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Tempo psicanalitico
Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.47 no.1 Rio de Janeiro June 2015
ARTIGOS
O balanceamento entre as posições esquizo-paranóide e depressiva (PS↔D) na psicodinâmica criativa
PS ↔ D and Art creative processes
Luís Delgado*
Instituto Universitário - Portugal
RESUMO
No presente trabalho de psicanálise extra-clínica aplicada ao estudo de objectos culturais artísticos, o autor procura mostrar a pertinência da aplicação do modelo bioniano dos elementos em psicanálise, nomeadamente o das inter-relações entre as posições esquizo-paranóide e depressiva (PS↔D) ao processo criativo artístico, isto é, a compreensão de obras artísticas modernas como o resultado da oscilação permanente entre os modos distintos de pensar/sentir dispersivo e integrativo, ilustrando com obras de vários campos artísticos: do teatro (Galileu Galilei de Brecht), da pintura (cubismo de Picasso), da literatura (Ulisses de Joyce) e da dança moderna.
Palavras-chave: Bion, PS↔D, criatividade, arte.
ABSTRACT
In this study of extra-clinical psychoanalysis work applied to the study of artistic cultural objects, the author tries to show the relevance of applying of the bionian model of the elements in psychoanalysis, particularly the interrelationships between paranoid-schizoid and depressive positions (PS↔D) to the artistic creative process, that is, the understanding of modern artistic works as the result of permanent oscillation between different modes of thinking / feeling, either dispersive or integrative, illustrated with works from various artistic fields: theater (Brecht's Galileo Galilei), painting (cubism of Picasso), literature (James Joyce's Ulysses) and modern dance.
Keywords: Bion, PS↔D, criativity, art.
No processo de investigação sobre a natureza do pensamento e da criação de teorias, Bion (1962a/1979) descreveu, na sua terminologia própria, o tipo de actividade inconsciente que identificou na descrição, feita por H. Poincaré, da criatividade científica. Eis como Poincaré descreve o processo de criação da formulação matemática:
Um resultado novo tem valor quando, ligando elementos conhecidos há muito tempo, mas até lá esparsos e parecendo estranhos uns aos outros, introduz repentinamente ordem onde até aí reinava aparentemente a desordem. Ele permite-nos ver então cada um destes elementos e o lugar que ocupa no conjunto. Este facto novo é não apenas precioso por si mesmo, mas só ele dá valor a todos os factos que ele liga (Poincaré, 1908/1972, p. 24-25).
Segundo Bion, a criatividade científica implica o afrouxamento de todos os laços que ligam os elementos no seio de um novo ponto focal. Para designá-lo, Bion utilizou, de Poincaré, a expressão o facto seleccionado: "é o nome de uma experiência emocional, a experiência emocional que consiste em descobrir uma coerência; a sua significação é assim epistemológica, e a relação dos factos escolhidos não deve ser considerada como lógica (Bion, 1962b/1979, p. 93).
Neste facto Bion viu um processo que descreveu como sendo um movimento no sentido da posição esquizo-paranóide (afrouxamento da integração), seguido de uma reorganização em torno de um novo ponto, o mamilo, que reúne novamente as partes num movimento de volta, no sentido da posição depressiva. E representou isto pelo símbolo SP↔D.
De facto, para Bion, no processo criativo, o pensar envolve o desmoronamento de opiniões e teorias anteriores, com o desenvolvimento de novas opiniões e teorias. Ao mudar-se a maneira de pensar, o continente tem de ser dissolvido antes de ser reformado. Bion considerava o esforço de dissolução como possuindo a qualidade de uma pequena catástrofe psíquica, de um despedaçamento. Trata-se, deste modo, de um movimento para a posição esquizo-paranóide (SP). A reformulação de um novo conjunto de opiniões e teorias é um movimento sintetizador, proveniente da posição depressiva (D). O esforço criativo pode assim ser encarado como um processo, em pequena escala, de movimentos para lá e para cá entre a posição esquizo-paranóide e a posição depressiva. E quando o processo acontecia Bion afirmava que ele causava intensas experiências de catástrofe, a propósito do acontecimento mental de criar um pensamento novo. Amaral Dias (2001) reflecte sobre as ligações importantes entre a intolerância à mudança catastrófica e a falta de preocupação pela verdade (do próprio e dos outros) e pela vida, com a consequente falta de respeito do sujeito para consigo próprio e para com o Outro.
Ilustremos com o exemplo da criação da teoria newtoniana da gravitação universal. Para que Newton compreendesse a natureza universal da atracção gravitacional, teve que se libertar da "habitual teoria da compartimentação entre matéria terrestre e celeste, uma forma de fragmentação implícita na infra-estrutura tácita da ciência ‘normal' do seu tempo" (Bohm & Peat, 1987/1989, p. 49). Para quebrar com os modos de pensamento habituais e normalmente aceites, tidos como garantidos e inquestionáveis durante gerações, é necessário muito conhecimento, coragem e paixão, e Newton possuía estas qualidades em abundância. O facto fundamental na visão de Newton (como, aliás, na criação de todas as ideias e percepções novas) foi a sua capacidade de romper com os velhos padrões de pensamento, sem se desorganizar nem intimidar pelo establishment, implicando que fosse posta em dúvida a diferença fundamental que admitia existir entre as matérias terrestre e celeste.
Concluindo, a oscilação entre os fragmentos e o todo assim como a tolerância a um certo grau de desintegração reconhecendo a realidade interna e externa sem a recorrência automática a mecanismos de defesa primitivos e omnipotentes são essenciais para o êxito de qualquer esforço criativo não apenas científico, mas também artístico.
Galileu Galilei, de Berthold Brecht
Vimos a descrição de Bion (1962b/1979) de uma actividade inconsciente presente no processo criativo em que existe um afrouxamento de todos os laços existentes entre os elementos estabilizados e conhecidos (PS) e uma reformulação e síntese dos elementos em torno de um ponto focal, o facto seleccionado - CN (suspensão do significado) ↔ FS (atribuição de significado). Trata-se da capacidade para movimentos emocionais e cognitivos (PS), sempre em torno de um mesmo tema (D).
Iremos ilustrar esta conceptualização da dinâmica psico-emocional do processo criativo com a génese das três concepções (PS) da peça de teatro Galileu Galilei, de Berthold Brecht: 1ª concepção (1938, versão dinamarquesa) em que Galileu é uma figura heróica; 2ª concepção (1946, versão americana) em que Galileu é visto como uma figura criminosa; e por fim a 3ª concepção (1954, versão alemã) em que Galileu é apresentado como uma figura anti-social, canalha, sobre um tema central e constante, a personagem histórica Galileu (D).
Nesta peça central na obra de Brecht, escrita entre 1938 e 1954, o dramaturgo alemão escolhe situações paradigmáticas da vida de Galileu (1564-1642) para problematizar questões que afligiam o autor e que permanecem actuais: as implicações sociais da utilização da ciência e a relação do cientista com a sociedade. As experiências do astrónomo põem em causa não apenas as noções fundamentais da ciência, mas também a visão do mundo e da situação do homem no planeta Terra (Peixoto, 1974).
1ª versão
A primeira versão do texto foi escrita em 1938, no seu exílio na Dinamarca, quando muitos acreditavam na irresistível vitória do nazismo na Alemanha. A expectativa de uma época bárbara era evidente e o autor utilizou o percurso de Galileu para abordar questões que o perturbavam do ponto de vista emocional e intelectual (ideológico). Galileu aparece como um homem de ciência empenhado em conhecer o mundo. É uma figura heróica, preocupada com a educação do povo e que, por isso, escreve em italiano vulgar e não em latim. No final é um homem que não resiste e se retracta, por falta de força para se opor à Inquisição. Fica destroçado, mas passa os seus últimos dias preparando novos trabalhos que tudo faria para passar através da fronteira e revolucionar a ciência e o mundo. Brecht transmite assim aos seus compatriotas a viverem sob o nazismo a ideia de que vale a pena esconderem as suas ideias para poderem divulgá-las mais tarde (Willet, 1967).
2ª versão
Escrita no fim da guerra (1946), é marcada pelo "escândalo" da bomba atómica sobre Hiroxima. Brecht repensa a responsabilidade dos cientistas, alterando assim todo o final da peça, modificando o significado inicial do texto. Segundo o dramaturgo, de um dia para outro a biografia do fundador da física moderna passou a ser lida de uma maneira diferente. Escreve:
O crime de Galileu é o pecado original das ciências naturais modernas [...] A bomba atómica, como fenómeno técnico e como fenómeno social, é o clássico produto final da sua contribuição para a ciência e da sua falência para a sociedade. O crime de Galileu não foi a sua retractação, a negação da verdade científica, mas o facto de ter roubado à ciência o cerne da sua significância social (Crato, 2006, p. 15).
O astrónomo conhece a descoberta do telescópio, coloca acima de tudo os seus interesses pessoais, não tendo em conta as consequências no nível social.
3ª versão
Segue essencialmente a anterior, mas a condenação moral de Galileu é ainda mais extrema. Nessa versão a figura torna-se anti-social e deve ser mostrada como um criminoso social, um canalha, e as cenas são escritas com esse intuito. Numa das novas cenas, por exemplo, o astrónomo lamenta-se de, em tempos, ter escrito em italiano vulgar, afirmando que "o idioma das peixeiras não era apropriado para coisas elevadas" (Crato, 2006, p. 14).
A adaptação portuguesa da peça, A vida de Galileu, baseia-se mais na segunda versão da peça original, mostrando um personagem, Galileu, mais multifacetado, mais realista, mais rico, menos clivado e menos idealizado. É portanto um bom exemplo do processo criativo onde D (síntese e realismo) está mais presente.
O cubismo de Picasso
Pablo Picasso (1881-1973) é o pintor que, aos nossos olhos, melhor encarna o espírito da arte moderna com o estilo cubista, no qual os modelos de percepção e representação são altamente revolucionários e contraditórios.
Desde o desenvolvimento do cubismo, dois princípios opostos de representação coexistiram com igual legitimidade na obra de Picasso. Podemos designá-los pelos termos dissociação e figuração. No seu magnífico trabalho sobre a obra de Picasso, Carsten e Warncke (2002) afirmam:
O termo "figuração" remete para uma arte que reproduz a natureza em modo imitativo, o termo "dissociação" designa, por seu lado, a arte como manifestação autónoma que se afasta do modelo natural sem procurar reproduzi-lo. Estas duas formas artísticas alternam-se e interpenetram-se em toda a obra de Picasso" (Carsten & Warncke, 2002, p. 403).
E mais adiante:
No seio do sistema completo da representação reprodutiva, dissociação e figuração podem ser vistos como meio opostos. A representação representa o ponto de vista subjectivo. Ela mostra o tema tal como o espectador tem experiência dele do ponto de vista onde se encontra. São as leis da perspectiva que regem esta modalidade. Um objecto considerado e reproduzido de frente não apresenta a sua parte de trás. O aspecto desta parte oculta deve ser reconstituído pela imaginação do espectador. A figuração assenta num esforço de associação da parte do espectador. A reprodução dissociativa, quanto a ela, não oculta o dado e visualiza ao mesmo tempo a parte de trás e a parte da frente. Neste sentido, é mais objectiva. O que a reprodução dissociativa permite ganhar por um lado, retoma-o do outro lado: os diversos elementos já não podem ser reunidos num campo fechado; o contorno não podendo já desempenhar o seu papel de limite do objecto, perde a sua função ( Carsten & Warncke, 2002, p. 405).
Ora, este modo de dupla representação figurativa-dissociativa representa o cubismo sintético, característica maior do estilo Picasso e pensamos poder equivaler, no plano psicanalítico, às posições esquizo-paranóide (a representação dissociativa) e depressiva (a representação figurativa), e a associação dos dois modos de expressão às oscilações entre as posições esquizo-paranóide e depressiva (PS↔D), quer nos seus aspectos emocionais quer cognitivos (a representação figurativa representando o pensamento convergente e a representação dissociativa representando o tipo de pensamento divergente).
Ilustremos esta dinâmica através do quadro de Picasso Guitarra e uvas (1912): este quadro, composto por uma mistura de imagens complexas, tem qualquer coisa de mais "real" que uma simples fotografia ou uma pintura realista do objecto em questão, a viola. A mistura de imagens (PS ↔D) reenvia simultaneamente para os diferentes aspectos do objecto, uns mais concretos (D), outros menos precisos (PS). O braço e uma das cavilhas são vistos lateralmente, tal como nós os imaginamos muito naturalmente quando pensamos numa viola. As aberturas laterais, em contrapartida, são vistas de frente; de lado, só as poderíamos imaginar. A curva da caixa é excessivamente pronunciada, tal como poderíamos imaginar uma tal curvatura à luz de uma recordação táctil. O arco e as cordas flutuam no espaço; as cordas intervêm por duas vezes, como que a evocar a vibração sonora: uma vez vista de frente, outra vista de lado. E, apesar de uma aparente mistura de formas deslocadas (PS) - e há muitas mais que não enumerámos - a pintura não evoca qualquer desordem ou caos (D).
A construção pictórica cubista, apelando a uma constante oscilação entre o modo de representação figurativa e o modo de representação dissociativa, parece evocar o esforço criativo tal como Bion (1963) o concebeu, isto é, como um processo, em pequena escala, de movimentos para lá e para cá entre as posições esquizo-paranóide e depressiva.
Ulisses, de James Joyce
No campo da literatura ilustraremos este fenómeno da oscilação entre a actividade mental de carácter integrativo e de carácter dispersivo com a obra de James Joyce (1822-1941), escritor irlandês de primeira importância para a literatura moderna ocidental na qual, no dizer de Correia Marques, o aspecto mais pertinente da obra reside "no processo de exploração joyceana nos domínios da linguagem": a linguagem estilhaçada, fragmentada e hermética de James Joyce é de tipo esquizóide (Correia Marques, 1973, p. 789).
Com os seus conglomerados fantásticos de palavras, ele não se limita a comprimir brutalmente fragmentos de linguagem, mas ele estabelece contrapontos de fantasmas oníricos que correm sob a superfície e ligam as constelações de palavras numa corrente hipnótica ininterrompida (Ehrenzweig, 1967/1974, p. 158).
De facto a escrita de Joyce submete o vocabulário, a sintaxe e a gramática a distorções violentas que têm muita semelhança com os ataques do esquizofrénico contra a sua própria função da linguagem. O esquizofrénico injecta estruturas de processo primário na sua utilização das palavras. A sua "fala aglomerada em vez da fala articulada" (Bion, 1957/1991, p. 84), com os seus "aglomerados" extravagantes assemelha-se às condensações características do sonho e da anedota, sem, no entanto, serem verdadeiras condensações no sentido psicanalítico do termo. Bion tem toda a razão em, a respeito delas, falar de uma linguagem "bizarra", na medida em que o esquizofrénico faz fragmentar a sua linguagem e mistura, com uma violência brutal, os fragmentos em aglomerados concretos e irredutíveis.
Alguns exemplos: Retrato do artista quando jovem: Era eins espaço e um grande e desconfiado espaço era onde wohve um muco" (1916/1960, p. 45). Ulisses: "Bum dia, já visou pavão Piers?" (1922/1998, p. 364), ou "antes de dar uma aperto de mão, ficaram parados em silêncio, cada um contemplando o outro nos dois espelhos da recíproca carne dos seus não dele mesmos rostos". Finnegans Wake: "(Havia uma parede claramente em erecção) Pum! Ele tombou da escada Paw! Finou-se", ou "ovo estrelado, ovo fundo ovo enterra e choca choca como possível" (1939/1985, p. 73).
Joyce foi o criador da técnica literária da corrente da consciência, pela qual o narrador exterior convencional e omnisciente já não é necessário. Em vez disso, o estudo do espírito de uma personagem podia influenciar o estilo da narrativa. Uma vez, em Trieste, apontando para um jovem embriagado que passava, disse: "Gostava de passar para o papel as mil complexidades da sua mente". E começou a fazer experiências com o modo como o estado mental de um personagem pode afectar o estilo da prosa. Em Ulisses, se um personagem está cansado, a própria narrativa torna-se cansada (como no episódio "Eumeu"); se um personagem está embriagado, é a própria narrativa que se torna embriagada (como no episódio "Os bois do sol"; se um personagem se encontra dominado por visões e alucinações, a própria escrita torna-se delirante (como no episódio "Circe").
O interesse dedicado ao funcionamento da mente humana leva Joyce a escrever: "Uma grande parte de toda a existência humana é passada num estado que não pode ser tornado consciente pelo uso da linguagem desperta, gramática pura e seca, e enredo propulsivo" (1975/1992, p. 395). Qual seria para ele a sonoridade do inconsciente? Seria certamente uma mescla (condensação) de todas as línguas humanas. Também nunca poderia ser perfeitamente coerente e legível, na medida em que o inconsciente é caótico e imprevisível e cabe à mente pré-consciente organizar os nossos pensamentos e impulsos. Joyce teria de inventar uma nova linguagem que, de alguma forma, reproduzisse os deslizes e saltos inesperados, as alterações, condensações, deslocamentos e descontinuidades dos sonhos. Uma ilustração interessante encontra-se em Ulisses: quando Bloom começa a adormecer, a sua mente agarra-se à expressão Sinbad the Sailor (Sinbad o Marinheiro), mas o som sobrepõe-se ao significado quando ele perde a consciência e daí resulta Tinbad the Tailor (Tinbad o Alfaiate) e Jinbad the Jailer (Jinbad o Carcereiro) e Whinbad the Whaler (Winbad o Baleeiro) e por aí adiante (Joyce, 1922/1998, p. 689). Ulisses não é apenas para ser lido. É também para ser ouvido.
A oscilação contínua entre o funcionamento dispersivo (próprio da posição esquizo-paranóide) e o funcionamento integrativo (próprio da posição depressiva) estão claramente presentes no lento e laborioso processo de gestação e composição de Ulisses:
No que toca a Ulisses escrevo e penso e escrevo e penso o dia todo (D) e parte da noite (PS). Está em andamento, como tem acontecido estes últimos cinco ou seis anos (PS↔D). Mas os ingredientes só se fundirão quando atingirem uma certa temperatura." (Joyce a Pound, julho de 1917, in James Joyce, 1975/1992, p. 426).
Este estilo conquistado por Joyce, que lhe proporcionou liberdade total pela utilização oscilatória de duas posições mentais e dois funcionamentos mentais contraditórios (processos primário e secundário do pensamento), é o produto que pode ser designado, na terminologia bioniana, por "continente flexível".
Apesar de Ulisses ter sido banido na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos James Joyce acabou por ser reconhecido como um dos maiores escritores do século XX e o livro veio a ser aclamado como uma obra-prima não só no nível literário, pela revolução que provocou no romance moderno, mas também no nível psicológico. Ezra Pound elogiou Ulisses como um "super romance [...] um relatório sobre o estado da alma no século XX" (Pound, 1922/1963, p. 48). Para T. S. Eliot teve "a importância de uma descoberta científica [...]. Ao usar o mito, ao manipular um paralelismo contínuo entre a contemporaneidade e a antiguidade" (inclusivamente pelo uso de diferentes níveis de funcionamento mental e de posições mentais, desde as mais primitivas às mais diferenciadas). Para ele Ulisses era a "expressão mais importante que a idade moderna arranjou" (Eliot, cit. Pindar, 2004/2006, p. 102). Houve quem alcunhasse Joyce de "cientista literário" pela sua imitação e recriação literária da mente no estado de sonho. O próprio Joyce, no seu ensaio "O estado das línguas", argumenta que "a literatura é tão intelectual como a Matemática e merece ser considerada uma ciência. Shakespeare e Milton lidam com factos e ideias como qualquer cientista" (Pindar, 2004/2006, p. 34). Podemos afirmar que, para muitos escritores, o romance, enquanto género, não é apenas um espelho, mas também um instrumento de pesquisa e está muito próximo do ensaio, da reflexão e da investigação.
A dança moderna de Martha Graham
O objectivo da dança moderna é transmitir ao público um sentido da realidade interior e exterior. Martha Graham (1894-1991) foi, nos anos 20 e 30 do século XX, uma das pioneiras da dança moderna, criando um estilo que procurava dar mais ênfase aos sentidos e aos sonhos, tentando teatralizá-los ao máximo através dos movimentos corporais. Com efeito, Graham, interessada pelas teorias freudianas e procurando nas profundezas da alma o movimento do espírito para mergulhar no desconhecido do ser, é uma das coreógrafas que melhor revelou a pulsação do psiquismo. O princípio técnico contract/release (contracção/relaxação) faz o tronco seguir o rasto das emoções mais profundas do psiquismo; ou antes - considerando a afirmação de que o movimento nasce do próprio corpo - pode afirmar-se que Martha Graham deslocalizou o psiquismo do cérebro para a coluna vertebral e para o plexo solar. Para ela o corpo é o elemento pensante. Eis alguns fundamentos da sua escola: o plexo solar é considerado fonte de energia para o movimento; o tronco concentra as forças vitais que se irradiam para os membros; a região pélvica como ponto de apoio e representante da sexualidade; a força do gesto acontece em função da força da emoção (Bourcier, 1987).
Para Pina Bauch (1943-2011), outra grande coreógrafa da dança moderna, o corpo, esse nó de linguagens, é o grande tradutor das emoções e dos pensamentos, dos diferentes estados de espírito, das diferentes culturas, identidades, das diferentes expressões do ser. É através do corpo em acção na dança que se passa da fisiologia à psicologia, da física à metafísica, da sensação à representação. Traduzir, eis o que fazem os corpos nestas danças-teatro. O sentido do movimento significa pensar no que representa propor uma determinada imagem, gesto ou ritmo, relativamente à ressonância que tem com a vida interior ou com uma realidade que é maior do que a do palco, com a qual tem de estar relacionada.
A dança é a expressão rítmica-gestual de sentimentos humanos. Esta afirmação é ainda mais verdadeira na dança contemporânea, na qual é suposto os estados emocionais serem claramente expressos pelos movimentos do corpo. Analisando a sequência destes movimentos/teatralizações poderemos identificar e seguir a sequência dos estados emocionais dos sujeitos, utilizando o conceito bioniano das oscilações entre as posições esquizo-paranóide e depressiva. (PS↔D) (Bion, 1963).
Como já vimos atrás, esta é a notação matemática criada por Wilfred Bion para representar o livre movimento que a mente humana pode realizar entre as duas posições descritas por Melanie Klein (1923). Podemos descrevê-las em termos de algumas das suas manifestações maiores. A primeira provoca sentimentos de omnipotência, persecutoriedade, sensação de aniquilamento, facilidade da clivagem e da fragmentação, incapacidade de percepção realística do mundo interno e externo. A segunda possibilita experiências de ódio e amor que podem estar associados, necessidade de reparação e de relacionamento com o objecto total, assim como percepções realísticas das limitações pessoais, em última análise, da falibilidade e finitude humanas.
A fragmentação é certamente uma das características maiores da contemporaneidade: os movimentos convulsivos, tensos, curtos, fragmentados e por vezes paroxísticos constituem uma das marcas da vida contemporânea. Não poderemos associá-los a produções da posição esquizo-paranóide (SP)? Por outro lado a unidade, a maior constância seriam características de outro viver e de outro sentir, traduzidos na dança contemporânea por gestos mais distensivos, dilatados, inteiros e pausados, geralmente acompanhados de um decréscimo da tensão nervosa e mental, resultando uma sensação de maior repouso, inteireza e coerência do ser. Não poderemos associá-los a manifestações oriundas da posição depressiva (D)?
O contract/release (contracção/relaxação) da linguagem corporal propostos por Martha Graham não equivalerá, do ponto de vista da expressão corporal, à PS↔D da linguagem emocional (uma espécie de espaço-tempo mental) proposta por Bion?
Referências
Amaral Dias, C. (2001, Março). A propósito da dor mental. Trabalho apresentado no XIV Simpósio de Psicopatologia Dinâmica da S.P.P. Porto.
Bion, W. R. (1957/1991). Diferenciação entre a personalidade psicótica e a personalidade não-psicótica. In: Melanie Klein hoje (1, p. 69-86). Rio de Janeiro: Imago.
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Bion, W. R. (1962b/1979). Aux sources de l'expérience. Paris: Press Universitaire de France.
Bion, W. R. (1963). The elements of psycho-analysis. London: Heineman.
Bohm, D. & Peat, F. D. (1987/1989). Ciência, ordem e criatividade. Lisboa: Gradiva.
Bourcier, P. (1987). História da dança no ocidente. São Paulo: Martins Fontes.
Carsten, S.; Warncke, P. & Walter, I. F. (2002). Picasso. Koln: Tashen.
Correia Marques (1973). Joyce. In: Enciclopédia Luso Brasileira da Cultura (11, p. 788-789). Lisboa: Verbo.
Crato, N. (2006). Galileu no palco. Expresso, Revista Actual, 6 maio, 14-15.
Ehrenweig, A. (1967/1974). L'ordre caché de l'art. Paris: Gallimard.
Joyce, J. (1916/1960). Retrato de Artista Quado Jovem. Lisboa: Livros do Brasil
Joyce, J. (1922/1998). Ulisses. Oxford: Oxford University Press.
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Joyce, J. (1975/1992). Selected letters of James Joyce. Ed. Richard Ellman. London: Faber & Faber.
Klein, M. (1923/1996). A a nálise de crianças pequenas. In: Melanie Klein - Amor, culpa e reparação (p. 153-163). Rio-de-Janeiro: Imago.
Peixoto, F. (1974). Brecht, vida e obra (2ª ed.). Rio-de-Janeiro: Paz e Terra.
Pindar, I. (2004/2006). Joyce. Lisboa: Asa.
Poincaré, H. (1908/1972). Science et méthode. Paris: Flammarion.
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Willet, J. (1967). O teatro de Brecht. Rio-de-Janeiro: Zahar.
Artigo recebido em: 20/10/2013
Aprovado para publicação em: 10/11/2013
Endereço para correspondência
Luís Delgado
E-mail: ldelgado@ispa.pt
*Psicanalista (Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica) Professor no Instituto Superior de Psicologia Aplicada - Instituto Universitário.