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Print version ISSN 0102-7395
Reverso vol.31 no.57 Belo Horizonte June 2009
TEORIA PSICANALÍTICA
O canto de sereia1 - Considerações a respeito de uma incorporação frequente da voz materna
The siren song - of Considerations about a frequent incorporation of the maternal voice
Hervé Bentata
Association Lacanienne Internationale
Resumo
O texto enfoca algumas passagens marcantes da Odisseia, sobretudo o encontro de Ulisses com as Sereias, cuja Voz é abordada através da teoria das pulsões, notadamente da pulsão invocante, em contraposição à pulsão escópica. O autor recorre a três expressões gregas que designam a voz e são relacionadas aos registros do real, simbólico e imaginário, remetendo à linguagem das mães com seus bebês, numa tentativa de compreensão dos transtornos das crianças autistas, desde o início de seu desenvolvimento.
Palavras-chave: Autismo, Pulsão invocante, Pulsão escópica, Real, Simbólico, Imaginário, Linguagem materna, Nome-do-Pai, Phthoggos, Op’s, Aoïde.
Abstract
The author discusses some notable excerpts from the Odessy, especially the one in which Ulysses meets the mermaids whose voices are analyzed according to the instinct theory, particularly the invoking instinct in opposition to the scopic instinct. The author utilyzes three greek expressions that designate the voice and are related to the Real, Symbolic and Imaginary Registers, while also referring us to the language that mothers use with their babies in an attempt to better comprehend the disturbances of autistic childre from the onset of their development.
Keywords:Autism, Invoking instinct, Scopic instinct, Real, Symbolic, Imaginary, Maternal language, Name-of-the-Father, Phthoggos, Op’s, Aoïde.
Pretendo abordar a questão da Voz e da pulsão invocante, assim denominada por Lacan. E, para desenvolver esta questão, procurarei ser menos científico e mais lúdico. Assim, para evocar esse “ser mítico” que é a pulsão, minha direção não será tanto aquela do logos, do caminho do conhecimento, e sim, a via do mito. Convido os leitores a seguirem Ulisses em seu antigo périplo e seu encontro com aquilo de fabuloso que é a Voz. De fato, Homero, na Odisseia2, relata-nos o encontro de Ulisses com as Sereias e o poder mortífero de seu canto. Se, como nos diz Lacan, em Televisão3, “o mito é... a tentativa de dar forma épica àquilo que opera na estrutura”, então qual a consistência e quais os ensinamentos a Odisseia pode transmitir aos psicanalistas sobre a voz e sua pulsão? Esse poder de captura irresistível que a voz das Sereias exerce sobre o outro nos interessa como clínicos quando verificamos como as crianças autistas se esquivam da presença de alguém próximo, especialmente da voz humana. Como compreender esse poder, ao mesmo tempo, dotado de tamanha atração e tamanha repulsa pela voz humana? Trata-se de efeitos opostos resultantes de uma mesma pulsão? Como pode um ímã, em relação a seu objeto, provocar, simultaneamente, atração e repulsão através de uma simples inversão de seu campo?
A voz das sereias
Tomemos, de início, a Voz como objeto da pulsão invocante. As ocorrências e os desenvolvimentos referentes à “pulsão invocante”, para mim, são pouco frequentes na obra de Lacan, ainda que ele pareça lhe dar importância. Nos Seminários, aparecem duas vezes quando ele aborda a pulsão, e uma vez, no Seminário XXIV (L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre), ao longo da exposição de Didier-Weill4 sobre a questão da música, do ouvinte e do seu gozo. As indicações que encontramos em Lacan se referem, de início, à conceituação da pulsão invocante, bem como da pulsão escópica: “acrescento a pulsão escópica e aquela que se poderia, quase, denominar pulsão invocante, que possui esse privilégio de não poder se fechar5 Aliás, esta última indicação parece contraditória com o que ele acaba de precisar a respeito do terceiro tempo da pulsão, isto é, seu fechamento: “...Após o se fazer ver, teria lugar um outro, o se fazer ouvir, de que Freud nada menciona.” Acrescenta Lacan: “...eu lhes indico essa diferença que há com o se fazer ver... marcando bem que o se fazer ouvir vai em direção ao outro, enquanto o se fazer ver é dirigido ao próprio sujeito6.
A partir daí me parece, sobretudo no se fazer ver, que sou sempre eu que me mostro, enquanto que no se fazer ouvir, é sempre o outro que me escuta. Tal maneira de conceber esta pulsão estabelece que, de fato, assim como o olhar está para a pulsão escópica, a escuta, mais do que a voz, se faz objeto da pulsão invocante. Apenas Didier-Weill parece ter percebido esta dualidade do objeto, quando fala do “circuito pulsional... que seria algo da ordem da pulsão invocante e de seu retorno em pulsão de escuta7.
Mas, reconsiderando-se o objeto primitivo da pulsão, antes de seu retorno, isto é, a Voz, sua situação como objeto pulsional é particularmente complexa, porque o órgão fonador encontra-se em condição de produzir seu próprio objeto, sem intervenção do Outro. Por isso, a diferenciação entre quem produz a voz do Sujeito ou do Outro, às vezes, é problemática, como nas alucinações. Lacan nos fornece algumas indicações sobre a Voz. Tomaria, especialmente, a do Seminário da Angústia, onde ele afirma, a propósito do som do schofar, como voz de Deus, que aí estamos: “em presença de uma certa forma de objeto a...(voz), em sua dimensão enfim exposta sob sua forma separável”8.
Quanto ao canto das Sereias, como poderíamos definir sua Voz? “A voz que toma corpo” parece uma definição interessante, porque ela estabelece a dimensão pulsional ligada ao elemento sonoro, à voz. É também uma definição literal dessa voz sedutora das Sereias que, do seu rochedo, convocam os marinheiros. Porque, se há uma voz que atrai, que leva o homem ao encantamento, é certamente a das Sereias.
De fato, as Sereias da antiguidade não eram peixes, nem mesmo mulheres-peixe. Não possuíam cauda, e sim, asas. Eram mu-lheres-pássaro, literalmente “des dames-oiselles. Todos os marinheiros que delas se aproximaram, não escaparam, exceto dois, Ulisses e, antes dele, Orfeu, aquele do Tosão de Ouro. Orfeu, para escapar, encobriu a voz das Sereias com o som de sua lira.
Das crianças autistas que se poderiam qualificar de “rebeldes” à voz do Outro, todos nós já ouvimos mais de uma delas cobrir com melopeias e concessões harmônicas de sua voz, a voz desse Outro, um pouco então à maneira de Orfeu. Quanto a Ulisses, se não era o primeiro a escapar das garras das mulheres-pássaro, convenhamos que foi, de fato, o primeiro a poder desfrutar de suas vozes.
No texto de Homero9, as Sereias encantam os marinheiros pela doçura de seu canto: segundo ele diz, estão “assentadas em uma pradaria, em torno de um amontoado de ossos e peles humanas em putrefação.” Prediz Circe a Ulisses: “Aquele que, por imprudência, escuta seu canto, está perdido.” E, para que Ulisses escape a essa morte sem sepultura, ela recomenda que tape com cera os ouvidos de seus companheiros e se faça amarrar ao mastro do navio.
O encontro com as Sereias segue à famosa travessia dos Infernos. Das sombras que Ulisses encontra ao longo de sua viagem aos Infernos, destacaria as três primeiras, porque antecipam cada uma das três dimensões estruturais que descreverei para a voz das Sereias, ou seja, a dimensão Real, a Imaginária e a Simbólica. É assim que Ulisses encontra, em seu companheiro Elpenor, a morte sem sepultura; com sua mãe morta de tanto sofrer pela sua ausência, a doçura do reencontro; com o adivinho Tirésias, a luz do saber.
Realmente, as dimensões estruturais ligam-se aos três significantes que se alternam no texto grego para qualificar o canto sedutor das Sereias. Estas três expressões gregas que designam sua voz são, “phthoggos”, “op’s” e “aoïde”. Vejamos o significado grego destas três palavras:
Phthoggos designa o canto enquanto grito; pode ser apenas um puro som, a reproduzir até mesmo o rosnar do Ciclope; traz em si algo de inarticulado e é associado à morte.
Op’s, ao contrário, faz sempre referência aproximada à palavra, beira a sedução; “neste termo predomina o sentido físico com uma forte conotação de harmonia, frequentemente associada a uma voz de mulher...”
Aoïde, enfim, não é um recipiente, mas um conteúdo: não é a voz, e sim, o próprio hino10. Associa-se ao saber prometido, a uma transmissão simbólica.
Essas três consistências combinadas à voz, que correspondem aos três componentes do nó borromeano, acompanharão meu desenvolvimento, sabendo-se que há um vai e vem constante entre essas diferentes qualidades atribuídas à voz.
Phthoggos: o grito, o inarticulado
Na voz encantadora das Sereias, há uma dimensão da voz como inarticulada, a dimensão do grito. O grito dessas mulheres, que são as Sereias, rompe o silêncio. É esse grito, assinalado no texto grego sob a designação de phthoggos, que as torna irresistíveis? Michel Poizat11, em seu trabalho sobre a ópera, mostra bem que o êxtase do espectador está ligado a essa desarticulação da voz. No auge do canto, a voz da cantora se desarticula em um grito; é este grito da diva que provoca a emoção extrema no ouvinte.
Parece que, no âmago desse grito, dá-se o máximo do gozo e da morte. O grito me parece remeter à dimensão real da voz. Essa passagem ao inarticulado, que reduz toda a significação a um grito, instala um gozo que confunde a vida com a morte. É como o estertor da agonia, aquele som rouco, sufocado, semelhante ao do orgasmo.
Com phthoggos, esse grito essencial ao poder das Sereias, a voz se desdobra como órgão de sedução que promete um gozo sem limites. Mas, além do afeto e do gozo que o grito pode provocar, é preciso acrescentar sua função de apelo imperativo que dirige à presença do Outro. O grito das Sereias subjuga os marinheiros, atraindo-os a elas, inexoravelmente.
É o que se constata, habitualmente, na relação mãe-bebê no que se refere aos efeitos dos gritos dos bebês nas pessoas à sua volta, especialmente em sua mãe. Os gritos do bebê têm um efeito imperativo sobre sua mãe: que mãe pode resistir ao chamado de seu filho? Neste caso, os bebês estão na posição das Sereias... Mas, o que é que nos oprime, nos aperta o coração em todo gemido de uma criança e não pode nos impedir de alguma reação? É algo que trazemos desde sempre? Em todo caso, rapidamente, os bebês utilizam seu grito como um apelo, um meio de trazer a mãe para junto de si.
Parafraseando a citação de Santo Agostinho a respeito da inveja, “vi, com meus próprios olhos, um bebê muito novinho, com menos de seis semanas, que parecia se divertir a chamar a mãe, imitando choro.” Ele sorria assim que ela vinha, deixava-a partir e recomeçava logo depois, algo semelhante ao famoso jogo do carretel descrito por Freud, mas, aqui, com uma mãe real.
Vê-se que, com o apelo, a dimensão simbólica da voz já está totalmente presente e que, então, a dimensão real pura da voz, a do grito, só dura um breve instante.
Ao contrário de um grito que, realmente, rompe o silêncio, seria possível que a voz tão possante e tão desejada das Sereias fosse ouvida unicamente por Ulisses, dentro do mais completo silêncio? Essa voz alucinada que fala a tantos desses que diagnosticamos como loucos, e que são os únicos a ouvi-la, essa voz de seu próprio desejo que lhes retorna, não seria esta a voz das Sereias? É o que defende Kafka12. Para ele, é como se as Sereias estivessem mortas durante a passagem de Ulisses, porque nenhuma contenção saberia resistir à paixão. Simplesmente, Ulisses acreditou ouvir aquilo que tanto temia, ou seja, o objeto de seu desejo.
A mãe, em sua preocupação maternal, está em estado de escuta permanente de seu bebê. Centenas de vezes, ela o escuta murmurar, chamar, virar-se no berço. Mesmo de longe, é como se estivesse com ele em seu quarto. Vinte vezes se levanta, com a certeza de que ele a chama, mas, na verdade, ele dorme. Winnicott fala da loucura materna... a respeito da preocupação materna primária. Em contrapartida, que bebê dirige sua voz a ela com esse propósito, durante seus sonhos diurnos ou noturnos, fazendo disso uma alucinação, como a alucinação canônica do seio?
Op’s: a voz suave, a palavra
A aproximação estrutural que tentei construir entre Ulisses nos Infernos e as três modalidades da voz das Sereias leva a coincidir op’s, a voz suave, com o encontro de Ulisses e sua mãe morta. Assim, op’s seria a voz ancestral, do início de tudo, antes do desmame, um tempo onde nada ainda estava perdido. Como já foi mencionado, o termo grego op’s refere-se a uma fala suave, harmoniosa, nitidamente cantada, com certeza, uma voz de mulher. Em op’s, a voz suave, há sedução. Op’s corresponde à dimensão imaginária da Voz.
Então, essa voz encantadora teria alguma relação com a linguagem que as mães utilizam com seus bebês? Realmente, a mãe fornece sua voz ao bebê desde o nascimento e, em sua loucura materna, ela lhe fala em um dialeto próprio, o mamanhês. Todas as mães falam o mamanhês com seus bebês. É a língua universal das mães, uma espécie de esperanto. Mamanhês é, pois, essa espécie de dialeto especial das jovens mamães. Faz sobressaltar e desfalecer os bebês que as escutam. Sendo assim, funciona como uma espécie de canto das Sereias: atrai de maneira irresistível os bebês a seu alcance. Quando a escuta, o bebê torna-se pulsionalmente muito excitado e se põe a mamar compulsivamente.
Mas, em que consiste esse mamanhês, que língua é essa? Escutem uma mãe conversar com seu bebê: ela lhe fala de um jeito cantante, lentamente, destacando as palavras. A canção de sua voz é repleta de picos prosódicos, os mesmos que se ouvem no grito modulado de surpresa e de extrema admiração. Com sua canção, a mãe atrai o bebê para si, para conquistá-lo, o que o torna caído de amores por ela. Entretanto, sua fala lenta, destacando as palavras, funciona como uma linha perfurada numa folha de papel. Basta segui-la e, depois, destacá-la: isto já prepara o bebê para o corte do significante e, daí, separá-lo dela, de sua mãe.
Assim, através do op’s, a voz da sereia evoca esse encantamento de outrora da voz materna, quando o significante da presença da mãe equivalia à manifestação de sua voz. A voz do grande Outro materno sucedia ao grito de chamada. E um se fundia ao outro como no canto das Sereias.
O mamanhês seria assim essa língua particular da relação precoce mamãe/bebê e corresponderia às três características próprias do canto das Sereias descritas na Odisseia: a criança gritava, phthoggos, e a mãe respondia, op’s e, também, aoïde. Ou seja: Che vuoi? Que quer você, meu querido?
Aoïde: o saber prometido
A voz suave da mãe articula-se prontamente à dimensão simbólica da Voz, que corresponde ao termo grego aoïde, quer dizer, ao saber, a um conteúdo significante.
Mas, o que promete então o canto das Sereias? Quando Ulisses se aproxima, as Sereias o seduzem pela promessa de um saber. Eis o seu chamado:
Venha ó famoso Ulisses,...
Nenhum homem ultrapassou
nossa ilha... sem escutar nossa doce voz
e depois prosseguir, pleno de alegria
e de saber.”
Graças ao recurso astucioso orientado por Circe, Ulisses terá acesso a esse saber que as Sereias prometem. Qual é este saber? Pareceu-nos que poderia tratar-se de um saber sobre o Nome e a Origem. Pois, de fato, é com essa experiência frente ao canto das Sereias que Ulisses se nomeia, vai tornar-se o narrador de sua história e abre-se diante dele o caminho de retorno a Ítaca, à sua Origem. Tomo essa nomeação como um efeito de subjetivação que passa pela Voz do Outro. Isso corresponde bem à concepção lacaniana do sujeito que se constitui no campo do Outro.
O percurso de Ulisses como fecho pulsional
Após esse encontro de Ulisses com o canto das Sereias, como metáfora do encontro de um sujeito com a Voz como objeto a, vamos situar esta experiência da voz no percurso desse herói.
No primeiro trecho de sua viagem, Ulisses já enfrentara diversos obstáculos, entre eles a travessia dos Infernos, de que já falamos. Na Odisseia, o encontro de Ulisses e a Sereias se dá na metade exata do poema e, também, no meio de sua viagem. Esta se passa como uma espécie de descarga simbólica que o lança em uma errância, onde cada lugar constitui o cenário de uma nova provação. Naquele momento, Ulisses está no fundo do abismo, vitimado pelas catástrofes que desabaram sobre ele e seus companheiros. Recolhido por Nausicaa e seu pai, nesse momento preciso ele aceita se nomear e põe-se a contar sua história, fazendo-se, ele mesmo, de Aedo. Até então, havia permanecido anônimo, dizendo ao Ciclope através de um jogo de palavras a respeito de seu nome: “eu me chamo Ninguém”. Essa experiência com o canto das Sereias surge então como um momento de báscula, subjetivamente determinante para Ulisses e que lhe abre o caminho de retorno a Ítaca. Trata-se, então, de um ponto de virada, de reversão em sua viagem.
Assim, seguir essa errância de Ulisses com uma escuta de analista pode funcionar como uma materialização, pela viagem, do fecho do circuito pulsional, especialmente, da pulsão invocante. De fato, o circuito da pulsão com sua reversão a partir do objeto rumo ao sujeito assemelha-se ao percurso de Ulisses e a reversão que começa, justamente, no encontro com as Sereias, descortinando-lhe o retorno a Ítaca.
A partir daí, se essa leitura do relato mítico da Odisseia como circuito pulsional tem alguma pertinência, esta seria a de nos indicar que o fecho do circuito pulsional da voz é determinante para a subjetivação, para constituir um Sujeito. Realmente, na Odisseia, é a partir do momento em que Ulisses pode se nomear, tornando-se, assim, ingênuo (dupe) em relação ao seu nome, que ele para de errar, de vagar. Faço aí, certamente, referência ao Nome-do-Pai. (NT.: Referência também ao título do Seminário XXI: Les non-dupes errent).
Levado a prosseguir seu caminho além do rochedo das Sereias, Ulisses faz outros encontros pulsionais? Mal havia escapado das Sereias, Ulisses encontra-se confrontado com Caríbdis e Cila. Levando-se em conta os atributos de devoramento e expulsão que os caracterizam, essas experiências frente a esses monstros marinhos parecem remeter nitidamente a uma experiência pulsional, respectivamente, oral e anal.
Surge, enfim, um último desafio, especialmente ilustrativo do ponto de vista estrutural: é a proibição de tocar nos bois de Apolo. Abre-se aqui um mundo discursivo, regido por mandamentos que não devem ser transgredidos. Nessa prova, algo da ordem de uma lei é estabelecido e trata-se de um registro semelhante àquele do fruto proibido, no Gênese: “tu não o comerás”. Eis que a transgressão cometida pelos companheiros de Ulisses em relação a esses bois faz surgir uma voz, bem diferente daquela das Sereias. Essa voz que se manifesta no registro do Real tem um caráter de alucinação. Vejamos o que diz:
os couros rastejavam como serpentes,
e as postas de carne mugiam nos espetos,
como a voz dos próprios bois.”
Essa voz destacada, que “se faz ouvir”, esse mugido de boi, tem nítida relação como o som do schofar, corneta feita de chifre de carneiro, utilizada na religião judaica. Reik13 a identifica à voz de Deus, através dos mugidos de agonia da antiga divindade animal do Touro, em um dialeto complexo envolvendo pai e filho, desencadeado pelo assassinato do pai. Ou seja, essa última prova enfrentada por Ulisses, com o mugido de agonia do Boi Sagrado, parece remeter, através da transgressão da lei, ao complexo do assassinato do Pai Primevo e à voz do imperativo superegoico.
Assim, a Odisseia seria também o relato mítico do estabelecimento das pulsões e da constituição de um Sujeito?
Em todo caso, como nos indica Lacan14, “não há nenhuma relação de encadeamento de uma das pulsões parciais com a seguinte, e a passagem... não se produz pela maturação...”. Porém, a sequência de provas por que passa Ulisses nesse estágio crítico do meio de sua viagem situa estruturalmente como inaugural a experiência da Voz. As etapas seguintes, a oral, a anal e o Édipo, só ocorrem mais tarde, possibilitadas por aquela primeira experiência.
O percurso de Ulisses então seria semelhante ao do Infans que, para se nomear, se subjetivar, deve, imperativamente, transpor a difícil etapa da montagem pulsional da Voz. Do ponto de vista clínico, provavelmente, a maior dificuldade para o jovem autista é poder amarrar-se ao mastro e suportar a acalentadora voz materna, em uma travessia que lhe permitiria apropriar-se dela, de “fazê-la sua.
No fim desse percurso de abandono dos objetos pulsionais no trajeto de Ulisses, onde encontramos os diferentes objetos a, entre os quais o olhar, que se situa por ocasião da travessia dos Infernos, seria interessante saber como eles se articulam. A Odisseia parece apresentar, de início, uma articulação do escópico com a voz, depois somente a articulação do oral com o anal para atingir, enfim, a Voz do Supereu. Esse tipo de articulação do objeto a (voz) ao olhar nos interessa, clinicamente, porque é ela, principalmente, que fracassa nessas crianças com dificuldades radicais de subjetivação, como são as crianças autistas. Essas crianças não chegam a articular o olhar com a voz. Isso se vê nitidamente nas filmagens caseiras das crianças autistas, desde novinhas. Do mesmo modo, notas-se que a situação de retirada, de desvio do olhar, é máxima enquanto estão sendo cuidadas, nas trocas de roupa, na amamentação e no banho. Além disso, parece que certas crianças autistas só podem reagir à voz materna quando ela vem de trás, isto é, do limite extremo de seu campo visual.
Esta impossibilidade do autista frente a esse entrecruzamento pulsional parece corresponder à sua incapacidade diante do fecho do terceiro tempo do circuito pulsional, como que patognomônico da dificuldade autista. A criança autista seria aquela que não saberia se fazer ver, ouvir, sugar nem evacuar. Menos ainda um com o outro...
Concluindo diria, de forma mais poética, que a criança autista se posta como Ulisses diante do canto das Sereias, ou seja, no fundo do Abismo. Cabe a nós abrir-lhe o caminho de volta a Ítaca.
Bibliografia
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Endereço para correspondência:
99 rue du Cherche Midi
75006 – Paris – França
E-mail: hbentata@free.fr
RECEBIDO EM: 15/04/2009
APROVADO EM: 27/04/2009
Sobre o Autor
Hervé Bentata
Psicanalista. Membro da Association Lacanienne Internationale (ALI ). Autor de numerosos artigos e coautor de: “École de la violence, violence des préadolescents”, ed. Nolin. “Parentalités d’aujourd’hui et d’ailleurs”, ed. Érès. “Quand la voix prend corps”, ed. Harmattan.
Tradução: Carlos Antônio Andrade Mello
1 Nota do tradutor: Embora o texto se construa em torno da voz como forma pulsional, preferimos, apenas no título, traduzir voz por canto, em virtude da força que a expressão “canto de sereia” tem em nosso idioma, como referência à sedução, ao engodo e à ilusão.
2 HOMÈRE. L’Odyssée, trad. Leconte de Lisle, Classiques, 1989.
3 LACAN, J. Télévision, col. Le Champ Freudien. Paris: Seuil, 1974.
4 DIDIER-WEILL, A. “Le temps de l’autre: la musique”. In Les trois temps de la loi. Paris: Seuil, 1999.
5 LACAN, J. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Séminaire XI. Paris: Seuil, 1964, p.182.
6 LACAN, J. Idem, p.230.
7 DIDIER-WEILL, A. Dans le Séminaire XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre, 1975-77, Leçon 3, p.41.
8 LACAN, J. L’angoisse, Séminaire X, 1962-1963. Paris: Seuil, p.315.
9 HOMÈRE. L’Odyssée, trad. Leconte de Lisle, Classiques, 1989.
10 KAHN, L. La petite Maison de l’âme, Paris: Gallimard, 1993.
11 POIZAT, Michel. Variations sur la Voix. Anthropos, 1992.
12 KAFKA, F. Le silence des Sirènes. In La muraille de Chine. Paris: Gallimard, 1950.
13 REIK, T. Le rituel – psychanalyse des rites religieux. Col. Freud et son temps. Denoël éd., 1974.
14 LACAN, J. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Séminaire XI. Paris: Seuil, 1964, p.210.