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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.29 no.3 Rio de Janeiro  2017

 

SEÇÃO LIVRE

 

O uso do desenho em terapia de casal

 

The use of drawings in couple therapy

 

El uso del dibujo en la terapia de pareja

 

 

André Luiz De Biagi-BorgesI; Emerson Fernando RaseraII

IUniversidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG, Brasil
IIUniversidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG, Brasil

 

 


RESUMO

A terapia de casal tradicionalmente restringiu seu interesse pela linguagem verbal, considerando pouco outras formas linguísticas. A fim de investigar alternativas terapêuticas, este estudo buscou compreender os processos relacionais de coconstrução de sentidos mediante a criação de desenhos na clínica de casal. Metodologicamente os dados foram coletados usando a vídeo-gravação de três casais em atendimento terapêutico. A análise dos dados, fundamentada na poética social, incluiu as transcrições de todas as sessões, seguidas de sua leitura, que possibilitou a identificação de diferentes usos do desenho, caracterizados como forma de: (a) promover a conversa inviabilizada pela tensão; (b) sinalizar o foco e a seleção da conversa; (c) explorar o ainda não-dito na conversa; (d) fortalecer descrições e narrativas na conversa e (e) sintetizar o processo avaliatório. A conclusão foi que o desenho consiste em uma nova linguagem que, incorporada à usual, permitirá a aprendizagem de novos gestos e a produção de novos sentidos.

Palavras-chave: desenho; terapia de casal; poética social.


ABSTRACT

Couple therapy has traditionally restricted its interest to verbal language, giving little consideration to other linguistic forms. In order to investigate alternative therapeutics, the present study sought to further understand the relational processes of co-construction of meaning through the creation of drawings, in the clinical setting. Methodologically, the data were collected using video recordings of three couples. Data analysis, grounded in social poetics, included the transcripts of all sessions, followed by readings of these transcripts that enabled identification of different uses of the drawings. These included: (a) promote discussion inviable because of tension; (b) signal the focus and selection of the discussion; (c) explore the as yet unsaid in the discussion; (d) strengthen descriptions and narratives of the conversation and (e) summarize the evaluative process. It was concluded that the drawing constitutes a new language, which when incorporated into the usual, allows for the learning of innovative attitudes and the production of new meanings.

Keywords: drawings; couple therapy; social poetics.


RESUMEN

Terapia de pareja tradicionalmente restringida su interés por los recursos del lenguaje verbal, dando muy poca consideración a otras formas lingüísticas. En un intento por investigar las alternativas terapéuticas, este estudio ha tratado de comprender los procesos relacionales de co-construcción de significado a través de la creación del dibujo en la clínica de la pareja. Metodológicamente la recolección de datos se llevó a cabo a través de grabaciones de video de tres tratamientos terapéuticos. El análisis de datos, basado en la poética sociales, incluido las transcripciones de todas las sesiones, seguidas por las lecturas que permitieron la identificación de los diferentes usos del dibujo, que se caracteriza por ser una forma de: (a) promover la conversación frustrada por la tensión; (b) señalar el enfoque y la selección de la conversación; (c) explorar la aún no dicho en la conversación; (d) fortalecer las descripciones y narraciones en la conversación y (e) sintetizar el proceso evaluativo. La conclusión fue que el dibujo consiste en un nuevo lenguaje, que cuando se incorporen a la habitual, permite el aprendizaje de nuevos gestos y la producción de nuevos significados.

Palabras clave: dibujos; terapia de pareja; poética social.


 

 

Introdução

O casal, sob o ponto de vista pós-moderno, poderia ser descrito como uma estrutura microssocial que, co-habitada por duas pessoas compartilhantes de suas histórias e suas culturas próprias, é constituída mediante ação conjunta, a partir da qual negociam sentidos de si e da relação. A construção de sentidos está disponível a partir do uso da linguagem, articulada nas relações dialógicas, sendo por meio delas que as pessoas mantêm descrições de si, as quais dão acesso a determinadas interações conversacionais e restringem outras e, mais que isso, geram consequências imediatas para o fluxo conversacional (Bakhtin, 2010; Shotter, 2010).

Entende-se, portanto, que nesse momento interacional outras linguagens são passíveis de se presentificar como mobilizadoras de novas narrativas. Sendo a comunicação humana constituída dos enunciados verbais tanto quanto dos não-verbais, compreende-se que a natureza gestual, facial e tonal dos enunciados não-verbais prenuncia os verbais. Shotter (2008) descreve essa natureza não verbalizada como manifestação pré-linguística e espontânea das relações responsivas cujo movimento antecipatório é corporificado na linguagem verbal. No contexto da terapia de casal, tais linguagens, concebidas como ações criativas, podem ser articuladas como recursos significativos sustentadores da prática terapêutica.

Conforme sugerem Rober (2002) e Rober, Larner e Paré (2004), é possível trabalhar com a comunicação não-verbal na Terapia Familiar de forma a contribuir ricamente na construção de novos e úteis significados. Nesse caso, as manifestações não-verbais devem constituir-se em convites dialógicos, mediante os quais potenciais podem ser ativados para o processo de entendimento criativo, configurando-se em um empenho conjunto – família/casal e terapeuta – na construção de sentidos. Em seus escritos, Rober discute que na prática terapêutica da familia a importância da comunicação não-verbal parece obscurecida, a partir de um paradigma narrativo, cuja atenção tende a orientar-se para o comportamento verbal, referido como a "história que os clientes narram" (Rober, 2002, p. 191), e a subestimar o comportamento não-verbal, referente à "história que os clientes mostram" (Rober, 2002, p. 191), o que, conforme explica, evidencia-se pela ausência do assunto na literatura das terapias de casal.

Na amplificação do sentido de linguagem para além da verbal, consideram-se fundamentais outras versões possíveis referentes à linguagem não-verbal e à linguagem imagética do desenho como princípios dialógicos na construção do espaço terapêutico. Os estudos sobre a utilização de desenho em Terapia de Casal são tímidos. Em busca eletrônica realizada nas bases PsycINFO, SciELO e PePSIC por publicações entre 2001 e 2012, por meio dos descritores Terapia de casal/Couple therapy e Desenhos/Drawings, resultaram, no PsycINFO, em seis referências, das quais duas eram capítulos de livro e quatro artigos, abrangendo terapia psicanalítica de família, testes de avaliação de funcionamento familiar e o desenho como expressão das percepções do casal. O desenho no campo da psicoterapia tem sido mais explorado junto ao público idoso (Souza, 2005), adolescente (Riley, 2001) e especialmente infantil (Malchiodi, 2001), em uma perspectiva ludoterápica e de cunho essencialista como meio revelador da personalidade e dos conflitos, concernentes a uma ideologia individualista. Tanto no Scielo quanto no PePSIC não foi encontrado nenhum trabalho. Incluímos, então, os descritores Família e Desenho da família. No SciELO nenhum estudo foi encontrado, enquanto no PePSIC é interessante observar a presença do modo tradicional de usar o desenho, posto que todos os 12 artigos encontrados referiam-se à pesquisa focada na criança, com envolvimento da família, dos quais seis empregaram o desenho como técnica projetiva, utilizando-se do "Desenho da Família" (Juras & Costa, 2011; Schneider & Ramires, 2011; Souza, 2009; Neuber, Valle, & Palamin, 2008; Santos, Raspantini, Silva et al., 2003; Peres, 2002; Wagner, & Féres-Carneiro, 2000), cinco adotaram o desenho para avaliação psicológica (Grubits, Tardivo, Bonfin et al., 2012; Vieira, Costa, Caminha et al., 2012; Santos, Ribeiro, Ukita et al., 2010; Sá, 2002) e um para o estudo da representação social (Lima, Colus, Gonini et al., 2008). Em uma perspectiva pós-moderna, alinhada à proposta do uso do desenho como técnica de intervenção com adultos no contexto conjugal, encontramos o estudo de Rober (2009), que, viabilizando espaços para novas narrativas, desloca o conteúdo das imagens dos membros do casal para o intercâmbio dialógico acerca dos desenhos. Outro trabalho considerado no campo da família, na abordagem sistêmico-construcionista, é o de Kjellberg (2002), cuja proposta de inclusão da pintura espontânea de paisagens coloridas como recurso conversacional não invalida as formas já efetivadas e usuais da linguagem; pelo contrário, busca identificar a amplitude do entendimento do uso da linguagem a partir dos movimentos corporais livres como parte da formação das pinturas.

Com efeito, a natureza dialógica e espontânea do desenho no contexto terapêutico é inerente a sua dimensão criativa. Caráter este que, sendo, conforme Shotter (2012, p. 105), similar a "todas as atividades dialogicamente estruturadas" cria continuamente novas possibilidades inventivas e discursivas situacionais, de tal forma que nunca tenha existido antes, como "algo absolutamente novo e irrepetível. Mas algo criado é sempre criado a partir de algo dado. O que é dado é completamente transformado no que é criado" (Bakhtin, 1986, p. 119-120). Imprevisíveis, tais criações tornam-se algo vivo e transformador, dado que a linguagem do desenho cria um discurso dialógico novo transformando-se no próprio discurso. Deixam de ser, então, traços imagéticos, figurativos, representacionais e ganham dimensão dialógica. Dessa forma, o desenho, quando acionado como opção discursiva, oferece condições para a criação de algo até então não criado.

A ação criativa a partir do desenho pode trazer uma ampliação no modo de conversar sobre o problema, conforme Epston, Freeman e Lobovits (2001). O desenho convida o casal a desalojar-se do lugar, de certo modo, seguro, a que está habituado e introduz, na sua própria feitura, a novidade. Com efeito, ao considerar o casal como produtor de um discurso minimamente organizado sobre o seu problema relacional, de modo a confirmar o vivido como verdade, a elaboração criativa do desenho apresentar-se-á como uma surpresa, visto não estar planejado como possibilidade discursiva e, sobretudo, como produtor de sentido.

O desenho, nesse contexto, pode adquirir um caráter desconstrutivo do já posto, do estabelecido, abrindo, assim, a possibilidade de novos entendimentos acerca do vivido como problema na interação conjugal. Neste ponto, faz-se necessário esclarecer que a linguagem metafórica do desenho se constitui menos ameaçadora, porém não menos importante, em aspectos difíceis de adquirirem novos sentidos na relação. Considerando, portanto, a metáfora como uma linguagem fértil, facilitadora na construção de histórias alternativas e de sentidos novos, o desenho irrompe como imagem metafórica da relação do casal ou do problema relatado, bem como da narrativa dominante. A natureza provisória e mutável da metáfora é tida como um convite reflexivo sobre a remoção de uma realidade paralisada e de um senso do absoluto, de forma a mobilizar forças criativas para a construção de outras realidades (Colombo, 2012). Sob essa perspectiva, as possibilidades conversacionais criativas disponibilizadas pela linguagem do desenho são enriquecidas pelos traços e gestos que os acompanham, pela imagética e suas cores e formas, pelas metáforas e seus enredos inventivos, pelas entonações da voz que narra a história e pela história com suas possibilidades do real.

Qualificado como um recurso dialógico expressivo-criativo possível para o entendimento do problema, o desenho torna-se, portanto, facilitador da construção de narrativas menos restritivas e aprisionantes. Assim, ele pode ser introduzido em situações carentes de uma linguagem mais abrangente e menos contaminada pelos discursos socialmente disponíveis. Nesse contexto, funda-se um espaço dialógico criativo-reflexivo, o qual abre caminho para a desconstrução de narrativas tidas como as únicas possíveis ou verdadeiras na pauta relacional do casal. Tal processo enceta outras formas disponíveis de entendimento, até então não percebidas, acerca do vivido como realidade. A reflexividade dialógica, produtora dessa nova coerência, confere à produção criativa do desenho um terreno fértil para a articulação de perguntas transformadoras, as quais favorecem ao cliente, criador do desenho, a apropriação da autoria de sua obra narrada, permitindo-lhe, assim, habitar sua própria construção/criação – a poiesis.

Pensar, portanto, o desenho como linguagem alternativa na coconstrução dialógica do contexto terapêutico é também pensá-lo como espaço plural dinâmico e potencial, onde transitam sentimentos, sensações, impressões, pontos de vista, vozes, palavras, histórias até então não percebidas e nomeadas, porém com possibilidade de significação e nexo, passíveis de construção de realidades para novas formas de vida futura. A proposta da inclusão do desenho como recurso conversacional, a contento das reflexões citadas, não invalida as formas já efetivadas e usuais da linguagem; pelo contrário, busca identificar a amplitude do entendimento do uso da linguagem em uma ação conjunta corporificada.

Tem-se assim, um contexto que se torna propício à escuta de outras vozes que não a do problema, visto que, nesse estágio de entendimento, a descoberta do casal de que não mais está sob o domínio do problema aponta que "o problema tornou-se o problema" e, por conseguinte, relacionar-se com ele torna-se "o problema"; nesses termos, conforme propõe Anderson (2007/2009), o problema é considerado dissolvido no discurso. A partir de então, o desenho estará a serviço de contar a história do problema, bem como de abrir possibilidade para ressignificá-lo.

A prática do desenho em terapia de casal orienta para a construção de contextos participativos, geradores de novos significados, nos quais os cônjuges possam sentir-se seguros para o engajamento no processo criativo, com possibilidades inventivas de um "vir a ser" desejável e satisfatório. Nesse sentido, conforme afirma Wilson (2012), as ferramentas criativas são contribuições para as práticas de "tornar-se", tanto para o casal quanto para o terapeuta e, sobretudo, essenciais na prática terapêutica participativa.

 

Objetivo

Esta pesquisa tem por objetivo compreender os processos relacionais de coconstrução de sentidos, mediante a criação do desenho, no contexto de Terapia de Casal. Buscaremos, especificamente, analisar as implicações da utilização do desenho na construção de narrativas de mudança de si e da relação conjugal.

 

Metodologia

Pressupostos teóricos

Este estudo fundamenta-se no construcionismo responsivo-relacional de Shotter (2008), cuja ênfase recai nos processos locais e situados de construção de sentido, na dinâmica do momento interativo imediato e na atenção à investigação sobre o fluxo conversacional, centrada na natureza dinâmica, corporificada e responsiva do uso da linguagem. A proposta metodológica de Shotter – a poética social – afirma a necessidade de argumentos alternativos na investigação das ciências humanas que contribuam com formas menos comprometidas com a explicação do real e mais engajadas com a tarefa prática da ampliação de possibilidades de sentido social.

Embasado nas proposições bakhtinianas, o método filosófico da poética social investiga o espaço dialógico relacional, visibilizando os processos discursivos e relacionais de produção de sentidos, no qual o papel do pesquisador não se circunscreve à descrição dos sentidos presentes nos enunciados e respostas mútuos das pessoas. Antes, interessa-se por como tais pronunciamentos se relacionam e o modo como constroem entre si conexões ou desconexões e, a partir daí, determinadas realidades conversacionais (Shotter, 1998; Cunliffe, 2002).

Neste estudo do processo de produção de sentidos na relação terapêutica, utilizamos a prática da poética para compreender os momentos de criação de sentidos. Tais circunstâncias são marcadas pelo engajamento conjunto do terapeuta e do casal numa conversa orientada pela busca de diferenças e de conexões que possibilitem a emergência de novidade, de sentido que dá forma a modos de fala e de interação a algo até então sem possibilidade de expressão ou, de outra forma, até então não disponibilizado na linguagem. Esse tipo especial de interação acontece em momentos significativos, usualmente vividos pelos envolvidos no processo dialógico como "momentos marcantes", experimentados quando palavras, gestos, sentimentos os capturam e os movem para ver, agir ou se relacionar com os outros de determinadas maneiras (Shotter, 1996; Shotter, & Katz, 1996; Shotter, 1998).

Contexto e participantes

O objeto de estudo consistiu de atendimentos a três casais em Terapia de Casal, de curta duração, em 10 sessões, com periodicidade semanal e duração de 90 minutos cada uma, tal como é regularmente oferecido a usuários da Clínica Social de um Instituto de Terapia Familiar cujo recrutamento obedeceu ao protocolo da instituição. No primeiro contato com as famílias e os casais que buscam atendimento é preenchida uma ficha que, no caso de não haver vaga, será submetida a uma lista de espera. Assim, quando da ocasião da pesquisa, os três primeiros casais que buscaram o serviço foram convidados a participar do estudo.

Os casais eram constituídos por Écio e Bia, ambos com 33 anos, casados há três anos e sem filhos. Compartilharam da queixa de impossibilidade de diálogo entre eles, o que os afastava conjugalmente; Dante e Carla, com 39 e 43 anos respectivamente, juntos há três anos e que há quatro meses decidiram oficializar a união conjugal, sendo Carla mãe de um adolescente que vivia com o casal, cuja queixa, comum a ambos, referia-se a agressões verbais que levavam ao desrespeito e à possibilidade de separação; e Ciro, com 24 anos e Dany, com 19 anos, casados há menos de dois anos, sem planos de serem pais, queixaram-se da constante presença de brigas entre eles provocadas por certa desconfiança de Dany em relação a Ciro, o que minava a possibilidade de diálogo por parte de Ciro e o mantinha distanciado da esposa. Observamos que, a princípio, os três casais apresentaram, em comum, a queixa sobre a dificuldade comunicacional que poderia levar à separação conjugal. Frente a isso, o terapeuta criou um contexto conversacional no qual pôde identificar e explorar as narrativas dos casais construídas sobre as questões que os afligiam e desenvolver, por meio do diálogo, bem como do desenho, novos significados, narrativas e histórias, viabilizando o surgimento de autodescrições e narrativas de vida novas.

A intervenção com os desenhos se deu em quatro das dez sessões de cada casal, em diferentes situações de dificuldade e tensão sobre as demandas particulares, ocasiões em que a conversação tendia a tornar-se estreita, repetitiva e limitada. Quando do convite aos casais para a pesquisa, foi esclarecido sobre a utilização do desenho como recurso durante o processo terapêutico. Elucidou-se, portanto, que não seria necessário preocupar-se com a qualidade do traço do desenho, uma vez que a utilização desse recurso está para além do critério estético. Isso facilitou a sua utilização no processo, dado que todos os participantes aceitaram prontamente fazê-lo quando solicitado pelo terapeuta.

Construção e análise do corpus

Os procedimentos de constituição do corpus consistiram de registro vídeo-gravado dos atendimentos; confecção e arquivo dos desenhos; diário de campo do terapeuta; transcrição e edição do registro. Realizou-se uma análise do processo de produção de sentidos em Terapia de Casal, especialmente a partir do uso do desenho, focalizando o modo como os cônjuges construíram, numa ação conjunta e corporificada do uso da linguagem, determinadas realidades conversacionais (Shotter, 2008, 1998). Os procedimentos dessa análise tiveram por base as propostas construcionistas da poética social e se constituíram nos seguintes passos: (a) transcrição na íntegra de todas as sessões e edição do texto; (b) leitura exaustiva das sessões transcritas com vistas a apreender o dinamismo do processo conversacional, tendo como foco a construção de sentidos entre os participantes, assim como entre o pesquisador e seu corpus (Guanaes, & Japur, 2008), e (c) a análise descritiva do processo conversacional envolvendo a produção criativa que assim se desenvolveu: (c1) seleção dos momentos marcantes relativos aos sentidos do problema e de si entre os cônjuges; (c2) identificação de trechos das sessões que ilustram esse processo conversacional nas narrativas de mudança; (c3) descrição dos processos de construção de sentidos; e (c4) análise do lugar do desenho no processo de construção de sentido. Essa análise possibilitou identificar cinco categorias do uso do desenho, assim como os momentos marcantes vividos pelo casal e pelo terapeuta no processo terapêutico, com vistas a compreender os processos dialógicos a partir dos quais a terapia emergiu como um contexto de construção de sentidos de si e da relação conjugal.

 

Resultados e discussão

O procedimento analítico sobre o uso e efeitos do desenho levou à definição de categorias distintas, cuja descrição detalhada pretende facilitar o entendimento da importância do uso do desenho na terapia, bem como viabilizar o seu emprego em diferentes situações terapêuticas. Esse recurso linguístico conta com certa flexibilidade, criatividade e despojamento. A linguagem do desenho é tão situacional, performática e transitiva quanto a linguagem normatizada no uso cotidiano, porém seus traços imagéticos registram o momento, que pode ser resgatado em outras formas de interlocuções.

Durante os atendimentos, observou-se que a transposição da linguagem verbal para a não-verbal do desenho contribuía para que as questões discutidas pudessem ser compreendidas sob perspectivas tanto menos envolvidas com o então concebido como "a verdade" quanto mais flexíveis, férteis e, por conseguinte, libertadoras. Mediante as análises das sessões percebemos que o desenho como linguagem situacional constituiu-se em recurso capaz de promover formas plurais de conversação, relevantes na produção de outros discursos, outros entendimentos e, portanto, de novas formas de vida.

Mais especificamente, o uso do desenho, em dadas circunstâncias das conversas, criou condições propiciatórias à amplificação do entendimento acerca das dificuldades oriundas das relações conjugais manifestadas no contexto terapêutico. Numa análise mais apurada das conversas originárias da feitura dos desenhos, observou-se a presença destes em momentos significantes dos processos terapêuticos. Além disso, observou-se que os desenhos apontavam situações como dificuldade de expressão provocada pela tensão trazida pelo tema discutido, ou dificuldade de manter a conversa focada em determinado tema, entre outras. Assim, foram identificadas cinco funções do uso do desenho: (a) como alternativa para a conversa inviabilizada pela tensão; (b) como sinalizador de foco e seleção da conversa; (c) como forma de explicitar o ainda não-dito na conversa; (d) como forma de fortalecer as descrições e narrativas criadas na conversa e (e) como síntese-avaliatória do processo.

Embora essas categorias desempenhem características locais em sua atuação, não são estanques em seu uso, visto configurarem-se interdependentes ao processo como um todo. Podem, assim, ser ampliadas e apresentarem-se imbricadas umas às outras. Em nossa análise, consideramos a categoria predominante em cada contexto de uso do desenho. As categorias, portanto, foram organizadas de forma a esclarecer as possibilidades do uso da linguagem criativa do desenho em contexto terapêutico a partir da análise dos três casos atendidos, nos quais se evidenciaram as cinco formas de utilização do desenho, cujos efeitos estão descritos na análise a seguir.

Promover a conversa inviabilizada pela tensão

A primeira categoria do uso do desenho contextualiza-o como alternativa para continuar uma conversa cujo clima tenso inviabiliza sua fluidez. Durante o processo terapêutico de casal, são percebidos momentos de tensão sugerindo opiniões divergentes, insatisfações, desencontros, decepções e, em uma esfera mais agravante, ameaça à relação, pelo fato de o casal esbarrar em temas relacionais delicados e difíceis de serem abordados na sua conversa cotidiana. Em geral, a conversa dos cônjuges torna-se limitada e oprimida por uma sensação tensa de desconforto, gerada pela angústia inerente à abordagem de tais assuntos, os quais, às vezes, configuram-se como o ponto vulnerável, o tema "quente" da relação conjugal.

Com efeito, o casal tende a suspender a necessidade de entrar em contato com a situação, dado que a sua iminência é fator de sofrimento ainda maior. Os desentendimentos ganham espaço a partir de temas menores que, tornando-se centrais na relação, afastam o casal do manejo de suas reais dificuldades, protegendo-o, de certa forma, do desconforto do enfrentamento. A aparente impossibilidade de levar o tema adiante se caracteriza, portanto, como produtora do desajuste conjugal e inviabiliza o seu entendimento. Soma-se a isso o fato de que a força destrutiva que o problema silenciado adquire aloja-se na relação como carga tensional, impondo ao casal suportar estados confusos de sensações, desejos e sentimentos em nível pessoal e conjugal. Essa situação é configurada por uma instabilidade relacional crescente, comumente gerida por formas de se relacionar desqualificativas, culpabilizantes e desrespeitosas.

Nessa situação, o desenho pode ser usado como uma alternativa eficiente a fim de desconstruir posturas enrijecidas pelo sofrimento conjugal e viabilizar a conversa. A inserção dessa linguagem gráfico-criativa possibilita ao diálogo um tom menos árido, mais metafórico, uma vez que a relação é tratada como se fosse o próprio desenho. Contemplando sua qualidade imagética, a linguagem do desenho confere materialidade ao vivido como problema, amplia o campo conversacional e autoriza a exploração de esferas menos racionalizadas de entendimento. Dessa forma, conversar sobre a produção criativa do desenho gera imagens menos ameaçadoras, que se tornam "sínteses" para falar da relação e de determinados aspectos desta que antes eram difíceis de ganhar sentido e de ser nominadas. Apresentamos a seguir as descrições do uso dos desenhos abarcados nesta categoria.

 

Os efeitos dos desenhos do casal Écio e Bia

Em seus relatos, Écio e Bia descrevem como problema principal a dificuldade de entendimento sobre "pequenas coisas do cotidiano" e, mais especificamente, a queixa de Bia quanto à ausência de diálogo por parte do marido. Sentiam afastando-se conjugalmente devido à dificuldade na convivência diária e à "comunicação falha". Écio sentia que o casamento o privava de liberdade e Bia gostaria de sentir-se mais leve.

Durante a 5ª sessão, Bia relatou o seu desconforto diante da postura de Écio de "fechar qualquer possibilidade" para facilitar o entendimento, o acordo e mostrou-se decepcionada ao perceber que as questões que diziam respeito ao casal perdiam "o valor e o significado". Ao que Écio respondeu que isso acontecia quando ele chegava ao seu limite e ficava "rancoroso", o que o levava a querer "o lado oposto de estarem juntos". O diálogo adquiriu maior nível de tensão mediante a pergunta sobre o risco que o casal corria, ao que ambos responderam não ter falado a respeito disso antes, mas entendiam que o risco da separação era presente, visto que cada um, a seu modo, havia pensado sobre o assunto diante dos momentos de desacordo.

Mediante a emergência do tema sobre separação e da tensão peculiar que o acompanhava, o terapeuta solicitou a produção do desenho que se referisse ao assunto como possibilidade de criar outros modos de conversar sobre o problema, sob o ponto de vista distinto de cada um dos cônjuges frente aos motivos que consideravam importantes.

A leitura do desenho feita por Écio resgatou uma conversa de duas sessões anteriores que dizia respeito a sua dificuldade em manter-se livre dentro do casamento. Tema este que o deixava dividido, posto sentir-se sempre convidado a aceitar o convite de reviver a liberdade dos tempos de solteiro. A partir daí, Écio produziu sentidos novos sobre o que, de forma limitadora, até então havia concebido como liberdade. Bia discutiu, a partir da produção de seu desenho, a possibilidade de viver algo melhor, que lhe parecia existir de alguma forma, mas que ela ainda não conseguia acessar. A linguagem do desenho disponibilizou recursos dialógicos sobre o tema da separação, menos ameaçadores, até então inexistente na vida do casal.

Sinalizar o foco e a seleção da conversa

A segunda categoria configura o uso do desenho como orientador do foco e da seleção da conversa dispersiva e flutuante. Não raro, em algum momento, dentro do trabalho terapêutico, o casal dá sinais de afastamento do ponto em que se encontrava em relação à queixa central. Essa situação se evidencia por meio de conversas e respostas evasivas, tentando, assim, arrastar a conversa terapêutica para uma esfera de amenidades, zona esta de resguardo do confronto com as descrições desprovidas de satisfação, exigindo do terapeuta especial atenção sobre o desvio. Um paradoxo se instala no sentido de que desejam e buscam mudanças, mas não estão dispostos a lidar com os efeitos de tal investimento. A investigação, nesse contexto, estará a serviço de facilitar ao casal a retomada da posição de enfrentamento das insatisfações conjugais.

A relevância do desenho, em um primeiro momento, remete-se, provisoriamente, à ausência inicial do uso da linguagem verbal, cuja transposição é feita para a linguagem imagética, conferindo-lhe um meio interventivo que propõe, a princípio, não o desafio discursivo, mas o da feitura do próprio desenho. Ou por outra, o pensamento é desconectado do uso habitual da linguagem verbal e deslocado para a linguagem criativa do desenho. Durante o processo criativo, o casal empresta o foco da evitação do problema ao ato produtivo do desenho para, mais tarde, devolvê-lo ao seu lugar de origem, porém sob uma perspectiva alterada pela ação da linguagem criativa. Situado nessa nova posição, o casal retoma o discurso verbal para a descrição do desenho e, ao desenvolvê-la, traz formas discursivas mais livres, abertas e comprometidas em estabelecer conexões mais focadas às questões respeitantes à relação conjugal. Contexto este que oferece um rumo menos casual para a conversa, à medida que propicia a eleição de um tema central conectado ao propósito terapêutico. Em seguida, descrevemos os desenhos cuja utilização apresentou esta característica:

Os efeitos dos desenhos do casal Dante e Carla

Carla, mostrando-se mais falante, iniciou dizendo os motivos pelos quais ela e Dante procuraram a terapia de casal. Ela esclareceu que eles se amavam muito, porém os recíprocos ataques e ofensas deterioravam a relação. Ambos concordaram que as agressões verbais levavam ao desrespeito e os machucava muito.

Na 5ª sessão, Carla chegou contando sobre a cirurgia reparadora de uma plástica que havia feito nos seios, o quão bem estava se sentindo, sobre os procedimentos pós-cirúrgicos, bem como sobre outros assuntos cotidianos como a vida escolar do filho ou as providências que tomaram para regularizar os documentos de um carro que Dante havia dado a ela para que levasse o filho à escola.

O terapeuta lançou mão do desenho no início da sessão com a consigna de que criassem uma imagem do tema sobre o qual gostariam de falar, posto ter percebido certa limitação na conversa do casal, ou seja, uma dificuldade em mantê-la para além do trivial. Como forma de ampliar o diálogo, solicitou aos cônjuges que fizessem a leitura do trabalho um do outro e depois do seu próprio.

A partir daí, veio à tona a insatisfação de Carla sobre a compra de uma casa que planejavam juntos, mas não tinham um acordo claro sobre tal projeto. Situação esta promotora de muitas brigas que levavam Carla a pensar em "ir embora". Diante dessa constatação, a conversa adquiriu um tom mais comprometido e sério a respeito dos temas que trouxeram o casal à terapia e Carla dedicou atenção à possibilidade que via da separação do casal em um futuro próximo.

Explorar o ainda não-dito na conversa

Na terceira categoria sobre os usos e implicações do desenho, este é considerado como meio de conectar e aclarar a intenção que, por vezes, mantém-se subtendida na conversa. O não-dito denota algo presente, porém oculto que, por algum motivo, não pôde ser acessado. O não-dito, tanto quanto o problema silenciado, exerce uma força paralisante na relação a cada vez que sucumbe à manutenção do velado, subjacente ao qual se pressupõe desordem relacional. Sob essa ótica, diferentemente do que se teme, a desordem é provocada não por clarificar o que está subtendido; ela nasce da ocultação ou mesmo da inexpressão do problema.

O que significa dizer que a indefinição, na esfera relacional, tem caráter opressivo, angustiante e finalmente adoecedor, resultando no embotamento de construtos mais libertadores na convivência conjugal. A conversa, nesse contexto, respaldada por subterfúgios, ganha formas argumentativas em uma escala crescente e defensiva de falar, anunciando-se insuficiente para dar cabo do ainda não-dito.

A introdução do desenho intenta oferecer uma conversa alternativa sobre o que está obstruído pelo não-dito, oportunizando, portanto, a produção de formas mais criativas de falar. A transposição da linguagem verbal para a não-verbal, por meio do desenho, convida a descrições tanto mais pragmáticas quanto objetivas sobre o subtendido, o que nos aproxima, tanto o casal quanto o terapeuta, de um melhor entendimento sobre o que se tem tido como difícil de ser acessado. As descrições do uso dos desenhos a seguir consistem no fundamento desta categoria.

 

Os efeitos dos desenhos do casal Ciro e Dany

Os jovens Ciro e Dany estão iniciando seu casamento e já enfrentam desafios para sustentarem essa união. Eles procuraram a terapia de casal com a queixa de agressividade verbal. Dany alegava não "haver diálogo no relacionamento" e quando Ciro ouvia algo que não lhe agradava reagia saindo de perto dela e não a deixava terminar de falar. Ciro se ofende por Dany não confiar nele e ela se recente pela "falta de diálogo e constante presença de brigas".

Dany relata, no início da 5ª sessão, a sua dificuldade em confiar em Ciro em função das histórias vividas por ele no passado. Ela expressava o ciúme que sentia de Ciro em relação às ex-namoradas, mas ultimamente, para evitar brigas, tem "sofrido sozinha" e não mais comenta com Ciro sobre isso. Questionada se o não falar sobre tais questões resolvia a situação, ela disse que "não".

Diante desse tema recorrente na vida do casal – a desconfiança – o terapeuta pediu que fizessem um desenho contando como se sentiam em relação ao assunto, buscando visualizar que lugar a questão ocupava na vida conjugal sob um ponto de vista individual.

A partir do desenho, Dany conta que, às vezes, ficava revoltada por estar passando por essa situação e se questionava se merecia isso. Durante a conversa, Dany entendeu que participou ou contribuiu para que isso ocorresse quando aceitou a situação, uma vez que poderia ter recusado conviver com as histórias da vida de solteiro de Ciro, as quais não lhe diziam respeito. Ciro afirma não mais se interessar por essas histórias e Dany dá vida a elas, trazendo-as para o presente e para o meio da relação do casal. Assim, ela devolve Ciro para o passado e não consegue vê-lo como é no presente, ao lado dela. Dany declara não ser feliz assim e que, embora deseje mudar isso em sua vida, não consegue se livrar da situação. Ciro relata que até aquele momento não imaginava que ela se maltratava por causa do passado que pertence a ele. Dany admitiu que o problema existia somente para ela, possivelmente em decorrência de sua insegurança.

Figura 1 Figura 2 Figura 3 Figura 4 Figura 5

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fortalecer as descrições e narrativas na conversa

O desenho, na quarta categoria de seu uso, constitui-se como fortalecedor das descrições e das narrativas criadas na conversa. Em razão da ação ordinária e, por vezes, viciosa em atender demandas limitantes, torna-se uma tarefa árdua sustentar narrativas que trazem potenciais férteis para a constituição de uma relação que o casal possa considerar saudável.

À medida que o processo terapêutico avança, a manutenção e apropriação da produção de conhecimento e sentidos acerca da dinâmica relacional esbarram em narrativas restritivas já instaladas no repertório conjugal, entendidas como as únicas possíveis. Elas são tais como lacunas carentes de ações criativas que as preencham e lhes dêem ascensão; os discursos dominantes focam formas de conversar saturadas pelo problema, ou mesmo pela crença na incapacidade de dissolução do mesmo. A ênfase habitual sobre esse modo de agir dentro da vida a dois tende a promover a construção de padrões relacionais fundados sobre a insuficiência e a insegurança, nos quais nada parece estar bom para o casal, nem mesmo a alternativa da mudança pode ser considerada boa.

Ao se deparar com outras formas possíveis de narrativas a respeito de sua vida, o casal tende a tomar sua conquista criativa como algo simplista ou sem consistência e busca reaver e se afirmar ante seus conhecidos repertórios. Esforço este desprovido de sucesso, posto ser a novidade criada o prenúncio de novas formas de vida que, embora dificultadas pela sustentação de padrões restritivos, não deixam de ser atraentes e possíveis. O caminho do casal ruma à autonomia, à apropriação autoral de suas produções sobre novos entendimentos. Entretanto, para que não caia no vazio, necessita fortalecimento substancial a partir de recursos criativos que possibilitem ao casal uma construção comprometida com suas potencialidades.

O uso do desenho como exercício nutridor de discursos mais construtivos pode viabilizar um olhar mais atento para o desarme das armadilhas das narrativas adotadas como imutáveis e, portanto, definitivas na vida conjugal. A linguagem do desenho adquire um caráter reflexivo sobre a manutenção de tais narrativas, potencializando assim entendimentos alternativos acerca do vivido como problema na interação conjugal. A autoria do desenho é produtora de uma linguagem nova e criativa em seu contexto. Assim, por meio de seu uso, o autor legitima a sua própria narrativa. A partir daí o desenho torna-se um registro gráfico-criativo legitimador e fortalecedor do discurso alternativo, com possibilidades de novas narrativas. Os desenhos descritos a seguir representam a utilização considerada.

 

Os efeitos de outros desenhos do casal Écio e Bia

Na 6ª sessão, os cônjuges Écio e Bia chegaram de viagem de final de ano trazendo notícias de bem-estar, sustentadas pela diferença que ambos sentiram em relação às viagens anteriores, durante as quais sempre discutiam. Relataram o quanto se perceberam "mais atentos e carinhosos um com o outro", algo que disseram fazer a diferença.

Buscando construir um registro gráfico-criativo a partir de tais descrições, o terapeuta propôs aos cônjuges um desenho sobre a experiência da viagem, o qual se caracterizou como meio de dar forma ao vivido como novo, bem como teve a função legitimadora daquela conversa sobre mudança.

O desenho abriu espaço para que falassem sobre o afeto de forma menos reticente ou ameaçadora, uma vez que legitimaram que Écio era menos dado a carícias que Bia. Tais características pessoais sempre se tornavam pauta de discussões regadas a argumentos defensivos por parte de ambos os cônjuges.

Sintetizar o processo avaliatório

A quinta categoria concebe o uso do desenho como síntese-avaliatória do processo. O final do procedimento terapêutico é marcado por uma conversa avaliativa do percurso e seus efeitos. Um contexto na maioria das vezes sutilmente delicado, visto gerar certa expectativa ao casal sobre o modo como será "examinado", como se estivesse nas mãos do terapeuta a carta de competência para manter o seu empreendimento de ser casal.

Com efeito, os cônjuges se apropriam de suas potencialidades para a satisfação conjugal à medida que avaliam o processo e se autoavaliam nele a respeito do quanto puderam se dedicar ou estar inteiros nessa experiência. Assim, cabe ao terapeuta disponibilizar meios para que essa autoavaliação seja adequada e significativa para os casais. Pensar a vivência terapêutica a partir da produção dos desenhos pode ser um recurso de grande valia para os envolvidos, à medida que oferece a visualização do processo como um todo e propicia seu entendimento.

Originada a partir da feitura dos desenhos conjugados, a síntese inaugura o redesenho sobre o até então desenhado e, de certa forma, organiza a produção da linguagem criativa, dando-lhe um sentido de inteireza para, no momento seguinte, abrir caminho à experiência avaliatória do processo. Nessa medida, sugere-se aos casais um olhar, uma análise mais abrangente da experiência terapêutica, propondo-lhes a criação de um desenho que diga respeito aos anteriores – um desenho sobre os desenhos –, o metadesenho, propiciatório de um diálogo sobre os desenhos e sobre a jornada terapêutica.

A visualização da produção imagética como um todo confere ao casal a oportunidade de revisitar com segurança sua história e espontaneamente redefini-la. A partir de então, as narrativas são organizadas de acordo com o vivido como significativo e transformador. A síntese, assim, constitui-se um momento de legitimação e apropriação dos sentidos produzidos ao longo do processo terapêutico e torna-se avaliativa mediante as considerações conclusivas dos casais sobre o percurso vivenciado. Apresentamos a seguir as descrições do uso dos desenhos nessa categoria.

 

Os efeitos de outros desenhos do casal Ciro e Dany

Considerando que a última sessão seria dedicada ao encerramento, o terapeuta solicitou que cada cônjuge fizesse um desenho síntese tendo os anteriores como referência.

As conversas se desenrolaram em torno das conquistas do casal durante o processo terapêutico. Ciro registrou o processo em três etapas conforme explicou: "No começo da nossa terapia chegamos meio afastados, depois a gente foi se aproximando e depois, apesar de ter problemas que precisamos resolver, a gente se aproximou, tá junto e eu tô feliz. [...] Brigamos como todo casal briga, mas não como era antes". Ciro conclui dizendo que "antes a briga dominava, agora tem mais amor, união e respeito" quando conversavam. Dany ressaltou que havia parado de brigar pelo motivo da desconfiança e seguiu dizendo ter chegado "desiludida" na terapia, buscando "salvar" seu casamento. Explicou que gostaria de tê-lo representado como um diamante, mas, como não soube fazer o desenho, então representou-o como uma árvore. Esta, conforme sugeriu, era como um diamante bruto a ser lapidado, precisava de cuidados para crescer, tal qual percebia a sua convivência com Ciro: "Nosso relacionamento tava bruto, com a terapia ele foi sendo lapidado, mas não tá todo lapidado, perfeito ainda. Quando chegamos aqui a árvore tava uma sementinha e com a terapia cresceu muito, as raízes é o amor e eu não dou conta de viver com uma pessoa sem amor".

Ciro e Dany concluíram dizendo que se julgam mais bem adaptados à vida conjugal e mais unidos um ao outro. Ambos explicitaram o entendimento comum de que a terapia propiciou crescimento e união ao casal. Relataram que os problemas não mais representavam ameaça ao casamento, fato que os fortalecia para que seguissem adiante cuidando das dificuldades inerentes ao relacionamento conjugal.

 

Considerações finais

O estudo analítico acerca da inclusão do desenho como recurso dialógico, no qual foram identificados efeitos importantes dentro do processo terapêutico, permitiu a formalização de categorias úteis para o entendimento das implicações de seu uso. Tais categorias foram organizadas mediante a identificação de cinco formas de uso pertinentes à implementação do desenho em situações (a) cujo nível tensional agia como distanciador do entendimento do assunto tratado; (b) cujas conversas oscilatórias entre um tema e outro eram dificultadoras da manutenção do foco; (c) cujas conversas pouco esclarecedoras, desenvolvidas a partir de temas não expressos claramente, pressupunham ameaça relacional; (d) cujas enunciações substanciais necessitavam fortalecimento a fim de serem validadas como produtoras de sentidos alternativos; e (e) cujas conversas de encerramento envolvessem a autoavaliação dentro da experiência terapêutica com o desenho e a análise do processo como um todo.

Essa classificação, resultante da análise do processo de três casais, orienta as formas pelas quais os desenhos promoveram outras construções dialógicas sobre temas, na maioria das vezes, difíceis de serem tratados ou reconhecidos como essenciais na construção das narrativas de mudança. Nessa perspectiva, embora as categorias tenham sido estudadas de uma forma distinta, haja vista serem situacionais e locais, é necessário considerar a interligação entre elas mediante seus efeitos, bem como entender esse processo como possibilidade de amplificação e de identificação de outros efeitos em contextos diversos que privilegiem a dialogia responsiva como fundamental para a construção de novos sentidos.

Mais especificamente, entendemos que a legitimação de um contexto inventivo é mobilizadora de mudança na relação conjugal no qual o uso do desenho oferece um discurso menos contaminado, portanto mais original, em relação ao discurso pronto e saturado trazido como o único possível pelo casal. O desenho, antes de ser imagem, é gesto, é corporificação da linguagem viva. Essa produção primeira do desenho – o gesto –, uma resposta espontânea anterior à imagem, faz dele gestor da linguagem pré-intelectual, pré-linguística, corporificada, para então transpor-se em linguagem discursiva. Temos, assim, uma poética do desenho, na qual este sai do lugar comum da produção de traços, formas e cores e ganha corpo no refinamento das ações entrelaçadas de formas gestuais e discursivas possíveis à construção de sentidos para novas formas de vida.

 

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Recebido em 10 de junho de 2015
Aceito para publicação em 28 de setembro de 2017

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