíquico em seu trabalho de dominar as excitações e, na esteira dela, surge o autoerotismo como atividade de domínio que, como mostraremos a seguir, trabalhará na incorporação do corpo pulsional.
Autoerotismo: "Autodomínio"
A relação entre domínio e autoerotismo se faz presente ainda no texto Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade, quando o domínio - em seu primeiro aparecimento como "pulsão de dominação" (Bemächtingungstrieb) - será relacionado à masturbação infantil no tópico dedicado à atividade genital: "Nos meninos, a preferência pela mão já indica a importante contribuição que a pulsão de dominação está destinada a fazer para a atividade sexual masculina" (Freud, 1905/2006a, p. 177).
No entanto, podemos inferir a presença da dimensão do domínio desde a atividade masturbatória mais primitiva, situada no registro do autoerotismo que surge na esteira da experiência alucinatória de satisfação como uma nova vicissitude do domínio. Nesse sentido, o entendimento de Denis (2002), do autoerotismo como "autodomínio", nos parece pertinente, uma vez que: [...] "A criança não se serve de um objeto externo para sugar, mas prefere uma parte de sua própria pele, porque isso lhe é mais cômodo, porque a torna independente do mundo externo, que ela ainda não consegue dominar" (Freud, 1905/2006a, p. 171, grifo nosso).
Destaca Green (1988a, p. 125) que a atividade autoerótica representa a passagem do objeto de satisfação "fora" para a procura de uma satisfação no próprio corpo da criança. O domínio se efetiva então como positividade de uma função autoerótica para paliar a ausência do objeto externo que, em suas vicissitudes, vem a faltar. O "chuchar" seria uma atividade em prol de um "domínio" que estaria a serviço do se tornar "independente" do mundo externo que a criança "ainda não consegue dominar".
Trata-se da apropriação das experiências de caráter erótico vividas pelos cuidados maternos, ou seja, uma experiência marcada pela passividade potencializa a atividade do aparelho psíquico, que começa a se incorporar, a se apropriar do corpo à medida que as experiências de satisfação com o objeto externo são nele atualizadas, tornando-se ele mesmo objeto. Logo, a atividade autoerótica é marcada pela reflexividade, como sugere a imagem dos lábios que beijam a si mesmos - modelo ideal do autoerotismo segundo Laplanche e Pontalis (1967/1986, p. 80) - onde atividade/passividade se encontram, uma vez que os lábios que exercem a atividade também gozam passivamente, sendo, portanto, sujeito e objeto simultaneamente.
O caráter reflexivo do autoerotismo em seu trabalho de apropriação do corpo coloca a dimensão de domínio em primeiro plano e impõe aprofundá-la em sua relação com o narcisismo, uma vez que o mito de narciso traz necessariamente a ideia de espelho, o reflexo da imagem de narciso, tal como a atividade reflexiva das pulsões autoeróticas: "O auto-erotismo seria, pois, a atividade sexual do estádio narcísico da distribuição da libido" (Freud, 1917[1916-1917]/2006f, p. 417). A dimensão de domínio entrelaçada ao autoerotismo e ao narcisismo é do que trataremos a seguir.
Para situar a Relação Entre Autoerotismo e Narcisismo
Afirmar o autoerotismo como parte integrante do narcisismo é, possivelmente, fonte de controvérsias, uma vez que, em uma perspectiva genética, ele costuma ser concebido como fase libidinal que antecede o narcisismo. Na obra freudiana, entretanto, não há interpretação unívoca a respeito da posição do autoerotismo diante do narcisismo. Ressalta Baranger (1994) que, se em alguns textos Freud considera o autoerotismo como fase do desenvolvimento da libido prévia ao do narcisismo, em outros o coloca como modo de satisfação característico da fase narcisista.
Segundo Rocha (2008), as duas posições nos colocam diante de duas perspectivas: Uma marcadamente psicogenética - na qual o narcisismo é tido como fase libidinal intermediária entre o autoerotismo e o amor objetal - e outra que se poderia dizer estrutural, visto que tanto o narcisismo quanto o autoerotismo não aparecem apenas como etapas da evolução da libido, mas como princípios constituintes e estruturantes da sexualidade humana.
O autor esclarece que é preciso discernir os dois registros como reflexos de uma oscilação da posição epistemológica de Freud, ora pesquisador que sonha em fazer da psicanálise uma teoria científica, seguindo as exigências do paradigma das Ciências da Natureza, ora pensador, fundador de um novo saber metapsicológico com um registro epistêmico próprio, diferente daquele característico das ciências naturais. Levando em consideração essa oscilação, compreende-se que, na elaboração do conceito metapsicológico de narcisismo, Freud tenha percorrido uma perspectiva nitidamente psicogenética conjuntamente a uma perspectiva propriamente psicanalítica, de tonalidade mais estruturante.
Um autor cujo trabalho foi de suma importância para por em relevo a tonalidade estruturante do narcisismo é Green (1988a, pp. 126-127), que recusa o que chama de "posição genética simplista, que vê no autoerotismo somente uma fase. Para o autor, o texto freudiano deixa claro que nem o autoerotismo nem o narcisismo são somente fases. Concordamos com Green e salientamos uma passagem de Totem e Tabu (Freud, 1913 [1912-13]/2006e, p. 99) onde Freud diz não ser possível tratar com exatidão um suposto estádio narcisista, dando então ênfase ao narcisismo como organização que acompanhará o sujeito em toda sua vida:
Embora ainda não estejamos em posição de descrever com exatidão suficiente as características dessa fase narcisista, na qual os instintos sexuais até então dissociados se reúnem numa unidade isolada e catexizam o ego como objeto, já temos motivos para suspeitar que essa organização narcisista nunca é totalmente abandonada. Um ser humano permanece até certo ponto narcisista, mesmo depois de ter encontrado objetos externos para a sua libido.
Se, por um lado, é verdade queo autoerotismo compreende a fase de uma corporeidade fragmentada, por outro é certo que ele não se restringe a isso. É preciso, conforme adverte Green (1988a, p. 127): "tirar desta noção todas as potencialidades teóricas que ela encerra, nem sempre explicitamente", sendo uma delas o seu aspecto constitutivo dentro da organização narcisista, que se estrutura a partir da atividade reflexiva das pulsões autoeróticas.
A Dimensão do Domínio na Organização Narcisista
Pensar a organização narcisista é pensar necessariamente a alteridade na constituição do ego, a dimensão de domínio atravessa a organização narcisista, sobretudo, na medida em que é sob o domínio do outro que o trabalho de apropriação subjetiva se realiza. A constituição do ego-ideal como efeito de um investimento originário do ego é tributária da projeção do narcisismo dos pais à sua majestade o bebê (Freud, 1914/2006b), o que pressupõe que o desejo de ter um filho perfaz um projeto a ser transmitido ao recém-nascido que, por sua passividade, presta-se perfeitamente a realizá-lo.
Os cuidados ofertados ao bebê trazem consigo esse projeto - do desejo dos pais - que é primeiramente transmitido a nível sensório, uma vez que "as mães conhecem bem os prazeres de pele do bebê - e os seus - e, com suas carícias, suas brincadeiras, elas os provocam deliberadamente", diz Anzieu (1988, p. 60), transmitindo assim mensagens sensoriais próprias à relação singular que ali se estabelece. A reflexividade da atividade autoerótica reflete tais mensagens oriundas dos cuidados do outro. O "autodomínio" do autoerotismo se dá sob o domínio do outro que cobre o autoerotismo da criança, instaurando uma especularidade sensorial essencial ao investimento originário do ego que potencializa a organização narcisista.
É pela noção de Eu-prazer que Freud nos fala deste investimento, conforme está escrito em As pulsões e seus destinos (Freud, 1915/2014, p. 53): "O Eu se encontra originalmente, bem no início da vida anímica, pulsionalmente ocupado, estando, em certa medida, em condições de satisfazer suas pulsões em si mesmo. Denominamos essa condição de narcisismo e essa forma de obter satisfação de autoerótica". Um pouco adiante, alguns fragmentos indicam como o caráter autoerótico da atividade pulsional integra a organização narcisista a partir da noção de Eu-prazer:
O Eu, na medida em que é autoerótico, não tem necessidade do mundo exterior, mas recebe dele objetos, devido às vivências das pulsões de autopreservação [...] Sob o domínio do princípio de prazer ocorre nele um novo desenvolvimento. Ele toma para si, em seu Eu, os objetos oferecidos, desde que eles sejam fontes de prazer, introjeta-os [...] e, por outro lado, expele o que dentro dele se torna causa de desprazer. (Freud, 1915, p. 53)
Esses fragmentos trazem, de forma condensada, a noção de apoio/autoerotismo e sua relação com o narcisismo, o que fica claro se os analisarmos à luz do que discutimos acerca dessa noção a partir de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Desse modo, é possível lê-los da seguinte maneira: as necessidades vitais impelem à busca pelo objeto, porém, na medida em que as experiências com o objeto externo são fontes de sensações prazerosas, despertam pulsões sexuais em zonas erógenas que se desvelam como objetos - objetos-fonte -a serem investidos autoeroticamente e, assim, apropriados pelo psiquismo que emerge como Eu-prazer.
Por outro lado, o desprazer configura-se como uma alteridade negativa que confere essa identidade primária ao Eu do prazer: para poder dizer sim a si mesmo é preciso dizer não ao objeto externo - aqui identificado ao desprazer - o que permitirá à assunção de um "domínio primordial", ou seja, a criação de um espaço interno no qual o ego, como organização, emergirá na instauração de uma ordem fundada no estabelecimento de ligações relacionadas às experiências prazerosas (Green, 1986).
A constituição do Eu-prazer se dá através da erotização do corpo: a "criança chuchadora", diz Freud (1905/2006a, p. 173), "perscruta seu corpo para sugar alguma parte dele" que virá a ser eleita como zona erógena. Acriança explora seu corpo, como o explorador a um continente, a ser delineado em sua atividade autoerótica na medida em que - guiado por sua mãe - o erogeniza.
O Eu-prazer traz a ideia de um Eu fundamentalmente corpóreo, é a apropriação de um Eu-corpóreo sob o primado do prazer que é enunciada, o que faz todo sentido quando o prazer é pensado como referente existencial, como aquilo que nos permite habitar o corpo, torná-lo habitável à medida que é prazeroso. De acordo com Green (2000), haveria um elo entre a experiência subjetiva do prazer e as primeiras formas do sentimento de existir, até aos momentos em que este afeto, alcançando uma particular intensidade, adquire o valor de um referente existencial.
Instaurando o domínio do princípio do prazer está em jogo a atividade reflexiva do autoerotismo como força que potencializa o sentimento de existir, sendo a sua ação positiva que vem a agenciar o investimento originário, estruturante do narcisismo. Conforme ensina Green (1988a), sob o comando deste investimento podemos diferenciar a ação positiva, unificante, do narcisismo a partir do autoerotismo - quando a pulsão é capaz de se satisfazer localmente - ao estádio em que o ego é ele mesmo vivido e apreendido como uma forma total.
Dessa maneira, na discussão acerca da relação entre autoerotismo e narcisismo - realizada em As pulsões e seus destinos (Freud, 1915/2015) - a referência às fases preliminares do sadismo (pulsão de domínio) e do voyeurismo (pulsão de olhar) são de suma importância para o esclarecimento do espelho de dupla face que possibilita a unidade a ser alcançada no narcisismo. Em tal fase preliminar, a pulsão de domínio entra em jogo no trabalho de apropriação do corpo, tal como descrevemos acima, uma vez que o Ego é, antes de qualquer coisa, um Ego corpóreo. Todavia, uma vez que ele não é apenas uma superfície, mas a projeção de uma superfície, o papel totalizante do olhar entra em cena. Há um corpo projetado de dentro, a partir do sentimento corporal, que encontra o reflexo totalizante no olhar do outro:
O espelho estabelecido na superfície da projeção do ego é o ponto de encontro para o corpo projetado de dentro e da imagem do outro, de fora. Ambas as faces desse espelho, em outras palavras, refletiriam, criando uma imagem cujos componentes pertencem tanto ao lado de dentro como ao lado de fora. (Green, 1988b, p. 100)
Podemos pensar que a dimensão de domínio atravessa a organização narcisista nas duas faces do espelho que se encontram para a configuração da unidade que vem a ser adquirida na organização narcisista. Nessa perspectiva, o ego é, inicialmente, delineado pela atividade autoerótica em seu trabalho de incorporação, isto é, a apropriação do ego corpóreo, cuja forma unificada será tributária do olhar fascinado que o "transforma em testemunho da forma do semelhante" (Green, 1988a, p. 44).
Segundo Bleichmar (1985), é o olhar fascinado dos pais que configura o ego-ideal - um dos sentidos de fascinar é dominar com o olhar (Dicionário Houaiss, 2001) - é sob o domínio do olhar do outro que o sujeito é capturado em uma imagem que dá forma ao seu ego-corpóreo ainda fragmentado, sendo algo de novo a ser aduzido ao autoerotismo, a nova ação psíquica para dar forma ao narcisismo (eine neue psychische Aktion, um den Narzissmus zu gestalten [Freud, 1914/1924, p. 7]) que assim esboça uma unidade.
É a imagem que fascina, é pela imagem de seu corpo que Narciso se apaixona, sendo pela imagem idealizada do olhar dos pais que o ego-corpóreo pode ser apreendido como unidade. O júbilo da criança diante de sua imagem unificada é reflexo do olhar fascinado dos pais, o qual veicula os cuidados a ela ofertados, signo da segurança necessária à continuidade de sua organização narcísica.
A habitual brincadeira dos pais que cobrem o rosto com as mãos e depois, para a alegria da criança, o descobrem, diz respeito a tal júbilo, o júbilo daquele que se descobriu no olhar desse outro significativo, cujo desaparecimento, então, não é mais vivido como angustiante, uma vez que as experiências de prazer advindas dos cuidados do outro já foram introjetadas e convertidas em fonte de bem-estar e segurança. Já existe, portanto, a esperança que possibilita ao sujeito manter sua integridade narcísica fora deste olhar.
A esperança possibilita a brincadeira e anuncia a entrada da criança no universo simbólico, sendo o caminho de libertação do domínio absoluto do outro para a ascensão de um domínio próprio. Sob o domínio do simbólico a frágil unidade egóica esboçada na imagem pode ganhar consistência através da palavra. É a palavra que nomeia o sujeito e ratifica sua unidade, pois quando se diz "Tu és Bernardo", "Tu és Alice", o nome com que se designa o sujeito fala dele como se fosse uma unidade a partir da qual se vinculam os seus atributos singulares (Bleichmar, 1985).
É nesse registro simbólico que o sujeito encontra o reconhecimento em um universo mais amplo, no registro cultural, condição de possibilidade para sua inserção no social, o que abre o horizonte para um domínio mais abrangente, para além das relações com os outros significativos que marcaram o seu narcisismo.
Sob o Domínio do Simbólico
A dimensão do domínio atrelada ao simbólico configura a "grande realização cultural" que, segundo Freud, seu neto realizara com o jogo do Fort Da, a partir dela pôde elaborar psiquicamente a ausência de sua mãe e, assim, suportá-la sem protestar (Freud, 1920/2006g, pp. 26-27). Freud descreve seu neto como um "bom menino" que desenvolve um hábito "perturbador", um jogo de fazer aparecer e desaparecer, no qual atira longe um carretel emitindo um longo e arrastado 'o-o-o-o' (fort/foi), para depois puxá-lo de volta saudando seu reaparecimento com um alegre 'da' (ali). O jogo era realizado repetidamente com um contentamento que atingia seu ápice no momento do retorno do carretel.
A capacidade de representar a partida e retorno da mãe através da brincadeira de jogar longe e trazer de volta o carretel, acompanhada dos signos linguísticos Fort e Da, diz respeito à negatividade da ausência materna como condição de possibilidade à positividade de um domínio crescente, relativo à transformação do aparelho psíquico que dá os primeiros passos no sentido da simbolização.
A interpretação que Freud (1920/2006g, p. 27) nos oferece a esse jogo radicaliza a hipótese de uma pulsão de domínio, independente do princípio do prazer, que atua em prol da apropriação das experiências de passividade. A criança, inicialmente em uma situação passiva, era dominada pela experiência; repetindo-a em jogo, porém, assumia papel ativo, no caso, com o jogo do carretel, foi possível, simbolicamente, assumir o domínio sobre a presença e ausência da mãe. Em outra perspectiva, discutida por Freud (1920/2006g, p. 27), jogar longe o objeto, de maneira que fosse 'embora', poderia satisfazer um impulso da criança suprimido na vida real, de vingar-se da mãe por afastar-se dela. Nesse caso, possuiria significado desafiador, como se a criança estivesse dizendo "pois bem, vá embora! Não preciso de você. Sou eu que estou mandando você embora".
Sob quaisquer dessas interpretações está em relevo o domínio, atrelado à necessidade de elaborar psiquicamente uma experiência passiva e potencialmente traumática através da repetição. A repetição possibilita a passagem da passividade para a atividade como forma de dominar psiquicamente uma experiência de perda, no caso em questão, a ausência da mãe representando a perda de uma realidade que vem a ser substituída simbolicamente na brincadeira.
Na brincadeira, diz Green (2013), a perda e a substituição andam de mãos dadas, uma vez que a substituição cobre a ameaça da perda, disfarçando-a no brincar da criança. A criança brinca com a ameaça para dela se livrar, e assim fazendo liberta-se do domínio absoluto do objeto, que é apropriado na brincadeira. Esse movimento trabalha na consolidação dos limites eu-outro à medida que o brincar pressupõe o desenvolvimento do que Winnicott (1975) trata em termos de área intermediária, onde estão presentes o Eu e o objeto em um espaço potencial de trocas que vem a enriquecer o psiquismo.
A primazia da dimensão de domínio na área intermediária é destacada por Freud no artigo A sexualidade feminina (Freud, 1930/2006h), em um fragmento que, em sua obra, é provavelmente o mais substancial no tocante ao caráter essencial da dimensão de domínio no psiquismo. Freud enfatiza claramente que a passagem da passividade para a atividade é uma tendência que, desde os primórdios da vida psíquica, ocupa lugar central no psiquismo e, destarte, na relação com a alteridade ou, mais precisamente, no que emerge desta relação:
[...] Pode-se facilmente observar que em todo campo de experiência mental, não simplesmente no da sexualidade, quando uma criança recebe uma impressão passiva, ela tende a produzir uma reação ativa. Tenta fazer ela própria o que acabou de ser feito a ela. Isso faz parte do trabalho que lhe é imposto de dominar o mundo externo e pode mesmo levar a que se esforce por repetir uma impressão que teria toda razão para evitar, por causa de seu conteúdo aflitivo.
Também o brinquedo das crianças é realizado para servir ao fim de suplementar uma experiência passiva com um comportamento ativo, e desse modo, por assim dizer, anulá-la. Quando um médico abre a boca de uma criança, apesar da resistência dela, para examinar-lhe a garganta, essa mesma criança, após a partida daquele, brincará de ser o médico ela própria e repetirá o ataque com algum irmão ou irmã menor que esteja tão indefeso em suas mãos quanto ela nas do médico. Temos aqui uma revolta inequívoca contra a passividade e uma preferência pelo papel ativo.
As primeiras experiências sexuais e sexualmente coloridas que uma criança tem em relação à mãe são, naturalmente, de caráter passivo. Ela é amamentada, alimentada, limpa e vestida por esta última, e ensinada a desempenhar todas as suas funções. Uma parte de sua libido continua aferrando-se a essas experiências e desfruta das satisfações e elas relacionadas: outra parte, porém, esforça-se por transformá-las em atividade. Em primeiro lugar, a amamentação ao seio dá lugar ao sugamento ativo. Quanto às outras experiências, a criança contenta-se quer em se tornar auto-suficiente - isto é, executando com ela própria com sucesso o que até então fora feito para ela -, quer em repetir suas experiências passivas, sob forma ativa, no brinquedo (Freud, 1931, pp. 244-245).
A vivência passiva de perda do objeto desejado, ou de algum evento indesejado, enseja a atividade de substituição que, nos primórdios da vida psíquica, se realiza na experiência alucinatória de satisfação. Em sua esteira surge o autoerotismo e, após algum tempo, a atividade lúdica entra em cena como forma privilegiada de substituir a realidade indesejável. Estamos no registro dos fenômenos transicionais (Winnicott, 1975), do momento que o bebê passa do domínio imediato (onipotente/mágico) dos objetos para o domínio intermediário (manipulação/simbolização), mais adaptado à realidade. É um fenômeno em que a ameaça de perda, ou ataque, do objeto, engendra a atividade lúdica que dele se apropria, ou sobre ele triunfa, visto que o manipula, o transforma em signos, o historiciza em um faz-de-conta, o encena (etc.), e assim o domina psiquicamente.
Nesse sentido, no artigo Escritores criativos e devaneios (Freud, 1908[1907]/2006i), o brincar infantil é estreitamente relacionado às fantasias e devaneios do adulto e à criação dos romances dos escritores criativos. Na brincadeira, diz Freud, "a criança cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade" (1908[1907]/2006i, p. 135).O escritor criativo faz o mesmo ao escrever suas histórias, tal como as pessoas que constroem os castelos no ar que chamamos de devaneios. A construção das fantasias e dos romances, como uma extensão do brincar infantil, situa-se, igualmente, na área intermediária, no limite entre a realidade interna e externa, de modo que a própria linguagem, diz Freud (1908[1907]/2006i), p. 136),
preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética. Dá [em alemão] o nome de 'Spiel' ['peça'] às formas literárias que são necessariamente ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Fala em 'Lustspiel' ou 'Trauerspiel' ['comédia' e 'tragédia': literalmente, 'brincadeira prazerosa' e 'brincadeira lutuosa'], chamando os que realizam a representação de 'Schauspieler' ['atores': literalmente, 'jogadores de espetáculo'].
O brincar com a realidade que move a atividade lúdica infantil e a criação de histórias fantásticas carrega desejos que articulam passado, presente e futuro. A singularidade das relações intersubjetivas com os outros significativos desperta desejos que refletem a singularidade das brincadeiras e das histórias, elaboradas a partir de uma situação motivadora no presente que desperta um dos desejos principais do sujeito que vem a ser projetado na brincadeira/fantasia.
Tratando das brincadeiras infantis, Freud nos diz que costumam ser motivadas pelo "desejo de ser grande", de modo que a criança está sempre "brincando 'de adulto', imitando em seus jogos aquilo que conhece da vida dos mais velhos" (1908[1907]/2006i, p. 137);naturalmente que os mais velhos em questão são aqueles que habitam as relações intersubjetivas da criança, os seus modelos de identificação. Os jogos imitativos, portanto, referem-se às situações vividas com eles. Um exemplo é a menina que, com base em sua relação com a mãe, deseja assumir o seu lugar: "realiza esses desejos ativos de maneira indireta, em seu brinquedo com a boneca, brinquedo em que representa a mãe, e a boneca, a filha" (Freud, 1930/2006h, p. 245).
No tocante as fantasias e devaneios Freud (1908[1907]/2006i, pp. 138-139) nos dá o exemplo do pobre órfão que, ao se dirigir a uma firma onde talvez encontre trabalho, permite-se um devaneio que entrelaça passado, presente e futuro:
[...] O conteúdo de sua fantasia talvez seja, mais ou menos, o que se segue. Ele consegue o emprego, conquista as boas graças do novo patrão, torna-se indispensável, é recebido pela família do patrão, casa-se com sua encantadora filha, é promovido a diretor da firma, primeiro na posição de sócio do seu chefe, e depois como seu sucessor. Nessa fantasia, o sonhador reconquista o que possui em sua feliz infância: o lar protetor, os pais amantíssimos e os primeiros objetos do seu afeto. Esse exemplo mostra como o desejo utiliza uma ocasião do presente para construir, segundo moldes do passado, um quadro do futuro.
O par perda/substituição é marcante tanto nas brincadeiras quanto nas fantasias e devaneios, tal como é desde os primórdios da vida psíquica, tal como é na estruturação do narcisismo, de maneira que a teorização das fantasias e brincadeiras do artigo Escritores criativos e devaneios carrega o selo do conceito de narcisismo, tal como é enunciado em 1914 e 1915, isto é, em termos de organização que acompanha o sujeito por toda a sua vida. Com efeito, partindo de romances e novelas que gozam de grande popularidade, Freud salienta que o enredo de tais estórias apresenta invariavelmente a figura do herói como aquele que é dotado de toda perfeição: "Sua Majestade o Ego, o herói de todo devaneio e de todas as histórias" (Freud, 1908 [1907], p. 140).
A figura do herói e demais personagens da história, divididos entre bons, aliados do ego, e maus, seus inimigos, corresponde à organização narcisista: a figura do herói, que "se acha possuído de toda perfeição e valor" personifica o ideal "substituto do narcisismo perdido" (Freud, 1914/2006b, pp. 100-101); e a divisão pueril entre bons e maus corresponde à relação inicial do Ego-prazer com o mundo externo, "dividido entre uma parte prazerosa, que incorporou a si, e um resto que lhe é estranho, que projeta no mundo externo e sente como hostil" (Freud, 1915/2014, p. 55).
A estrutura narcísica não esconde sua natureza e o ego é representado de modo a reencontrar a onipotência de "Sua majestade o bebê" através do herói que encarna os ideais do ego do sujeito. Analogamente, as atividades que vem a empreender em sua vida trazem a marca do narcisismo, uma vez que os ideais substitutos do narcisismo infantil se constituem pela valoração dos outros significativos, os quais narcisam determinadas atividades que, desta maneira, configuram os seus ideais do ego (Bleichmar, 1985).
A polaridade atividade-passividade se faz aqui igualmente presente, pois é a valorização - atravessada pelo olhar do outro - que enseja a realização de determinada atividade que permite ao sujeito construir seu domínio narcísico no social. É a alegria que "experimenta o sujeito consigo mesmo quando se reconhece eficiente no exercício de uma atividade narcisada", diz Bleichmar (1985, p. 30), como "o amor pela matemática da criança que se considera dotada de habilidade para o cálculo, do terapeuta pela terapia quando esta outorga-lhe o trono desejado", ou "do músico por seu instrumento na medida em que esse permite-lhe reafirmar seus dotes. Acaba-se por amar aquilo que faz a gente sentir-se amado".
Muito embora o narcisismo dos pais seja o projeto da futura estrutura narcísica do filho, a entrada no universo simbólico implica na saída do domínio narcísico dos pais para construir seu próprio, assumindo assim a tarefa de construir um projeto que, muito embora seja tributário do projeto narcísico dos pais, demarca um novo domínio subjetivo.
Considerações Finais
Como buscamos mostrar, ao longo da teorização freudiana, o movimento de assenhorear-se das experiências vividas passivamente com o objeto, como condição para apropriar-se de si, se faz sempre presente da experiência alucinatória de satisfação até os estágios onde o ego já ascendeu ao registro simbólico. Quando, em 1920, é enunciada a hipótese de "que o impulso para elaborar na mente alguma experiência de dominação, de modo a tornar-se senhor dela, pode encontrar expressão como um evento primário e independente do princípio de prazer" (Freud, 1920/2006g, p. 27), a primazia da dimensão do domínio no psiquismo, que já se fazia notar desde os Três ensaios, é claramente afirmada.
Tal primazia parece assinalar um redimensionamento dos princípios que regem a teoria freudiana, a saber, a tarefa primordial de domínio das excitações figuraria como o princípio mais fundamental do funcionamento psíquico, orientado a dominar o mundo externo em sintonia com o domínio interno. É na atividade de domínio que o sujeito se apropria de si à medida que se apropria das suas vivências, ou seja, construindo a sua maneira singular de domínio interno/externo ele edifica seu ego.
Nesse sentido, caberia considerar, tal como pensa Derrida (2001), um princípio de domínio para além ou aquém dos princípios de prazer/realidade? Sendo este o princípio que nortearia o funcionamento do psiquismo em seus desdobramentos singulares? Isto é, os diversos modos de funcionamento que cada um encontra em função de suas (im)possibilidades? Ser o que se pode ser em virtude das circunstâncias que envolvem a apropriação subjetiva operada pelo narcisismo sob a égide deste princípio de domínio, verdadeiro imperativo de um exercício de poder, de ascendência, de apropriação, etc...
Tais considerações não implicariam situar a metapsicologia freudiana no horizonte epistemológico da modernidade? Não estaria em consonância com o projeto da modernidade enunciar que o aparelho psíquico está, acima de tudo, "destinado a dominar as excitações que de outra forma teriam efeitos patogênicos"? (Freud, 1914/2006b, p. 92). Sendo, portanto, desde o início, imposto à criança o trabalho "de dominar o mundo externo" (Freud, 1931) uma tarefa a qual ela não pode se furtar, pois "em todo campo de experiência mental, não simplesmente no da sexualidade, quando uma criança recebe uma impressão passiva, ela tende a produzir uma ativa" (Freud, 1930/2006h, p. 241), de modo a assenhorear-se da experiência.
Caberia então investigar os pressupostos epistemológicos da teoria freudiana. A necessidade de dominar o mundo externo e a si próprio são caráteres essenciais do ideário da modernidade. Como e em que medida a presença da dimensão de domínio na metapsicologia freudiana está filiada ao projeto da modernidade é uma questão a ser investigada.
Referências
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Endereço para correspondência:
Pedro Henrique de Oliveira Efken
Email: pedro_efken@hotmail.com
Recebido em: 11/08/2016
Revisado em: 20/01/2017
Aceito em: 03/04/2017
1 L'emprise est, si l'on veut, lebrassé culier de la pulsion, ce qui assure pouvoir sur l'objet et se metauservice de la réalisation de la satisfaction.