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Revista Subjetividades
Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.21 no.1 Fortaleza Jan./Apr. 2021
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i1.e10157
ESTUDOS TEÓRICOS
Da mediação fálica ao irrepresentável do sexo feminino
From Phallic Mediation to the Non-representable Female
De la Mediación Fálica al Irrepresentable del Sexo Femenino
De la médiation phallique à l'irreprésentable chez le Féminin
Carla Caldeira DurziI; Luis Flávio Silva CoutoII
IMestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Trabalha como Psicóloga Clínica e Professora no curso de Psicologia do Centro Universitário UNA
IIDoutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós-doutorado em Psicanálise pela Université Paris 8. Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais na graduação e no Pós-graduação
RESUMO
A intenção deste trabalho é compreender e articular, dentro da teoria psicanalítica, especialmente do ponto de vista de Freud e de Lacan, como se dá a constituição da feminilidade e sua articulação com a histeria e a subjetividade de nossa época. Partindo de conceitos básicos da teoria, iniciamos com o complexo de Édipo e como a operação subjetiva da constituição da sexualidade nasce com Freud baseada em uma solução fálica. A partir da situação edípica, a menina, ao se perceber desprovida do órgão genital masculino, seria, então, constituída por alguém que se sente prejudicada pela ausência do pênis. Essa desvantagem deixaria traços indeléveis em seu desenvolvimento e na formação do seu caráter, que Freud nomeia como inveja do pênis (penisneid). No entanto Freud conclui seus estudos sobre a feminilidade descrevendo-a insuficiente, já que o feminino ainda se apresentava como algo obscuro para ele. Em Lacan, alguns aspectos da concepção freudiana são enriquecidos, sobretudo no que se refere às vicissitudes de uma posição feminina. A partir dos caminhos transmitidos por Freud, ele se depara com algo do desejo que não é recoberto pela significação fálica e, a partir daí, dá outra direção para a posição feminina. Nos ensinos de Lacan, uma mulher está não toda inscrita na função fálica e, portanto, será marcada por algo que não se inscreve no campo simbólico, por um irrepresentável, pelo gozo Outro, não todo fálico e infinito. Buscamos na literatura algo que pudesse ilustrar este trabalho e, nessa procura, a crônica de Sidonie, "Desejos Secretos", cujo nome verdadeiro é Margarethe Csonka, paciente de Freud, mostrou-se encantadora pela riqueza do seu conteúdo e por sua conexão direta com o desdobramento deste trabalho.
Palavras-chave: feminino; falo; gozo; histeria.
ABSTRACT
This work intends to understand and articulate how femininity is constituted and its articulation with the hysteria and subjectivity of our time, addressing especially Freud and Lacan's point of view on psychological theory. Starting from basic concepts of theory, we begin with the Oedipus complex and how the subjective operation of the constitution of sexuality is born with Freud based on a phallic solution. From the oedipal situation, the girl, when perceiving herself without the male genital organ, would then be constituted by someone who feels harmed by the absence of the penis. This disadvantage would leave indelible traces in its development and in the formation of its character, which Freud calls the penis envy (penisneid). However, Freud concludes his studies on femininity by describing it as insufficient since the feminine still presented itself as something obscure for him. In Lacan, some aspects of the Freudian conception are enriched, especially concerning the vicissitudes of a female position. From the paths transmitted by Freud, he is faced with something of desire that is not covered by phallic significance and, from there, gives another direction to the feminine position. In Lacan's teachings, a woman is not entirely inscribed in the phallic function and, therefore, will be marked by something that is not inscribed in the symbolic field, by a non-representable, by the Other's enjoyment, not all phallic and infinite enjoyment. We searched the literature for something that could illustrate this work and, in that search, Sidonie's chronicle, "Secret Wishes", whose real name is Margarethe Csonka, Freud's patient, was charming because of the richness of its content and its direct connection with the unfolding of this work.
Keywords: female; phallus; enjoyment; hysteria.
RESUMEN
La intención de este trabajo es comprender y articular, dentro de la teoría psicoanalítica especialmente del punto de vista de Freud y de Lacan, como ocurre la constitución de la femenilidad y su articulación con la histeria y la subjetividad de nuestra época. Partiendo del concepto básico de la teoría, iniciamos con el complejo de Edipo y cómo la operación subjetiva de la constitución de la sexualidad nace con Freud basada en una solución fálica. A partir de la situación edípica, la niña, al percibir que no tiene órgano genital masculino, sería, entonces, constituida por alguien que se siente perjudicada por la ausencia del pene. Esta desventaja dejaría huellas en su desarrollo y en la formación de su carácter, que Freud nombra como envidia del pene (penisneid). Sin embargo Freud concluye sus estudios sobre femenilidad describiéndola insuficiente, ya que el femenino todavía se presentaba como algo obscuro para él. En Lacan, algunos aspectos de la concepción freudiana son enriquecidos, sobre todo a lo que se refiere a las vicisitudes de una posición femenina. A partir de los caminos transmitidos por Freud, él se encuentra con algo del deseo que no es recubierto por la significación fálica y, a partir de entonces, da otra dirección para la posición femenina. En las enseñanzas de Lacan, una mujer no está totalmente inscrita en la función fálica y, por lo tanto, será marcada por algo que no se inscribe en el campo simbólico, por un irrepresentable, por el gozo Otro, no totalmente fálico e infinito. Buscamos en la literatura algo que pudiera ilustrar este trabajo y, en esta búsqueda, la crónica de Sidonie, "Deseos Secretos", cuyo nombre verdadero es Margarethe Csonka, paciente de Freud, se mostró encantadora por la riqueza de su contenido y por su conexión directa con el desdoblamiento de este trabajo.
Palabras clave: femenino; falo; gozo; histeria.
RÉSUMÉ
L'intention de ce travail est de comprendre et d'articuler, au sein de la théorie psychanalytique, notamment du point de vue de Freud et Lacan, comment se constitue la féminité et son articulation avec l'hystérie et avec la subjectivité de notre temps. À partir des concepts de base de la théorie, nous démarrons du complexe d'Œdipe et de la manière comme l'opération subjective de la constitution de la sexualité naît chez Freud, basé d'une solution phallique. A partir de la situation œdipienne, la jeune fille, lorsqu'elle se perçoit dépourvue de l'organe génital masculin, elle serait, donc, constituée par quelqu'un qui se sent "lésé" par l'absence de pénis. Cet inconvénient laisserait des traces indélébiles dans son développement et dans la formation de son caractère, que Freud nomme l'envie du pénis (penisneid). Cependant, Freud conclut ses études sur la féminité en les qualifiant comme insuffisant, puisque le féminin se présentait encore comme quelque chose d'obscure pour lui. Chez Lacan, certains aspects de la conception freudienne s'enrichissent, notamment en ce qui concerne les vicissitudes d'une position féminine. A partir des chemins transmis par Freud, Lacan est confronté à quelque chose du désir qui n'est pas couvert par la signification phallique et, à ce moment, il donne une autre direction à la position féminine. Dans les enseignements de Lacan, une femme n'est pas entièrement inscrite dans la fonction phallique et, par conséquent, sera marquée par quelque chose qui ne s'inscrit pas dans le champ symbolique, par un irreprésentable, par la jouissance Autre, pas complètement phallique et infini. Nous avons cherché dans la littérature n'importe qui qui pourrait illustrer ce travail et, dans cette recherche, la chronique de Sidonie, « Souhaits Secrètes », dont le vrai nom est Margarèthe Csonka, patiente de Freud, qui nous a attiré l'attention à cause de la richesse de son contenu et pour son lien direct avec le déroulement de cette œuvre.
Mots-clés: femme; phallique; jouissance; hystérie.
Neste texto, cuja metodologia utilizada para a sua escrita foi a revisão teórica de alguns textos básicos de Lacan e da orientação lacaniana, e concordando com Simone de Bouvoir, embora a ideia já tivesse sido esboçada por Freud, partimos do princípio de que "não se nasce mulher, torna-se mulher", pois "nenhum destino biológico, psíquico ou econômico define a forma que a mulher ou a fêmea humana assume no seio da sociedade" (Beauvoir, 1980, p. 9). Para nós, há que se distinguir fêmea, mulher e feminino, sendo que fêmea, enquanto inflexão gramatical de gênero, refere-se ao biológico. Uma mulher é um ser humano que se identifica ao sexo feminino, tornando-se mulher na travessia do complexo de Édipo. Já o termo feminino não se refere necessariamente aos dois termos anteriores. Trata-se, do ponto de vista de Lacan, de uma posição que se refere a um modo de gozo, como veremos mais adiante. Não é porque se nasce com uma vagina ou um pênis que, ao atingir a idade adulta, alguém se identificará como mulher ou como homem. Da mesma forma que não se nasce mulher, também não se nasce homem.
Dois elementos são importantes nesse debate: o conceito de falo e o complexo de Édipo, tanto em Freud quanto em Lacan. Ambos os conceitos são fundamentais para o início da psicanálise. Buscamos em Freud uma breve introdução a respeito desses conceitos, a partir de temas que também merecem destaque dentro da fase edípica e da constituição da feminilidade, quais sejam: a bissexualidade original, a primazia do falo, a castração, a inveja do pênis [o penisneid] e os destinos da feminilidade.
Entre os anos de 1905 e 1924, Freud elabora o conceito de complexo de Édipo a partir de mitos, do romance familiar vivido pela criança e da fantasia fundamental. Ao longo desse percurso, Freud faz importantes descobertas. Nessa direção, vale destacar que foi a partir da observação de uma fantasia fundamental não derivada de nenhuma vivência real, encontrada principalmente nas meninas, Batem numa criança, texto de 1919, que ele começou a verificar as diferenças significativas no desenvolvimento sexual da menina e do menino, concluindo que "em homens e em mulheres se acham tanto impulsos instintuais masculinos como femininos, e que estes podem, igualmente, se tornar inconsciente mediante repressão" (Freud, 2010, p. 325).
Em Freud (2016), é o complexo de Édipo que fará suplência às limitações estruturais dessas moções pulsionais. Segundo o autor, é na Dissolução do Complexo de Édipo que essas tendências bissexuais irão produzir uma identificação paterna e uma identificação materna, e a intensidade de cada uma dessas identificações refletirá a disposição sexual do indivíduo.
Entre 1925 e 1933, Freud ocupa-se em estudar como se dá o caminho da menina para tornar-se uma mulher. Nesse momento, ele ressalta a intensidade e a importância da ligação primordial e pré-edípica da menina com a mãe e diz que o que conduz a menina na rota da feminilidade normal é a castração, já que essa ferida narcísica, que ele denomina "penisneid", irá afastá-la da mãe e das práticas masturbatórias do clitóris, possibilitando sua saída da fase "masculina".
Para Freud, a passagem de uma identificação original masculina (ou indiferenciada) da menina em direção a se assumir mulher acontece a partir de duas trocas: uma mudança de órgão e também uma mudança de objeto. Assim, para tornar-se uma mulher, a menina deve abandonar a identificação de seu clitóris (órgão) a um pênis (identificação masculina) e o objeto mãe para se ligar ao objeto pai, o que ocorre por uma série de desilusões, entre as quais Freud destaca como a mais relevante o fato de a menina culpar a mãe por não ter lhe dado um pênis.
No relato de Freud, a partir da constatação da castração, uma jovem mulher se apresenta diante de três direções em seu desenvolvimento sexual, que seriam:
1.A inibição sexual, através da qual a menina, magoada com a sua condição inferior, renuncia à sua satisfação sexual.
2.O complexo de masculinidade, em que ela rejeita a castração e se mantém em uma posição masculinizada, identificada à mãe fálica ou ao pai.
3.A que Freud nomeia como feminilidade normal, quando, por meio de uma equivalência simbólica, o desejo de receber um pênis se presentifica na espera de receber um filho do pai.
A partir desse sobrevoo em Freud, observamos que as três direções possíveis que ele apresenta para o feminino partem de soluções fálicas suportadas pela inveja do pênis e que, portanto, "tornar-se uma mulher", em Freud, seria um caminho para a histeria. Como nos escreve Schejtman: "a reinvindicação do pênis, conduz "quase naturalmente", as mulheres, a um destino histérico: o desejo insatisfeito." (Schejtman, 2012, p. 88).
No entanto é curioso observamos que Freud em 1920, em seu texto Sobre a psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (2011, p. 149), já dizia que a psicanálise não a natureza intrínseca do que é feminino e masculino, e o que se poderia verificar sobre a sexualidade é tão somente aquilo que cada um se torna, ou os mecanismos que levam alguém a escolha do objeto.
Parece que Freud já vislumbrava que o Édipo não continha a chave sobre o que seria ser uma mulher, e conclui seus estudos sobre a feminilidade descrevendo-o insuficiente, já que o feminino ainda se apresentava como algo inacabado e obscuro, o que se traduz no conhecido enigma deixado por ele: o que quer a mulher?1
Lacan: Da Lógica da Castração à Dialética do Desejo
Em relação ao complexo de Édipo do ponto de vista de Lacan, iniciamos alicerçados em sua 1º clínica estruturalista, da ordem simbólica, do inconsciente estruturado como linguagem, na qual esse complexo é reescrito, ganhando uma forma linguística. No Seminário 5: As formações do inconsciente de 1957/1958 (Lacan, 1999), a ficção de Freud é transformada em lei, a partir da "metáfora paterna", que terá um papel crucial na normalização da relação imaginária da criança com os objetos parentais.
Nesse momento do ensino de Lacan, há uma ênfase no simbólico, demonstrando sua primazia em relação ao imaginário, e a metáfora paterna se apresenta em três tempos:
1º tempo - Criança assujeitada ao desejo da mãe (DM) - é necessário e suficiente nessa etapa ser o falo.
Lacan esclarece que a relação primária da criança não é com a mãe, e sim com o desejo da mãe (DM). A criança se identifica, por meio de uma metonímia, em uma posição perversa com aquilo que é o objeto de desejo de sua mãe, o falo, seu eu ideal imaginário i(a). Como afirma Lacan: "no primeiro tempo e na primeira etapa, portanto, trata-se disto sujeito se identifica especularmente com aquilo que é objeto do desejo de sua mãe"(Lacan, 1999, p. 198).
Aqui o pai está presente de forma velada, no vai e vem do desejo da mãe, quando ela demonstra o desejo de outra coisa, para além da criança.
Concomitantemente, nesse momento, a criança brinca com seu órgão genital e é castrada ao ser proibida de manipulá-lo, mas essa castração não tem nenhum efeito imediato.
2º tempo - Entrada do NP - nesse tempo, "nodal e negativo", como diz Lacan, o pai que retorna a criança "é a lei do pai tal como imaginariamente concebida como sujeito como privadora da mãe" (Lacan, 1999, p. 199).
No campo imaginário, o pai, mediado pelo discurso da mãe, fará uma interdição dupla: o filho não poderá ser o falo da mãe, e a mãe não poderá desejar que ele o seja. Nas palavras de Lacan, isso se dá através de uma dupla mensagem: para a criança, "não te deitarás com tua mãe" e, para a mãe, "não reintegrarás teu produto" (Lacan, 1999, p. 210). Nesse momento, o pai exerce a sua função, a chamada "função paterna". Mesmo que a pluralização dos nomes-do-pai venha a se colocar no horizonte, essa dupla lei permanece tendo o seu valor.
Aqui é onde o desejo do Outro será marcado pela barra significante e é aqui, diante da castração da mãe, que tanto o homem quanto a mulher poderão se constituir enquanto sujeitos de desejo, determinando sua estrutura subjetiva. Nesse momento, o sujeito aceita ou não essa privação, ele escolhe "ser ou não ser o falo materno" no plano imaginário.
A foraclusão ou o desmentido da castração é o que levaria o sujeito a se constituir em uma estrutura psicótica ou perversa, mas, ultrapassando esse ponto, aceitando a castração da mãe, a questão do sujeito, dentro da estrutura neurótica, agora estará em torno da partilha do sexo, do "ter ou não ter".
3º tempo - "O pai intervém como real e potente" (Lacan, 1999, p. 201).
Nesse 3º tempo, o pai se revela potente, como aquele que tem o falo e pode dar à mãe aquilo que ela deseja. Esse tempo, como diz Lacan, "se sucede à provação ou à castração que incide sobre a mãe, (...) E por intervir como aquele que tem o falo que o pai é internalizado no sujeito como Ideal do Eu" (Lacan, 1999, p. 201). Esse é o tempo do declínio do Complexo de Édipo. Assim, o menino se constitui por aquele que toma o pai como Ideal do eu, guardando seu título de virilidade, no declinar do complexo de Édipo, e a menina irá buscar, através do próprio pai, o falo que não possui, entrando no complexo de Édipo a partir de uma demanda, para que o pai lhe dê algo que realize o seu desejo.
Surge na menina uma demanda dirigida ao pai, um filho que irá substituir o falo. Mas a menina é privada também dessa demanda, uma vez que não recebera esse filho/falo do pai, e esse amor que ela tinha por ele é convertido também em uma identificação. O pai também se torna, para a menina, o Ideal do eu e seu desejo se transforma. Ela volta a ocupar o lugar de objeto.
Essa função paterna, do momento edípico é, portanto, uma função de metáfora, ou seja, um significante que substitui outro significante. Mais precisamente, o significante Nomedo-pai irá substituir o significante do desejo da mãe, produzindo um significado para esse desejo.
Lacan escreve que, após o recalque do desejo edipiano, o sujeito sai renovado e provido de um Ideal do eu que tem por função tipificar o desejo do sujeito constituído a partir de uma identificação originada de uma relação intersubjetiva e ambígua de desejo, rivalidade e hostilidade.
Temos, portanto, que em 1957/58, Lacan aborda o desejo a partir de sua dependência fundamental com o desejo do Outro e, portanto, com o significante falo, que vimos surgir desde a relação primordial da criança com a mãe no primeiro tempo de Édipo.
Nesse momento de seu ensino, em que Lacan ainda não havia formulado o conceito de gozo, ele diz que o desejo só irá conseguir expressão na medida em que se torne uma demanda, ou seja, que se torne um desejo significado. E, para isso, é preciso que se faça uma renúncia mesmo que parcial ao desejo. É necessário que esse desejo seja alienado pela intervenção do significante.
O falo (- j) aparece aqui como o significante dessa falta/renúncia, apontando não só a distância entre o desejo e a demanda, como uma identificação primitiva com o DM, imagem mais ou menos ideal do sujeito consigo mesmo. Nessa perspectiva, ser o falo é aquilo que corresponde às manifestações do que é a feminilidade, a mascarada feminina.
Podemos dizer que, nesse momento, a resposta de Lacan para "o que quer a mulher?" está ligada, por um lado, ao pênis do homem e ao desejo de ter um filho; por outro, às exigências da função do falo, a de ser esse falo, de ser aquilo que é desejado o que se manifesta como uma profunda estranheza do seu ser com aquilo com o qual que ela tem de parecer.
Essa estranheza já demonstra que, quando se trata do desejo, a linguagem penetra as coisas e as transforma, subverte-as, tornando-as incompreensíveis. E, como não é possível isolarmos o sujeito da linguagem, há sempre algo que resta, algo para além do que pode satisfazer-se por intermédio da demanda, ou seja, do significante.
Assim, em 1957/58, Lacan demonstra como o significante falo se apresenta como pivô da relação do sujeito com o desejo, mas também anuncia uma "errância do desejo" (Lacan, 1999, p. 351). Para Lacan, haveria uma impossibilidade entre o desejo e qualquer forma de satisfação. Já o desejo, em sua forma pura e não mascarada, seria identificado à "dor de existir":
O outro termo a ser inscrito nessa problemática do desejo, e no qual, ao contrário, insisti da última vez, é a excentricidade do desejo em relação a qualquer satisfação. Ela nos permite compreender o que é, em geral, sua profunda afinidade com a dor. Em última instância, aquilo com que o desejo confina, não mais em suas formas desenvolvidas, mascaradas, porém em sua forma pura e simples, é a dor de existir. Esta representa o outro polo, o espaço, a área em cujo interior sua manifestação se apresenta para nós. (Lacan, 1999, p. 350)
A "dor de existir", forma pura e simples de um desejo impossível de satisfazer, desdobra-se no que Lacan postula posteriormente como "não há Outro do Outro". A partir do raciocínio de que o falo é o significante que marca (no nível em que se situa a lei) o que o Outro deseja, e que esse Outro é marcado também pelo significante, ele é, portanto, barrado. E, na medida em que o desejo do outro é barrado, o sujeito reconhece o seu próprio desejo como barrado, como insatisfeito.
A partir do grafo do desejo, Lacan busca elaborar as relações do sujeito falante com o significante e o seu desejo. Desejo que é caracterizado, portanto, como uma perturbação, e sua busca tem um caráter cego. Isso quer dizer que o desejo é inconsciente, e que só pode se organizar no discurso por meio de deslocamentos, condensações, metáforas e metonímias, que não geram nenhum sentido para o sujeito. Lacan diz:
Mas o que é que o grafo nos indica sobre o desejo? É que este desejo situa-se em algum lugar sobre a linha que retorna do código inconsciente, em sentido contrário à linha intencional oposta, ou seja, o segmento de retorno (S/◊D) → d. O desejo está ali, flutuando em algum lugar para além do outro. (Lacan, 2016, p. 307)
Lacan aponta também que o desejo é regulado de alguma maneira, fixando-se em algum ponto da linha que, no grafo do desejo, introduzindo a função imaginária, vai de S (A/) em direção ao significado do Outro, s (A), tomado por ele como a mensagem do Outro. Com isso, Lacan articula o desejo ao narcisismo, oferecendo ao sujeito a solução do problema do desejo.
Esse trajeto detém-se a meio caminho entre S (A/) e s (A), precisamente na fantasia ($ <> a). Nela há uma troca entre o sujeito ($) e o a minúsculo (Lacan, 2016, p. 126). Em algumas fantasias, o afeto, em presença do desejo, é transferido para o objeto e, em um movimento contrário, temos o retorno do afeto do objeto ao sujeito. Lacan vai usar a lógica simbólica para mostrar esse movimento de interversão: a punção <>. Esse sujeito vai se estruturar como eu (moi) e como Ideal do eu - I (A). Aqui, Lacan é preciso: "isso não poderá ser percebido em sua necessidade estrutural absolutamente rigorosa a não ser como retorno, devolução da delegação do afeto que o sujeito fez a esse objeto, a" (Lacan, 2016, p.127). Nessa passagem, o a deve ser tomado não como o outro do esquema L, mas como imagem do outro que, junto ao eu, constitui "uma única e mesma coisa".
Essa imagem, identificação perceptiva do semelhante que Lacan identifica à imago do duplo do complexo de intrusão (Lacan, 1985a, p. 37) e que restaura a unidade perdida de si mesmo, é marcada com o índice I, de Ideal do eu, "na medida em que ele é o herdeiro de uma relação primeira do sujeito, não com o seu desejo, mas com o desejo de sua mãe" (Lacan, 2016, p.127). Isso produz no sujeito um sentimento de temor, de iminência, que retém o sujeito na borda de seu desejo - transferido para o seu objeto, enquanto narcísico, uma imagem marcada pelo Ideal do eu, herdeiro da relação primeira do sujeito com o desejo de sua mãe, o lugar da criança desejada.
E é por isso que Lacan considera, nesse momento, que o desejo está ligado não a um objeto, mas, essencialmente, a uma fantasia, a uma dialética que concilia o imaginário e o simbólico.
O Corte na Cadeia Significante
Nos desdobramentos do Seminário 6: O desejo e sua interpretação, Lacan observa que o sujeito irá se tornar um sujeito de desejo a partir do advento da castração, mas que haveria uma espécie de fenda, um corte na cadeia significante, algo que está no ser do sujeito para além do seu conhecimento possível, e que, ao mesmo tempo, sustenta o sujeito do discurso. Diz também que esse corte de real, esse intervalo, no qual ele é o menos significante dos significantes, é onde o ser está, é a "manifestação pura desse ser" (Lacan, 2016, p.426).
Isso irá produzir um sujeito que está, ao mesmo tempo, alienado pela intervenção significante, mas possibilitado (pela operação lógica da separação), engendrar-se fora da cadeia significante.
Miller (2013), em um texto intitulado O Outro sem o Outro, comenta sobre essa virada no ensino de Lacan, e diz que, no Seminário 6, Lacan coloca em questão a prevalência do pai, que até então ele colocava como pedra angular e função normativa de tudo o que sustenta o mundo comum. Nesse seminário, Lacan desconstrói a metáfora paterna, apontando a impotência do Nome-do-pai a partir da permanência, enquanto objeto a, de um gozo que não recebe seu sentido da metáfora paterna. Mediante essa consideração, Miller nos mostra que havia duas vias abertas para Lacan e que a via do desejo que o conduziu a levar em conta o gozo.
Ao vislumbrar o real, Lacan ultrapassa os limites encontrados por Freud e vai mais além. Estabelece que o falo, por si só, não irá determinar a diferença sexual, ou seja, que o semblante fálico não esgota a distância entre a identidade sexual e a realização do gozo singular. Com isso, ele aborda a posição feminina a partir do campo do gozo, no qual o falo se apresenta como um significante que captura apenas uma parte do gozo feminino.
Nos dizeres de Miller, o que Freud chamava de restos a serem absorvidos, Lacan considera que são substâncias que produzem gozo e que estão fora da significação do falo e da castração, permanecendo enganchados à fantasia e ao desejo inconsciente. É a partir desse encontro com o real que Lacan, em 1960, nas Diretrizes para um Congresso sobre a Sexualidade Feminina, começa a se questionar se a mediação fálica drenaria tudo aquilo que se manifesta pulsional na mulher, já apontando, assim, para algo do real impossível de dizer.
Quanto a esse mesmo ponto, convém indagar se a mediação fálica drena tudo o que pode se manifestar de pulsional na mulher, notadamente toda a corrente do instinto materno. Por que não dizer aqui que o fato de que tudo o que é analisável é sexual não implica que tudo o que é sexual seja acessível à análise? (Lacan, 1998, p. 739)
O Irrepresentável do Sexo Feminino
Juntamente com Freud, Lacan começa a pensar a mulher também a partir da esfera do pai, como o vimos elaborar nos três tempos de Édipo e na lógica da castração. Mas, ao se encontrar com a fenda, com o real do gozo, ele se pergunta se a mediação fálica suportaria todo o pulsional na mulher.
No Seminário 20 (1982), Lacan já define a diferença sexual não mais a partir da lógica fálica, mas a partir de uma diferença dos modos de gozo feminino e masculino. Nesse momento, o falo não possui mais a característica de um atributo, ele é considerado uma função: fx - função responsável por inserir o sujeito na lógica, no sentido e na linguagem. E a mulher, mesmo não escapando à função fálica, é não toda submetida a ela.
Assim, a posição feminina se duplica. Podemos observar, a partir da tábua da sexuação, que, partindo da mulher A/ [(La/)], existem duas flechas, uma que vai em direção ao falo simbólico (F), localizado no lado masculino, e outra indo em direção ao S(A/), que se refere à sua relação com o significante do Outro barrado. Esse S(A/) aponta para a falta de significação do sexo feminino e também para a experimentação de um gozo para além do gozo fálico, um gozo fora da função significante e, portanto, impossível de se dizer.
Do lado masculino, o sintoma é um parceiro de gozo, o objeto de amor é fetichizado e o desejo passa pelo gozo e se dirige ao objeto a do lado feminino. Já do lado feminino, como se enuncia no título desta pesquisa, o gozo se apresenta para além da palavra, como aquilo do desejo que não é recoberto pela significação fálica e que chama a mulher a viver na relação um amor sem limite e impossível, que poderá produzir um efeito devastador. Como os gozos não são complementares, Lacan apontará que "a relação sexual não existe". Um é perversamente orientado, e o outro é não todo, não-louco-de todo.
Na falta de um significante que nomeia, uma mulher irá buscar em sua parceria amorosa ser reconhecida como única para um homem, mas, como esse significante não existe, isso fracassa, podendo ser devastador para ela. Sendo para a mulher, portanto, o desejo do outro, aquilo que, ao mesmo tempo, a interessa e a angustia. Nessa "comédia dos sexos", uma mulher fará qualquer concessão para ser amada. Ela se apresenta através da máscara fálica que tenta esconder a falta, mas também faz semblante de objeto a, para ser causa de desejo para de homem.
Assim, a diferença sexual está pautada por semblantes que sempre mantêm um ponto de fracasso. É importante dizer, ainda, que nem toda mulher se apresenta como "não toda" e que alguns sujeitos masculinos podem experimentar o gozo suplementar feminino. Há sempre a possibilidade de haver algum trânsito de um sujeito, tanto para o lado feminino quanto para o lado masculino da sexuação.
De acordo com Schejtman (2012), a posição feminina em Lacan desvencilharia, de certa forma, a mulher da histeria por ser não toda fálica. Assim, a pergunta histérica sobre o feminino estaria do lado masculino da tabua da sexuação. O falo, o significante e a histeria dizem respeito à parte da mulher que é identificada com a posição masculina, com o "penisneid", tal como era descritas por Freud.
No Seminário 3, Lacan escreve que: "Tornar-se uma mulher e interrogar-se sobre o que é uma mulher são duas coisas essencialmente diferentes (...) e até certo ponto, interrogar-se é o contrário de tornar-se." (Lacan, 1985b, p. 204).
A partir dessa reflexão, podemos dizer, com Rosa (2019), que, na concepção de Lacan a respeito do feminino, a histeria poderia ser concebida como uma tentativa de não se haver com o que escapa, o que é excluído da natureza das palavras, já que a histeria se interessa, preferencialmente, pelo saber. (Rosa, 2019, p. 80).
Da Jovem Homossexual de Freud às Vias Perversas do Desejo em Lacan
Exemplificando, lembremos o caso que Freud apresenta de uma jovem homossexual que chega a seu consultório, no ano de 1919, por uma demanda dos pais, que o procuram, após uma tentativa de suicídio da filha, para tratar a homossexualidade dela. De acordo com Freud, os pais da jovem se irritavam principalmente pelo fato da filha não demonstrar nenhum pudor em se expor pela cidade acompanhada de uma dama de reputação, no mínimo, duvidosa.
Freud supõe que a sua paciente, revivendo o seu complexo de Édipo infantil, desejava ter um filho de seu pai, quando em seu lugar quem ele engravida é a sua mãe e rival. Em razão disso, ela se volta contra o pai e contra os homens em geral, rejeitando inclusive a sua feminilidade, o que a leva a buscar novas formas de investimento para a sua libido. Nas palavras de Freud, "após aquela decepção a garota havia afastado de si o desejo de um filho, o amor de um homem e o papel feminino [...] Ela converteu-se em homem e tomou a mãe, em vez do pai, como objeto de amor" (Freud, 2011, p. 130).
Com poucos meses, Freud interrompe o tratamento dessa jovem homossexual por considerar que a jovem não teria desenvolvido nenhuma transferência para com o analista, e classifica o caso como uma homossexualidade congênita que teria se fixado apenas depois da puberdade.
Sobre o caso, Freud diz ainda que "o segredo da homossexualidade não é tão simples como popularmente se crê [...] uma alma masculina, atraída irresistivelmente pelas mulheres, mas aprisionada num corpo feminino" (Freud, 2011, p. 147). Freud relata ainda, a partir de suas experiências clínicas, que as características sexuais psíquicas e a escolha de objeto não correspondem entre si de maneira fixa, o que significa que um homem com características masculinas pode amar outros homens, assim como um homem com traços femininos pode amar apenas mulheres, e que o mesmo se observa em relação às mulheres.
Freud conclui o caso dizendo que não há um terceiro sexo e não cabe à psicanálise resolver o problema da homossexualidade, já que ela não pode esclarecer a essência do que seria "masculino" e "feminino", mas deverá apenas desvendar os mecanismos que levaram à escolha do objeto.
Comentando o caso, Lacan aponta que esse é um dos relatos clínicos mais "brilhantes" e "perturbadores" de Freud, (Lacan, 1995, p. 102), dedicando a ele três capítulos do Seminário 4: A relação de objeto, quando ainda não havia teorizado sobre o gozo, abordando a questão como um tipo particular de "perversão constituída tardiamente" (Lacan, 1995, p. 123), uma via perversa do desejo, articulada ao complexo de Édipo.
Para ele, a jovem era uma criança feminina que, na dialética edípica, buscara o falo por meio do pai, mas quando sua mãe recebe do pai o filho que ela mesma desejara, sua posição de mãe imaginária não mais se sustenta. A jovem tem uma espécie de inversão. Sua relação com o pai passa de simbólica a imaginária. Ela se identifica à função do pai, colocando a dama como objeto de amor, em um estilo de relação tipicamente masculina, em uma posição viril.
Ao interpretar o caso como algo que se articula à maneira da perversão, Lacan faz uma leitura a partir das instâncias do imaginário, do simbólico e do real (enquanto realidade), propondo que a jovem se mantinha em uma satisfação imaginária, que é destruída pelo real e que encontra como uma saída particular outra relação imaginária, na qual o pai, até então um pai simbólico, entra em jogo como um pai imaginário, instaurando-se uma perversão.
Do Sentido do Sintoma, ao Real do Gozo: A Histeria de Nossa Época e Outras Possíveis Leituras de Margarethe Trauteneg
Na obra de Ines Rieder e Diana Voigt intitulada Desejos secretos, Margarethe Trauteneg, que viveu de 1900 a 1999, relata a história de sua vida às duas escritoras sob o pseudônimo de Sidonie Csillag ou Sidi (Rieder & Voigt, 2008). Sua biografia nos permite ilustrar com uma beleza poética o ponto central desta pesquisa - que se apresenta a partir de um questionamento posto por Lacan no Seminário 6, qual seja, se a mediação fálica drenaria tudo o que há de pulsional no feminino.
Como vimos, Freud aborda o caso da jovem, a partir de sua homossexualidade, com base no que havia descrito sobre os três destinos que ele propõe para a feminilidade (inibição, complexo de masculinidade e maternidade), soluções fálicas para a inveja do pênis (penisneid). Ao mesmo tempo, vimos como Freud já se mostrava atento a algo que não conseguia alcançar em suas pesquisas sobre o feminino. Quando conclui o caso dizendo que não cabe à psicanálise resolver o problema da homossexualidade, já que ela não pode esclarecer a essência do que seria "masculino" e "feminino", aponta que apenas podemos desvendar alguns mecanismos que levaram à escolha do objeto.
Por seu turno, Lacan, ao fazer uma releitura do caso ainda sob a ótica do mito do pai, considera-o como uma perversão constituída tardiamente, já que a solução de Sidonie para a falta do falo se fez por vias de uma metonímia e não de uma metáfora.
Consoante com os avanços de Lacan a partir de seu encontro com o real e o gozo, a reflexão que propomos é: seriam a mediação fálica e o "amor ao pai", próprios da histeria, ou a homossexualidade a questão central dos embaraços e angústias vividos por Sidonie?
No início da releitura da psicanálise por Lacan, o inconsciente era considerado a partir do simbólico enquanto estruturado como linguagem e passível da interpretação dos equívocos da fala. Com o advento do ultimíssimo ensino de Lacan, o inconsciente passa a ser considerado real. Manifesta-se, principalmente, fora do sentindo, quando o espaço de um lapso não tiver "nenhum impacto de sentido (ou interpretação)" (Lacan, 2003, p. 567), isto é, apresenta-se sem a armadura do pai, o que faz com que o sujeito se torne um tanto quanto desbussolado (termo retomado da Conferência de Comandatuba, Uma fantasia, de Miller, 2005, p. 7).
Desde os tempos do Outro, do amor ao pai, as histéricas buscavam resolver a questão da feminilidade pela via fálica por meio de deslizamentos significantes, de sintomas conversivos metafóricos, em uma vã tentativa de não se haver com aquilo que escapa. A partir de Freud mais especialmente em nosso tempo, tempos de queda do falocentrismo, da erupção do real, da dificuldade do manejo simbólico , elas, as histéricas, se apresentam também no non sense, no sem sentido, por não mais advirem a partir de deslocamentos significantes.
De acordo com Rosa (2019), as histéricas de hoje se apresentam no campo do acting. Para saber o que é uma mulher, a grande questão histérica, elas, por exemplo, não lançam mão de um homem como testa de ferro, como fazia Dora, mas se posicionam como um, o que não significa necessariamente uma escolha homossexual de objeto.
A partir da leitura da biografia de Sidonie, podemos perceber que havia algo que se diferenciava dos sintomas histéricos ligados à busca de um saber sobre o sexual, pautado no "amor ao pai". As soluções fálicas não sucumbem a tudo em sua existência, ela também se apresenta como não toda. Sidonie viveu uma vida errante. Em nenhuma instância pôde escrever algo que lhe permitisse encontrar um significante que operasse na desordem do real, o que provocava nela uma devastação que levara a patologias do ato, como nas três tentativas de suicídio que ocorreram em diferentes momentos de encontro com o sexo em sua vida.
Se a primeira devastação na vida de uma mulher acontece em sua relação com a mãe, na biografia de Sidonie essa devastação nos salta aos olhos. Sidonie admira sua mãe, especialmente sua beleza e a forma como encantava os homens. Ela, evidentemente, buscava em sua bela mãe alguma substância sobre o seu ser de mulher, mas o que encontra é uma mãe fria que a despreza, que prefere seus irmãos, e que, ao demonstrar algo da sua feminilidade, para não perder o olhar cortês de um homem, renega Sidonie como filha, dizendo com todas as letras: "não, ela não é minha filha".
Parece que Sidonie, em sua narrativa, fala de um pai que se apresenta frágil, que carregou por toda a sua vida as marcas do desejo de sua mãe e os estigmas de seu gozo, permanecendo durante a sua existência como objeto rebaixado, caído e sem lugar no desejo do Outro.
Não houve na vida de Sidonie nada que fizesse suplência a S(A/), nada que desse consistência ao seu ser de mulher. Sidonie não continuou sua análise, não construiu nada que imprimisse uma invenção singular dela mesma sobre o seu ser de mulher. Ela nada pôde construir em torno do seu vazio de ser. Em nenhuma instância ela pôde encontrar algo que fizesse borda, que operasse na desordem de seu real dando um sentido à sua sexualidade.
Sidonie diz nunca ter encontrado prazer na sexualidade; sempre vivenciou o encontro sexual com homens, e até mesmo com mulheres, com asco. Ela mesma concorda com o médico que a denomina como uma "clássica assexual".
Assim como as histéricas presentes no século XXI, em Sidonie, a diferença sexual advinda do campo da identificação, da lógica atributiva do falo, não drena todo o seu pulsional, e o gozo feminino impera sobre o gozo fálico a partir de um retorno real de algo não simbolizado.
Ao ler sua narrativa, fica-se com a impressão de que, diante do horror da castração, e na impossibilidade de simbolizar a "relação sexual que não existe", Sidonie se defende com o véu da beleza, em um gozo imaginário. Ao contar sua história, ela sempre marca a importância da beleza das mulheres pelas quais se encantava, e termina sua história dizendo que foram as belas mulheres que imprimiram uma marca singular em sua vida.
Podemos pensar que talvez seja isso que levou Lacan a dizer que Sidonie seria um dos casos mais perturbadores de Freud. Parece que Sidonie não retratava as histéricas de outrora; as histéricas fálicas, com seus sintomas conversivos e metafóricos.
Se, como nos diz Santiago (2017), o sexo não faz relação, e o dizer é o que resta como a resposta de cada um com relação ao sexo, a obra nos deixa, portanto, uma indagação sobre o esforço de depoimento de Margarethe Trautenegg, que, aos 98 anos, decide contar a sua história. Seria esse esforço uma tentativa de dizer/escrever, onde ela pudesse enfim, através da palavra, encontrar a letra que desse a ela uma identidade, fazendo advir um sentido ao gozo opaco?
Considerações Finais
No Seminário 20 (1982), Lacan nos diz que o ser sexual encontra com os limites dos semblantes, sobretudo dos semblantes fálicos. Para ele, há uma impossibilidade de se escrever a relação sexual. Nos modos como essa questão se coloca, ou seja, na medida em que todo discurso é, por natureza, um discurso rompido, nos perguntamos em concomitância com os objetivos deste estudo: o que permite ao sujeito fazer uma junção entre o que foi elaborado da lógica e os efeitos do real?
Depois de Freud, Lacan não cessou de indicar a subtração da mulher ao saber, a não existência de um conceito que dissesse respeito à singularidade de uma mulher, e que do gozo suplementar, chamado de feminino, não se sabe.
Se, para Rosa (2019), os diagnósticos são constituídos também em função do tempo e da elaboração da teoria e da clínica de cada época, as contingências da época mudaram desde Freud, e a teoria psicanalítica evoluiu também para acompanhá-la. Vivemos no tempo de uma maior impotência da lei paterna, o que também quer dizer que lidamos com sujeitos com recursos simbólicos mais escassos.
A clínica de hoje nos mostra que as mulheres não se histericizam como antes. Elas padecem de seus corpos falantes e convidam a psicanálise à sua mais importante função, a de nomear aquilo que de mais singular um sujeito tem, o gozo pulsional próprio do ser falante, instigando os psicanalistas a construírem uma clínica orientada pelo real do gozo. Nas palavras de Rosa, "ao restituir a verdade à histérica, dissipando-lhe o teatro, o discurso analítico lhe restituiria a verdade de seu modo de gozo, a qual incide sobre os sintomas e sobre o modo como eles se manifestam." (Rosa, 2019, p. 33).
Concluímos, com Rosa (2019), que os sintomas histéricos clássicos e exuberantes que se apresentavam nos tempos de Freud encobriam um vazio, um impossível, e a presença do analista introduziu certo esfriamento entre eles. Mas o amor ao pai já não localizava, nem equacionava o real do gozo que permaneceria escondido ao próprio sujeito. O caso de Sidonie nos aponta que, desde Freud, a função paterna não seria capaz de recobrir essa parte de gozo. Parece que Sidonie, como escreve Zalcberg (2007) sobre as mulheres, sofria, nesse impasse, entre a histeria e a feminilidade, em uma luta entre a falta e o excesso, num abismo de gozo que a fazia caminhar desbussolada (termo retomado da Conferência de Comandatuba, Uma fantasia, de Miller) (Miller, 2005, p. 7) pelas encruzilhadas e enigmas da vida amorosa e sexual.
Os limites de uma clínica ainda orientada pela ordem fálica talvez tenha sido algo que impossibilitou Freud e Sidonie de estabelecer uma transferência que possibilitasse a continuidade do trabalho analítico da paciente, que poderia permitir a ela, a partir dessa incidência do real, encontrar uma letra que desse alguma inscrição a esse gozo que a invadia, dando um nome à sua singularidade feminina.
Referências
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Endereço para correspondência:
Carla Caldeira Durzi
E-mail: cadurzi@hotmail.com
Luis Flávio Silva Couto
E-mail: luisflaviocouto@terra.com.br
Recebido em: 01/11/2019
Revisado em: 02/08/2020
Aceito em: 23/08/2020
Publicado online: 23/03/2021
1 "Was wie das Weib"? De acordo com Ernest Jones, Freud teria dito a Marie Bonaparte, nos anos de 1930: "A grande questão, que nunca encontrou explicação e a qual ainda não consegui deslindar, a despeito de meus trinta anos de oesquisas da alma feminina, é esta: "Que quer a mulher?" (Jones, 1975, 565).