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Revista Subjetividades
Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.19 no.1 Fortaleza Jan./Apr. 2019
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v19i1.e8845
RELATOS DE PESQUISA
A (in)visibilidade do graffiti e da pichação: subjetivando juventudes?
The (in)visibility of graffiti and tagging: subjecting youths?
La (in)visibilidade del graffiti y de la pintada: ¿Subjetivando juventudes?
La (in)visibilité des graffiti et des tags: est-ce qu'on divise les jeunesse?
Andressa Sauzem Mayer (Lattes)I; Lucas Motta Brum (Lattes)II; Samara Silva dos Santos (Lattes)III
IPsicológa, mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria. Pós-graduanda em Clínica Psicanalítica pela Universidade Luterana do Brasil
IIPsicólogo formado pelo Centro Universitário Franciscano. Mestre em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria
IIIProfessora adjunta do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria
RESUMO
Esse trabalho tem como objetivo compreender o significado do graffiti e da pichação para os jovens transgressores, assim como as motivações, sentimentos e relações sociais implícitas nessas práticas. Fizeram parte deste estudo seis jovens em conflito com a lei, que possuíam envolvimento com pichação numa cidade no interior do estado do Rio Grande do Sul. Os critérios de seleção para a participação neste estudo foram: possuir envolvimento com pichação ou graffiti, ter idade entre 15 a 29 anos. Como instrumento para a coleta de dados, foi utilizada uma entrevista com roteiro semiestruturado, que abordou os seguintes tópicos: dados sociodemográficos, informações sobre as vivências relacionadas ao envolvimento com graffiti e pichação, e os significados atribuídos a essa infração. Os dados obtidos com as entrevistas foram analisados qualitativamente. As informações foram organizadas em duas categorias temáticas: "Adrenalina e Visibilidade" e "Expressão e Subjetividade". Os resultados evidenciaram questões relacionadas à necessidade dos jovens de se expressar e se comunicar, enquanto sujeitos, ressaltando a importância de compreender por quais espaços circulam, que lugar ocupam no contemporâneo e o que querem por meio dessas intervenções. Por fim, destaca-se a forma com que a juventude tem se relacionado com o risco e como tem sido tratada no contemporâneo, em meio a espaços restritos e limitados, em que a marginalização e a criminalização dessas manifestações sociais se fazem presentes. Desse modo, ressaltam-se as potencialidades do graffiti e da pichação enquanto poder criativo, transformador e subjetivador para além da transgressão.
Palavras-chave: juventude; arte urbana; subjetividade; ato infracional; risco.
ABSTRACT
This work aims to understand the meaning of graffiti for young offenders, as well as the motivations, feelings and social relations implicit in these practices. This study included six young people in conflict with the law, who had involvement with graffiti in a city in the state of Rio Grande do Sul. The selection criteria for participation in this study were: having involvement with graffiti and aged between 15 to 29 years. As an instrument for data collection, an interview with a semi-structured script was used, this covered the following topics: sociodemographic data, information on the experiences related to graffiti involvement, and the meanings attributed to this infraction. The data obtained from the interviews were analyzed qualitatively. The information was organized in two thematic categories: Adrenaline and Visibility and Expression and Subjectivity. The results evidenced issues related to the need of young people to express them and communicate as subjects, stressing the importance of understanding for what spaces they circulate what place they occupy in the contemporary and what they want through these interventions. Lastly, it highlights how youth has been related to risk and how it has been treated in the contemporary, amid restricted and limited spaces, in which the marginalization and criminalization of these social manifestations are present. In this way, the potentialities of graffiti are highlighted as creative, transformative and subjectivizing power beyond transgression.
Keywords: youth; urban art; subjectivity; infraction; risk.
RESUMEN
Este trabajo tiene el objetivo de comprender el significado del graffiti y de la pintada para los jóvenes infractores, sus motivaciones, sentimientos y relaciones sociales implícitas en estas prácticas. Hicieron parte de este trabajo seis jóvenes con problemas con la ley, que estaban involucrados con pintadas en una ciudad en el interior del Rio Grande del Sur. Los criterios de selección para la participación en este estudio fueron: estar involucrado con graffiti o pintada, tener entre 15 y 29 años. Como instrumento para colectar los datos se utilizo una entrevista como plan semiestructurado, con enfoque en los siguientes tópicos: datos socio demográficos, informaciones sobre las experiencias relacionadas con la participación con graffiti y la pintada, y los significados atribuidos a esta infracción. Los datos obtenidos con las entrevistas fueron analizados cualitativamente. Las informaciones fueros ordenadas en dos categorías temáticas: "Adrenalina y Visibilidad" y "Expresión y Subjetividad". Los resultados evidenciaron cuestiones relacionadas a la necesidad los jóvenes se expresaren y se comunicaren, mientras sujetos, subrayando la importancia de comprender por cuales espacios circulan, qué lugar ocupan en el contemporáneo y qué quieren por medio de estas intervenciones. Por fin, se enfoca la forma como la juventud está relacionándose con el riesgo y cómo está siendo tratada en el contemporáneo, en medio de espacios restringidos y limitados, en que la marginación y la criminalización de estas manifestaciones sociales están presentes. De este modo, se enfoca las potencialidades del graffiti y de la pintada mientras poder creativo, transformador y subjetivador para Allá de la infracción.
Palabras clave: juventud; arte urbana; subjetividad; acto infraccional; riesgo.
RÉSUMÉ
Ce travail a comme objectif comprendre la signification de la graffiti et de la pichação pour jeunes transgresseurs, ainsi que les motivations, sentiments et relations sociaux implicites dans ces pratiques. Six jeunes qui faisaient des tags à une municipalité au Rio Grande do Sul (Brésil) ont participé à cette étude . Les critères de sélection pour participer à cette étude étaient les suivants: avoir une corrélations avec graffiti ou tag et être âgé de 15 à 29 ans. L'instrument de collecte de données a été un entretien avec un scénario semi-structuré, qui couvrait les sujets suivants: données sociodémographiques, informations sur les expériences liées au graffiti et au tag, et les significations attribuées à cette infraction. Les données obtenues lors des entretiens ont été analysées qualitativement. L'information a été organisée en deux catégories thématiques: "Adrénaline et Visibilité" et "Expression et Subjectivité". Les résultats ont mis en évidence des problèmes liés à la nécessité pour les jeunes de s'exprimer et de communiquer en tant que sujets, soulignant l'importance de comprendre où ils circulent, quelle est la place qu'ils doivent occuper au moment présent et ce qu'ils veulent à travers ces interventions. Enfin, on met en évidence la manière comme le jeune se met au risque et comme il est traité aujourd'hui, dans des espaces restreints où l'exclusion sociale et la criminalisation de ces manifestations sociales sont présentées. Ainsi, les potentialités des graffitis et des tags sont mises en évidence comme un pouvoir créatif, transformateur et subjectif au-delà de la transgression.
Mots-clés: jeunesse; art urbain; la subjectivité; infraction; risque.
A estrutura urbana tem mudado em conjunto com as transformações da sociedade. A espacialização e a temporalidade efetivam esse processo através da experiência subjetiva do sujeito (Birman, 2012). Dessa forma, a pichação e o graffiti surgem como ferramentas da juventude atreladas à forma como as relações sociais têm se estabelecido na contemporaneidade.
Nesse contexto, essas inscrições sociais se manifestam por meio de um sujeito disposto a pintar uma imagem comunicativa, legível ou não para a cidade. Entretanto, o graffiti e a pichação são reconhecidos como manifestações sociais de caráter ilegal. No Brasil, distinguem-se essas duas práticas pelo critério estético e consensual, ou seja, a grafitagem se torna possível no caso de o proprietário, no âmbito privado, ou de órgãos competentes, no público, consentirem a arte (Lei n. 12.408, 2011). Assim, surge a possibilidade de responsabilizações resultantes desse risco. Para adolescentes, menores de 18 anos, o cumprimento de medida socioeducativa (Lei n. 12.594, 2012) e, para jovens, maiores de 18 anos, a pena de detenção de 03 meses a 01 ano e aplicação de multa (Lei n. 9.605, 1998).
As origens sócio-históricas do graffiti e da pichação apontam para intervenções sociais e manifestações culturais vinculadas a reivindicações estudantis no contexto parisiense, na década de 1960. Posteriormente, no cenário nova-iorquino, na década de 1970, jovens de minorias étnicas latino-americanas e negras utilizaram essas expressões para demarcar seu território, suas identidades grupais e comunicar à população a situação de miséria e opressão que viviam (Silveira, 1991). Na história brasileira, esse fenômeno social emerge vinculado, principalmente, às práticas de resistência no período da ditadura, quando os muros eram riscados a fim de criticar e denunciar problemas sociais e políticos (Soares, 2015).
Dos muros às ruas, os movimentos do graffiti e da pichação se proliferaram para outros espaços, diversificando seu poder de intervenção sobre o meio urbano pela produção de mensagens, assinaturas (tags), marcas de gangues, registros pessoais, poéticos, rabiscos, desenhos e painéis (Silveira, 1991; Wainer & Oliveira, 2013). Ao longo das práticas, houve o aprimoramento e a valorização, principalmente, dos desenhos, que passaram a ser chamados de graffitis figurativos. Em São Paulo, existe um forte diálogo entre o graffiti e o mercado publicitário, sendo valorizado esteticamente por empresas, marcas têxtis, midiatizando esse recurso visual e comunicativo (Ivo, 2007; Silveira, 1991). Esse incentivo acaba marginalizando ainda mais a pichação e popularizando o graffiti, dissociando suas origens (Nascimento, 2015).
Sendo assim, se torna necessário aprofundar as particularidades dessas duas intervenções sociais e suas nuances no contemporâneo. Nas pichações, encontram-se a possibilidade de uma linguagem mais codificada, considerada uma marca dos excluídos, somada à criminalização da prática (Silveira, 1991; Zan, Batista, Campos, Raggi & Almeida, 2010). O graffiti acaba ocupando um lugar mais artístico, o qual é incentivado socialmente. As palavras são desenhadas e construídas em conjunto com imagens que utilizam os espaços urbanos como possibilidade de comunicação entre as expressões e a recriação de sujeitos (Furtado & Zanella, 2009). Portanto, independente do recurso visual, essas intervenções sociais buscam, a partir da mudança estética da cidade, forçar os transeuntes a reconhecê-las, tornando-se visíveis (Furtado & Zanella, 2009; Spinelli, 2007), embora, muitas vezes, ignorando aqueles que as criam.
Outras questões também demonstram estar implicadas nessas práticas. Assim, no estudo de Ventura (2009), as pinturas e assinaturas que compõem o ambiente urbano são percebidas como produtos artísticos e simbólicos que possuem materialidade, tanto na ótica patrimonialista do código penal quanto na reprodução de violências sofridas. Para alguns jovens que utilizam desses recursos, a dor de serem reprimidos dentro do sistema socioeconômico vigente ganha um novo sentido com essa arte, representando toda a discriminação e violência a que estão sujeitos no cotidiano. Os graffitis e as pichações se transformam em uma lembrança visual constante dessa condição social, apropriando-se dos espaços e desacomodando os demais através da reflexão desses sentimentos (Silva, 2004; Spinelli, 2007; Ventura, 2009). Os jovens, através dessas intervenções, buscam a expressão, a liberdade e a transgressão nos espaços urbanos. Além disso, podem ressignificar suas questões conforme suas necessidades subjetivas, ganhar respeito entre os demais pichadores e, por conseguinte, tornar-se visível e valorizado nos espaços utilizados (Hamann, Cardoso, Tedesco & Pizzinato, 2013; Ivo, 2007; Ventura, 2009).
Essas intervenções possuem também um caráter comunicativo e aventureiro. Os autores de pichações e de graffitis conquistam um status de artista, com reconhecimento e fama, valorizado pelo seu grupo social, embora sejam discriminados e rechaçados por grande parte da população (Spinelli, 2007; Ventura, 2009). É possível compreender que, para a juventude, o conceito de lazer e entretenimento parece se confundir com o movimento de se colocar em risco (Sebenello, Kleba & Keitel, 2016). Mas, apesar do prestígio que esses jovens adquirem ao longo de suas práticas, a articulação entre visibilidade e anonimato também acaba por fazer parte dessa lógica (Campos, 2009). Dessa forma, o graffiti e a pichação se espalharam pelo universo jovem. Esses recursos visuais geralmente eram associados às ações dos jovens da periferia, no entanto o estudo de Magnani (2005) sobre juventude, práticas culturais e redes de sociabilidade no contexto metropolitano pelo viés da etnografia indicou que essas formas de manifestação social podem não estar vinculadas apenas à classe social, mas também a uma afinidade com um estilo de vida e com diferenças sobre interesses específicos. Percebe-se que os atravessamentos sociais e culturais em conjunto com a possibilidade dessas práticas contemplam as diversas formas de subjetividade da juventude e suas demandas de singularidades.
Nesse sentido, as problemáticas emergentes revelam esse cruzamento em que se encontram a juventude, a cultura e as subjetividades no contemporâneo. A juventude se utiliza das disposições e dos desamparos advindos do consumismo, da mídia, da exacerbação da sexualidade e do corpo, justificados por uma ilusória liberdade (Kehl, 2004). Delineia-se pela forma de ser/estar no mundo e pela relação que se estabelece com o tempo e o corpo, ou seja, as definições vão além de uma faixa etária, passando por determinações exteriores e experiências subjetivas (Trancoso & Oliveira, 2015). Associada à juventude, surge o malestar contemporâneo e a inscrição de registros psíquicos pautados, principalmente, na ação, na intensidade e no corpo (Birman, 2012). Os jovens capitalizam as questões da atualidade, as ações e emoções de experimentar, duvidar, descobrir, e acompanham suas singularidades e maneiras de lidar e simbolizar tais dilemas (Abramovay et al., 2010).
É possível compreender os recursos psíquicos, corpóreos, culturais e sociais implicados na prática do graffiti e da pichação, e como essas intervenções abarcam suas singularidades e produzem subjetividades distintas. O estudo desenvolvido por Zanella, Brito, Carvalho e Rozenfeld (2014), através de um projeto de pesquisa-intervenção com jovens e as possibilidades de modificação da cidade via oficinas estéticas de graffiti, contribuiu para compreender esse fenômeno social. Nesse projeto, problematiza-se a potencialização da produção de encontros entre jovens, com seus pares e consigo mesmos, além da estrutura urbana e a construção de subjetividades por meio da arte de rua (Zanella, Brito, Carvalho & Rozenfeld, 2014).
Essas novas formas de protagonismo juvenil, embora transgressoras, contribuem para a produção de subjetividade no espaço e tempo compartilhados com a contemporaneidade e suas implicações. As provocações estéticas flertam com transgressão, compondo as diferentes compreensões e possibilidades de ação de poder nas cidades, que exigem uma ampliação sobre as noções de arte e a legitimidade de um campo comunicativo baseado no risco (Pizzinato, Tedesco & Hamann, 2017).
Ao explorar a produção de conhecimento da Psicologia no campo da juventude e da transgressão é possível identificar diferentes compreensões e explicações para o fenômeno da produção de graffiti e pichação. Há estudos que apresentam uma compreensão na qual o envolvimento com atos infracionais pode estar associado à exposição desses jovens, ao longo de sua trajetória de desenvolvimento, a fatores de risco pessoais, familiares e sociais (Costa & Assis, 2006; Gallo & Williams, 2005; Nardi & Dell'Aglio, 2010), e há estudos que destacam a transgressão enquanto potencial comunicativo e uma possível via de subjetivação (Silva, 2004; Spinelli, 2007; Zanella, Brito, Carvalho & Rozenfeld, 2014). Assim, tendo em vista a importância de explorar a temática relacionada à juventude e às práticas do graffiti e da pichação, compreender os sentidos e as ações que essas práticas adquirem para seus autores, o presente estudo investigou os significados do graffiti e da pichação para jovens transgressores.
Método
Esta pesquisa foi desenvolvida a partir da observação visual do aumento de graffitis e pichações no espaço urbano. Como proposta de enfrentamento desse conjunto de transgressões, foram organizadas operações policiais. Tais operações tinham como objetivo responsabilizar os jovens envolvidos por meio da repressão e da contingência, inserindo-os no sistema socioeducativo ou penitenciário.
As instituições de cumprimento de medida socioeducativa acabaram se organizando de forma particular para dar conta dessas ações. Assim, o Centro de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), no que se refere ao acompanhamento de medidas socioeducativas de meio aberto, desempenhou esse trabalho com uma Organização Não Governamental (ONG).
A quantidade de jovens investigados e indiciados pelo envolvimento em práticas de graffiti e pichação foi expressiva, especialmente no período de desenvolvimento da pesquisa, que se deu entre 2014 e 2015. Desse modo, foi criada uma medida socioeducativa especial, que se tratava da medida de Liberdade Assistida, a qual atendia, notadamente, jovens envolvidos com graffiti e pichação. O CREAS ficou responsável por acompanhar os que cumpriam medidas de Prestação de Serviço à Comunidade, enquanto a ONG executava as medidas de Liberdade Assistida.
No sentido de proteger os envolvidos, a fim de garantir o sigilo, a confidencialidade dos relatos e a impossibilidade de identificação dos jovens, adotou-se uma descrição metodológica do estudo de maneira ampliada. As intervenções sociais que pintam, colorem e desafiam as cidades parecem ter maiores impactos e ser motivo de perturbação no interior das grandes metrópoles, locais característicos dessas expressões.
Participantes
Desse modo, fizeram parte deste estudo seis jovens em conflito com a lei, que possuíam envolvimento com pichação numa cidade do interior do estado do Rio Grande do Sul. A idade dos jovens variou de 16 a 28 anos (M=19,2; DP=4,1) e a escolaridade, de ensino fundamental completo a ensino superior incompleto. Todos eram do sexo masculino. Os critérios de seleção para a participação nesse estudo foram: possuir envolvimento com pichação ou graffiti e ter idade entre 15 e 29 anos (baseando o critério utilizado no Estatuto da Juventude, 2013). A Tabela 1 apresenta as principais características dos participantes. Os jovens que cumpriam medida socioeducativa foram acessados pelo CREAS da cidade, e os que já haviam cumprido medida foram acessados conforme um processo de indicação, denominado bola de neve. A prática de amostragem em bola de neve se mostra adequada para estudar grupos de difícil acesso, tendo em vista o fenômeno investigado, que envolve um comportamento ilegal e marginalizado socialmente. O uso dessa estratégia consiste no acesso aos participantes por meio de indicação. Inicialmente, por informantes-chaves e, posteriormente, por outros participantes da pesquisa. Assim, essa indicação acontece porque os indivíduos se conhecem ou compartilham da experiência de vivenciar o fenômeno investigado, possibilitando um maior alcance da pesquisa por meio de redes sociais de indicação (Penrod, Preston, Cain & Starks, 2003; Vinuto, 2014). Aos adolescentes que cumpriam medida socioeducativa foi questionado se conheciam e poderiam indicar para participar da pesquisa algum jovem que também já tivesse cumprido medida em função do envolvimento com pichação.
Procedimentos de acesso aos Participantes, Coleta de Informações e Instrumentos
Para o desenvolvimento da pesquisa foi realizado contato com a Secretaria de Desenvolvimento Social, responsável pelas instituições que oferecem serviços para atender adolescentes e jovens que cumprem medida socioeducativa. Após a concordância institucional, foi estabelecido contato com a psicóloga e o técnico coordenador das medidas socioeducativas do CREAS. Foi marcado um encontro com cada jovem para a realização das entrevistas.
O acesso aos participantes, denominados como informantes-chaves, ocorreu por meio da inserção em um grupo de estudos, com profissionais de diferentes áreas do conhecimento e da comunidade, que se dedicava a refletir sobre essas intervenções. Os encontros aconteceram ao longo de, aproximadamente, seis meses, com periodicidade quinzenal e, posteriormente, mensal. Nesses encontros eram discutidas questões em torno dos estudos desenvolvidos pelos colegas sobre a problemática, as possíveis reverberações das ações sociais e policiais repressoras, e a inserção em espaços potenciais de diálogo com a comunidade, a sociedade e a academia. A utilização da bola de neve se tornou viável, inicialmente, pela participação dos pesquisadores no grupo de estudos, propiciando uma interlocução com a comunidade e, assim, com os informantes-chaves. Como forma de registro das interações e de coleta de informações, foi utilizado também um diário de campo ao longo da pesquisa, recurso de anotações e impressões.
As entrevistas foram realizadas em diferentes locais. Primeiramente, na própria instituição onde os participantes estavam vinculados à medida socioeducativa e, posteriormente, numa sala cedida pela universidade, para os demais participantes, tendo duração média de 40 min.
Como instrumento para a obtenção das informações foram realizadas entrevistas individuais semiestruturadas a partir de um roteiro prévio que tinha por objetivo investigar os dados sociodemográficos dos participantes, além de questões sobre o significado e as vivências relacionadas à pichação e ao graffiti. As principais questões analisadas, para este estudo, foram: "Como você se sente ao pichar/grafitar?" e "O que é pichação e graffiti para você?". As categorias surgiram das falas referentes a esses questionamentos.
O cuidado ético que protege a integridade dos jovens perante a pesquisa foi garantido de acordo com a legislação brasileira vigente, ou seja, a partir da Resolução n. 466 do Conselho Nacional de Saúde, (2012). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da universidade, conforme Protocolo n. 34700214.0.0000.5346. Foi utilizado o Termo de Concordância Institucional e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assinado pelos participantes acima de 18 anos e pelos pais ou responsáveis legais dos adolescentes (com menos de 18 anos), além do Termo de Assentimento para esses adolescentes.
Procedimentos de análise das informações
As respostas dos participantes foram analisadas qualitativamente conforme a proposta de Bardin (2011). Após a organização do material e a leitura flutuante, foram formuladas as categorias de análise. Nesse processo, foi possível organizar as informações em duas categorias temáticas: "Adrenalina e Visibilidade" e "Expressão e Subjetividade". As categorias abordaram as falas dos participantes, que descreveram seus sentimentos vinculados à pichação e ao graffiti e o modo com que essa prática interveio na formação de sua subjetividade.
Resultados e Discussão
A categoria "Adrenalina e Visibilidade" abrangeu as falas dos participantes sobre as reações emocionais vivenciadas no momento da pichação, destacando a intensidade, o risco da ilegalidade e o sentimento de ver sua marca no muro. De modo geral, os jovens relataram sentir adrenalina e empolgação durante o exercício das atividades, e que esse sentimento se torna recorrente pelo caráter ilícito do graffiti e da pichação e pela excitação de tornar visível algo seu: "Ah... quando eu pichava, eu me sentia bem... tipo... uma mistura de adrenalina com um pouco de ego..." (Participante 1). Somadas as questões que envolvem a arte de correr o risco, o jogo de escaladas, de subir e descer prédios, e de se aventurar na selva de pedra, pode-se visualizar o quanto esses jovens estão dispostos a se arriscar para dar voz às suas questões. A ilegalidade torna o jogo e a arte ainda mais excitantes para esses jovens, ou seja, quanto mais repressoras forem as operações policiais, mais instigante se torna a aventura. Além disso, o risco e o medo de ser pego, enunciado pela transgressão, tende a diminuir com o hábito (Gomes, 2014).
O processo de construção desses riscos é valorizado, ao passo que quem consegue atingir os maiores desafios conquista um maior reconhecimento, adquire visibilidade e popularidade entre os pares (Abramovay et al., 2010; Pereira, 2010). Em relação às práticas mais arriscadas, como a da escalada feita em prédios e muros altos, evidenciam uma busca extrema por essa sensação. Essa valorização considera a adrenalina implicada na ação, a competitividade, a criatividade e a perspicácia implicadas no risco de espalhar suas marcas e alcançar locais cada vez mais altos (Caldeira, 2012; Pereira, 2010). Mas o risco parece sempre implicar em algo irreal e fantasioso, pois mesmo que sejam percebidas ameaças visíveis e previsíveis, o risco se dará projetado num futuro desconhecido (Gomes, 2014).
Os jovens transgressores também destacaram o medo sobre esse perigo de maneira real, sobre o enfrentamento com a polícia. Alguns participantes comentaram sobre as represálias policiais que viveram ao serem pegos em flagrantes, como serem obrigados a comer tinta e passarem por humilhações verbais. Os jovens expressaram satisfação em poder compartilhar nas entrevistas suas experiências e descreveram que tinham se sentido ouvidos e contemplados.
Nesse contexto, a adrenalina, o risco e o perigo estão relacionados a essas transgressões (Abramovay et al., 2010; Gomes, 2014). Sobre as práticas de pichação e graffiti, os jovens demonstraram estar implicados no espetáculo imposto pela mídia e pela sociedade, o que aceleraria essas sensações. Entende-se que esses jovens não desfrutam de muitas possibilidades de encontrar prazer, poder, adrenalina, reconhecimento e fama, sendo essas práticas tidas como vias de acesso para a obtenção dessas conquistas (Abramovay et al., 2010).
Verifica-se essa perspectiva no documentário de Wainer e Oliveira (2013) sobre pixo e pichadores, no qual são identificadas as principais motivações para a pichação como: o reconhecimento social, o lazer, a adrenalina e o protesto. Em relação à sensação de adrenalina, as cenas do documentário reproduziram as ações transgressoras e as respostas emocionais relacionadas a essa sensação, seguidas pela expressão de orgulho e satisfação ao concretizar a intervenção e não serem autuados no momento da atividade.
Além disso, o jovem precisa fazer uma leitura do lugar onde será realizada a ação e do suporte necessário para ter acesso e sair desse local, demonstrando o investimento pessoal dado às suas marcas (Nascimento, 2015). A ameaça constante da ilegalidade e do risco real sobre o seu corpo físico pode revelar também o quanto esses jovens estão dispostos a arriscar durante as práticas de pichar e grafitar (Campos, 2013). A fala de um participante demonstra esse aspecto: "Ah, sei lá, não tem... Acho que se não fosse (ilegal) também, não teria tanta graça, não teria adrenalina na hora de fazer... Sinto que é o risco, né?!" (Participante 3). Observa-se que a procura por essas sensações demonstram uma preocupação em sentir-se vivo e ativo, em desafiar (a lei e a sociedade) e se desafiar (a si mesmo). As marcas dos pichadores e grafiteiros sobrevivem pelo seu orgulho e pela sua repetitividade, ou seja, mesmo a cidade estando em constante transformação, se torna necessária à articulação de ações que mantenham esses recursos, reiterando e fazendo perdurar essas inscrições (Caldeira, 2012). Eles buscam eternizar suas marcas através de uma compreensão efêmera da estrutura urbana, mesmo que a cidade proponha um processo inverso de buscar alternativas para eliminar esses traços (Pereira, 2010).
O sentimento de vitória ao enfrentar esses desafios gera conforto e satisfação aos jovens: "Ah... passar pelo bagulho e vê sabe, dá mais vontade... Todo mundo falando, e quando param, começam a falar (...) Te dá até um orgulho" (Participante 5). Associado a esses sentimentos, o anonimato se faz necessário para possibilitar que esses jovens percorram e se inscrevam no espaço urbano. Assim, observa-se uma questão: ser invisível socialmente, e se utilizar disso, para se tornar visível nos muros, ou ser (re)conhecido aos outros invisíveis, permanecendo invisível e irreconhecível pelas pessoas em geral. Esse paradoxo entre a visibilidade e a invisibilidade, o anonimato, são partes importantes dessas ações, e a criminalização do graffiti e da pichação contribui para a tentativa do jovem em permanecer anônimo.
À medida que a tag (marca pessoal do jovem) pode ser compreendida pelos seus pares, "o anonimato se destina basicamente ao mundo exterior, que pode ser entendido como agressor" (Campos, 2009, p. 157). Frente ao risco, explicita-se sua capacidade projetiva, ressaltando a possibilidade do jovem de se libertar e expressar sua resistência (Campos, 2013). Desse modo, as inscrições conferem aos jovens uma forma de ressignificar suas formas de ocupar a cidade por meio do uso da liberdade de expressão e da autonomia advindas dessas práticas (Campos, 2009; Nascimento, 2015; Spinelli, 2007).
Birman (2012) reflete sobre as características sociais do contemporâneo nas quais a imagem de si mesmo é exacerbada pela retórica narcisista. Nesse sentido, é possível refletir sobre as práticas envolvendo a pichação e o graffiti, visto que podem funcionar como uma reprodução da imagem desse jovem, representando suas questões, suas marcas. Em conjunto ao imperativo de viver o aqui e o agora, as vivências relacionadas à juventude demonstram o apelo que se tem ao estilo de vida "sem limites", pautada na velocidade, na potência, na resistência, nos estímulos prazerosos por meio de uma performance corpórea perfeita (Kehl, 2004; Birman, 2012).
As novas modalidades de risco e aventura do mundo globalizado se referem à uma racionalização que volatiliza e que parece não ponderar sobre os perigos anunciados (Spink, 2001). Os diferentes repertórios sobre o risco enunciados pelos participantes demonstram os encontros subjetivos, a dinâmica de posicionamentos e as trocas linguísticas que circundam essas práticas. Assim, essa performance deve ser capaz de conseguir expressar as questões desses jovens, ser capaz de aproveitar a adrenalina do momento da ação e ainda provar a habilidade de se esquivar da polícia. O jovem deseja sua transcendência, dos limites humanos aos muros, superando o tédio e alcançando sua inscrição no mundo (Campos, 2009).
Na segunda categoria, "Expressão e Subjetividade", foram agrupadas as falas dos jovens que apresentavam ideias vinculadas às suas questões pessoais, algo que sentiu e expressou, e o potencial da produção de subjetividade por meio da pichação ou do graffiti.
Nesse sentido, os jovens relataram, como um dos principais significados envolvendo essas intervenções, o seu poder de construção, elaboração, expansão de ideais: "Foi por causa da pichação que (...) eu evolui no meu pensamento, achei que ia além" (Participante 1). A subjetividade implícita nos graffitis e nas pichações demonstram o seu potencial criativo e comunicativo como um recurso de elaboração psíquica, seja na forma da apropriação da cidade e do contemporâneo por meio das tags, seja na forma revolucionária de expor suas questões, contestando os transeuntes e o poder público.
Percebe-se também, uma necessidade de se colocar no muro, no mundo, nessa tentativa de dar conta de suas demandas pessoais: "as questão que tão se envolvendo ali são linguagem e expressão (...) É o grito do cara" (Participante 2). Para esses jovens, a pichação e o graffiti adquirem a conjuntura de possibilidade, ou seja, tornar viável a explicitação de sua subjetividade, de sua marca, de suas questões. Em relação à dinâmica artística, os jovens demonstraram que se preocupam com o atendimento de seu bem-estar, sendo, para alguns, irrelevante a opinião e a percepção pública. Para outros, a preocupação se dá em torno de uma provocação, tanto pela exposição de inscrições subversivas legíveis quanto pela expressão de suas marcas não compreensíveis à população em geral.
As expressões que esses jovens revelam por meio da tinta, apontam para demandas internas, para a forma como percebem e interpretam seu entorno, assim como para a relação que se estabelece a partir desse encontro. Um participante falou: "(...) uma coisa que te incomoda, que tu não gosta, que tu vê e vai lá e faz, tu quer incomodar entendeu?" (Participante 1). Nos estudos de Ceará e Dalgalarrondo (2008) sobre o perfil psicossocial de jovens pichadores, a principal autodescrição para o significado de ser pichador para esses adolescentes foi a necessidade de expressar suas questões pessoais. Nos muros são contadas histórias de sujeitos que buscam uma inscrição em meio ao discurso urbano; são marcas que solicitam um espaço de expressão e de posicionamento frente ao social (Abramovay et al., 2010; Mariani & Medeiros, 2013; 2014).
Para Nascimento (2015), esse movimento adquire um sentido enigmático. Por que esses sujeitos se arriscam dessa forma? Para dizer algo? Para tornar visível algo? Por entretenimento? Na pesquisa de Furtado e Zanella (2009), desenvolvida com adolescentes pichadores e grafiteiros sobre o processo de criação das obras, a resposta inicial para essa questão foi em relação à diversão que essas atividades proporcionavam aos jovens.
Para além desse sentido, o processo subjetivante, resultante dessas práticas, configura novas perspectivas. As autoras concluíram acerca da narração da história desse sujeito nos muros e, assim, a possibilidade de ressignicação e reorganização de suas questões (Furtado & Zanella, 2009). Portanto, vai além da transgressão, dissertando sobre o contemporâneo, sobre a sociedade em que vivemos e sobre a possibilidade de criação e de subjetivação: "Eles tomaram para si o poder de criar uma linguagem própria (...) e colocaram elementos próprios de seu universo, dando vida e características únicas" para essas práticas (Nascimento, 2015, p. 51).
A partir do contemporâneo reflete-se também sobre a questão: Que lugares esses sujeitos ocupam na sociedade? Que lugares eles reivindicam ocupar? Um dos participantes revelou: "Cada um, todos os pichador, cada um tem um tipo, a tag que chamam, sabe? A tag é o que tu risca... daí tem a tag e tem a tua crew, que tem, sabe... que é o bonde que tu participa, sabe…" (Participante 4). A partir dessas práticas é possível notar uma busca por autenticidade, pela potencialidade de ser, tornar-se (Kehl, 2004). Elabora-se uma representação que possibilita a esses jovens pertencerem a um espaço potencializador, inclusive a um grupo.
Em meio ao capitalismo, uma metáfora surge envolvendo a publicidade: a tag pode ser compreendida como uma logomarca, na qual supostamente se oferece algo que não se pode vender, sua representação (Silva, 2004). O graffiti e a pichação expressam, então, as possibilidades que esses jovens buscam por meio da materialidade potencializadora do exercício de liberdade e autonomia (Furtado & Zanella, 2009; Nascimento, 2015). Essas práticas revelam o exercício de resistência sobre um poder subversivo e político de transformar a realidade (Mariani & Medeiros, 2014; Pizzinato, Tedesco & Hamann, 2017), resistir às imposições, às normatizações e às patologizações do contemporâneo, dando conta de suas questões via transgressão da lei.
Assim, é possível explorar as pequenas nuances do graffiti e da pichação e as diferentes potencialidades implícitas nessas práticas. A dinâmica subjetiva da pichação sugere uma singularidade na impulsividade, no acting out imposto pela forma da ação, basicamente escrita por meio da grafia de assinaturas. No caso do graffiti, propõe-se um convite a um universo mais lúdico e recreativo, advindo do desenvolvimento de pinturas e imagens (Abramovay et al., 2010; Silva, 2004). A diversificação das possibilidades de intervenção não converge apenas ao espaço urbano, mas também ao próprio sujeito autor dessas ações. Assim como o graffiti e a pichação podem coexistir numa mesma cidade, o mesmo pode acontecer com esses sujeitos, ou seja, muitos grafiteiros também são pichadores (Silva, 2004). Nesse sentido, percebe-se nos muros um movimento poético e protestante que, independente da forma, acaba por forçar os demais a ler, ouvir, sentir e a reconhecer esses "gritos" (Mariani & Medeiros, 2014).
Para além dessa perspectiva, é possível visualizar o campo da provocação e do convite que o graffiti e a pichação fazem à sociedade. A revelação dessas subjetividades nos muros propõe a sensibilização do coletivo e uma crítica à sociedade (Silva & Iapechino, 2010; Silveira, 1991). O apelo visual demonstra a capacidade comunicativa que há dentro desses dispositivos que, por sua vez, auxiliam na constituição da representação dessa juventude, inteligível ou não pelos transeuntes (Campos, 2010; Spinelli, 2007). É possível avaliar,também, a criminalização dessa comunicação por parte de uma provável perda do poder crítico social, o que dificulta a forma de lidar com essas novas formas de subjetivação (Birman, 2005; Silva, 2004).
Ressalta-se as implicações dessa reprovação popular como influência na produção de subjetividade, a partir da desqualificação, discriminação e marginalização desses jovens (Ceará & Dalgalarrondo, 2008). Assim, a influência do estigma sob o viés do "marginal", do "bandido", compromete a compreensão de um transgressor que tem a pichação e o graffiti como uma possibilidade comunicativa de uma inscrição no social. Ressalta-se, novamente, o caráter ilegal dessas práticas, sendo possível identificar que essas formas de dar conta de suas demandas conflitivas se contrapõe às demais individualidades dos transeuntes em relação ao consenso legal de que pichar e grafitar sem autorização é crime ambiental (Brasil, 2011).
Considerações Finais
Esse trabalho teve como objetivo conhecer e compreender os significados da pichação e do graffiti para os jovens transgressores. Os resultados evidenciaram questões relacionadas à necessidade dos jovens de se expressar e se comunicar enquanto sujeitos, ressaltando a importância de compreender quais espaços têm se dado a esses jovens, que lugar eles ocupam no contemporâneo e o que esses sujeitos querem através dessas intervenções.
Na contemporaneidade, esses sujeitos criam seu espaço para dar voz a essas subjetividades. Essas práticas gritam por reivindicações, por empatia e por riscos. As percepções e sentimentos pessoais do que é a pichação e graffiti demonstraram a forma como essas atividades interferiram na constituição da subjetividade desses jovens, assim como sua interação com a sociedade. As intervenções urbanas se tornaram possíveis, mesmo que proibidas legalmente. A juventude, então, incorpora os desafios e as potencialidades dessas práticas, e torna-se possível identificar uma tentativa de transcendência em relação às leis e ao anonimato, aos espaços que esses sujeitos habitam, às marcas e inscrições que eles desenvolvem.
Apropriam-se para transformar o muro em algo seu, ou com algo seu, de compartilhamento de suas questões com o mundo. Assim, essas intervenções demonstram um poder de construção pessoal ao passo que desconstroem e questionam normativas sociais. A juventude acaba incorporando nuances sociais e contemporâneas, pois a adrenalina e a visibilidade em torno do graffiti e da pichação também se fazem presentes. As ações buscam, por meio do risco, a vivacidade e a aventura nesse possível passatempo.
A diferença etária entre os participantes proporcionou a observação de mudanças sutis no comportamento transgressor. Quanto mais jovem, mais importante a quantidade de pixos e de tags pela cidade, como uma disputa adolescente de quem tem mais e de quem é melhor, pois existe uma ousadia física maior pela exposição ao risco nas escaladas dos prédios. A despreocupação sobre as possíveis responsabilizações advindas da infração são comuns aos jovens entrevistados, independentemente da idade.
Quanto mais maduro, mais importante se torna a referência questionadora. Esse posicionamento sugere o amadurecimento da análise crítica-social por parte desses jovens, assim como a associação desse empoderamento com o grau de escolaridade. Foi encontrada uma diversidade no nível de ensino escolar e, nesse sentido, quanto mais instruído, mais argumentos científicos e históricos sobre sua prática o jovem possuía.
Apesar de esse trabalho responder ao objetivo de compreender a pichação e o graffiti na perspectiva dos transgressores, é necessário destacar-se as limitações do estudo em generalizar as respostas obtidas. Há necessidade de ampliação das fontes de informação para a extrapolação dos dados, possibilitando uma precisão na conceituação do fenômeno pesquisado.
Num contexto político e social, a estratégia encontrada para lidar com a pichação e o graffiti tem sido a repressão. Tais ações adotadas para o combate desse tipo de infração parecem provocar um efeito contrário, pois quanto mais ilícito, mais adrenalina a ação gera, visto que aumenta a possibilidade de ser pego. Nesse sentido, observa-se a dificuldade de compreender esse fenômeno social, pelo menos de uma forma integrada e complexa, o que contribui para a aplicação de medidas ou ações paliativas. Salientam-se as questões referentes à formação da subjetividade, na qual a criminalização do graffiti e da pichação, e a forma com que se tem lidado com isso, podem causar prejuízos no desenvolvimento dessa juventude através do sentimento de exclusão social, marginalização e desvalia.
Concluindo, o grito mudo dos invisíveis se concretiza. O ato de se colocar nas paredes e se registrar nos muros da cidade revelam o grito mudo desses invisíveis. A invisibilidade pode não ser econômica, mas sociocultural, relacionada à percepção desses jovens e a questões do seu próprio desenvolvimento biopsicossocial. Destaca-se também o poder criativo e protestante da juventude, caracterizada pelas inovações, pela intolerância e pela impulsividade que cercam as práticas da pichação e do graffti. O que mais importa é o momento da ação, em que todos os sentimentos, sensações e hormônios são ativados pela intensidade da intervenção urbana, pelo poder de satisfação e pelo risco da ilegalidade. A revitalização dos espaços urbanos e a destituição de alguns poderes se fazem necessárias na "selva de pedra".
Referências
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Endereço para correspondência:
Andressa Sauzem Mayer
Email: andressasmayer@gmail.com
Lucas Motta Brum
Email: lucaspsico1@gmail.com
Samara Silva dos Santos
Email: silvadossantos.samara@gmail.com
Recebido em: 28/05/2016
Revisado em: 16/10/2018
Aceito em: 08/01/2019
Publicado online: 02/08/2019