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Psicologia Clínica

Print version ISSN 0103-5665On-line version ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.31 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2019

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438V0031N02A06 

SEÇÃO TEMÁTICA - O FAZER CLÍNICO EM PSICOLOGIA

 

Suicídio: peculiaridades do luto das famílias sobreviventes e a atuação do psicólogo

 

Suicide: peculiarities of surviving families' grief and the psychologist's intervention

 

Suicidio: peculiaridades del luto de las familias sobrevivientes y la actuación del psicólogo

 

 

Priscila Gomes RochaI; Deyseane Maria Araújo LimaII

IPsicóloga pelo Centro Universitário Estácio do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil. priscilarocha59@gmail.com
IIPsicóloga, Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará, Diretora da Clínica Vincular, Fortaleza, CE, Brasil. deyseanelima@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Quando uma pessoa se suicida, as repercussões dessa morte atingem diversos níveis, afetando familiares e pessoas próximas ao falecido, no contexto individual e social. Porém, destacou-se nesta obra o processo de luto das famílias sobreviventes ao suicídio. Por ser uma morte repentina e violenta, o suicídio causa grande sofrimento e exige dos sobreviventes muita energia psíquica para elaborar o luto. Neste artigo foram apontadas, a partir de revisão integrativa, as peculiaridades no processo de enlutamento dessas famílias. Constatou-se que elas vivenciam sentimentos particulares a esta forma de luto, como vergonha e culpa, bem como sentimentos presentes no luto por outros tipos de morte, como tristeza e saudade. Foram destacadas algumas das ações de posvenção, ou seja, atividades que podem ser realizadas por profissionais da psicologia e demais categorias de saúde mental para prestar apoio aos sobreviventes e diminuir o risco de tentativas futuras de suicídio destas pessoas. Ao final, ressaltamos a importância da ajuda profissional na elaboração do luto dos sobreviventes e a necessidade de mais estudos e investimentos em posvenção para capacitação dos profissionais e acolhimento da aflição das famílias em processo de luto por suicídio.

Palavras-chave: suicídio; luto; família; atuação do psicólogo; apoio.


ABSTRACT

The consequences of someone's death by suicide spread through many different domains, as it impacts family members and people close to the suicide victim, in both individual and social contexts. However, this paper highlights the mourning process of family suicide survivors. Suicide is a sudden and violent death, which therefore causes great suffering and demands from the survivors a great deal of psychic energy in order to undergo mourning. The present article, through an integrative review, highlighted the particular characteristics of the mourning process of these families. It was observed that they went through feelings particular to this form of grief, namely shame and guilt, as well as feelings that are common to other types of death, such as sorrow and longing. Some postvention strategies were focused on as strategies that can be applied by psychologists and other mental health professionals with the aim of supporting survivors and reducing their risk of attempting suicide in the future. Finally, an emphasis is placed on the importance of professional support for survivors during the mourning period and on the need for further research and investment on postvention in order to qualify professionals and shelter the sorrow of families in mourning after a suicide.

Keywords: suicide; grief; family; psychologist intervention; support.


RESUMEN

Cuando una persona se suicida las repercusiones de esta muerte alcanzan diversos niveles, afectando familiares y personas cercanas al fallecido en contexto individual y social. Se destacó en esta obra el proceso de luto de las famílias sobrevivientes al suicídio. Por ser una muerte repentina y violenta, el suicídio causa gran sofrimento y exige de los sobrevivientes mucha energía psíquica para elaborar el luto. En este artículo han sido señaladas, a partir de una revisión integrativa, las peculiaridades en el proceso de luto de estas famílias. Se constató que ellas vivencian sentimientos particulares a esta forma de luto, como verguenza y culpa, así como sentimientos presentes en el luto por otros tipos de muerte, como tristeza y nostalgia. Se mencionan algunas de las acciones de intervención después del suicídio, que pueden realizarse por profesionales de la psicologia y demás categorias de la salud mental para proporcionar apoyo a los sobrevivientes y disminuir el riesgo de intentos futuros entre ellos. Al término, se ha resaltado la importância de la ayuda profesional en la elaboración del luto de los sobrevivientes y la necesidad de más estudios y inversiones en intervención después del suicídio para capacitación de los profesionales y acojida de las famílias sobrevivientes.

Palabras clave: suicidio; luto; familia; actuación del psicólogo; ayuda.


 

 

Introdução

O Suicídio faz com que os amigos e familiares se sintam seus assassinos.
Vincent W. Van Gogh (1853-1890)

Mais de 800 mil pessoas morrem por suicídio a cada ano, ou seja, em média, há uma morte a cada 40 segundos por este meio. Além dos que morrem, muitos outros tentam suicídio, que é a segunda principal causa de morte entre pessoas de 15 a 29 anos de idade (OMS, 2014).

Após um suicídio ocorre outro processo: o de luto das pessoas sobreviventes. Franco (2011) explica que o luto não é apenas uma experiência difícil, mas um momento de crise, pois ocorre um desequilíbrio entre a quantidade de ajustamento necessário de uma única vez e os recursos disponíveis para lidar com ele. Dessa forma, são necessários ao indivíduo enlutado tempo e recursos para sua recuperação.

A crise advém da necessidade de continuar desempenhando diversos papéis além do luto pessoal e da sobrecarga de lidar com o luto dos demais membros da família. Assim, a reorganização se dá após a superação dessa crise (luto), que sozinha já é capaz de entravar qualquer mudança necessária ao processo de recuperação (Franco, 2011).

Parkes (2009) complementa esse conceito afirmando que o luto é uma transição social significativa, cujo impacto se propaga por todas as áreas humanas: emocional, cognitiva, física, religiosa, familiar, social e cultural; e é considerado também uma transição, fruto da experiência dolorosa de ter um vínculo emocional rompido mediante a morte de alguém.

Portanto, é um processo em que se faz necessário direcionar ao enlutado alguns cuidados importantes, pois o luto é também uma experiência fortalecedora do ciclo vital e, como parte desse processo, necessita ser expressado e vivenciado, mesmo que nele haja sentimentos difíceis de lidar, como profunda tristeza, ansiedade e revolta (Franco, 2011; Parkes, 2009).

Quando se perde alguém por suicídio, sabe-se que a pessoa tirou a própria vida, o que pode trazer ao enlutado a necessidade de atribuir sentido a tal ato e de justificar o sentido de sua vida. O impacto de estar enlutado dessa maneira é tão significativo que ter se relacionado com alguém que se matou é um dos principais indicadores de risco futuro de suicídio, tamanha a gravidade da situação. Chama-se quem vive esse processo de luto "sobrevivente", seja amigo, colega ou familiar; porém, o impacto de ser sobrevivente tem sido mais extensamente tratado no contexto das famílias enlutadas por suicídio (Tavares, 2013).

Neste artigo, será adotada essa nomenclatura no contexto familiar, ou seja, será entendido por sobrevivente o familiar de uma pessoa que morreu por suicídio. A perspectiva que será adotada para o entendimento do termo família é condizente com o que afirma Oliveira (2008), em que é considerada uma constituição baseada em relações de parentesco cultural e historicamente determinadas.

Tavares (2013) esclarece também que essas pessoas são chamadas de sobreviventes porque têm suas vidas marcadas por um evento externo muito doloroso, pois, a partir do momento em que uma perda desse tipo se constitui na vida de alguém, este sujeito tem sua vida irremediavelmente marcada e precisa dar significado a essa perda, principalmente as pessoas mais próximas, que têm sua vida amplamente transformada.

Franco (2011) afirma que é necessário um rearranjo do sistema familiar e, por consequência, a construção de uma nova identidade, um novo nível de equilíbrio. Assim, é necessário à família que perde um ente querido passar por um processo de ressignificação para estabelecer um novo equilíbrio a partir dessa perda marcante e inalterável, visto que a pessoa que morreu não voltará ao sistema familiar a que pertencia e que, sem a pessoa, esse sistema sofre mudanças.

É importante perceber o suicídio também em suas implicações sobre a vida de outros sujeitos, para assim compreender os sentimentos e outros fenômenos relacionados ao luto por essa forma de morte. Assim, pode-se investir na diminuição do sofrimento dessas pessoas, pois esse luto também precisa ser estudado para viabilizar o apoio psicológico aos sobreviventes.

Portanto, tendo em vista a importância e a necessidade de se estudar tanto o suicídio quanto os fenômenos relacionados a ele, o objetivo geral deste artigo é refletir sobre a especificidade da vivência e elaboração do luto dos familiares sobreviventes ao suicídio. Os objetivos específicos são verificar a existência de particularidades no luto por suicídio, bem como explorar maneiras de oferecer suporte psicológico a essas famílias.

A pergunta elaborada como questão norteadora foi: quais as peculiaridades presentes no luto por suicídio que as famílias sobreviventes têm de enfrentar e como os profissionais da psicologia podem lhes proporcionar apoio psicológico?

 

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa em caráter qualitativo, ou seja, aquela que, segundo Minayo (2009), responde a questões mais particulares, pertencentes a um nível de realidade não quantitativo, trabalhando, por exemplo, com motivos, significados, crenças, valores e atitudes.

Consiste também em uma revisão integrativa de literatura caracterizada por ser uma abordagem metodológica ampla, pois permite a inclusão de estudos experimentais e não experimentais com intenção de proporcionar um entendimento completo do fenômeno analisado e sintetizar o conhecimento para incorporar a aplicabilidade de resultados de estudos significativos à prática, fundamentando-a, assim, a partir do saber científico (Souza, Silva & Carvalho, 2010).

A busca de estudos foi realizada nas seguintes bases de dados eletrônicos: Google Acadêmico (https://scholar.google.com.br/); PePSIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia - http://pepsic.bvsalud.org/) e SciELO (Scientific Electronic Library Online - http://www.scielo.org/). Os descritores utilizados foram: suicídio; sobreviventes; família; luto; apoio.

Foram definidos como critérios de inclusão materiais em língua portuguesa e publicados no período compreendido entre os anos 2010 e 2017, este para que a produção de conhecimento seja baseada na atualidade e aquele para viabilizar a leitura das autoras.

Como critério de exclusão adotou-se: os materiais que não permitiam acesso gratuito ao texto completo, dada a necessidade de leitura integral para evitar equívocos na produção de conhecimento; as produções realizadas por áreas de conhecimento não focadas em saúde mental, como jornalismo e marketing, para que haja coerência e alinhamento entre os dados coletados e os objetivos do trabalho; e as obras que não concatenassem os descritores entre si, visto que cada descritor corresponde a um vasto tema de pesquisa e o objeto de estudo deste trabalho é a relação entre eles.

A partir dessa busca, foram encontradas várias obras e realizou-se a leitura de seus títulos e resumos, a fim de verificar se atendiam aos critérios estabelecidos. Restaram, após concluída essa seleção, cinco artigos e duas dissertações de mestrado separados para leitura completa, apresentados em tabela anexa.

É válido ressaltar que materiais conhecidos previamente pelas autoras também compuseram o arcabouço teórico, como um livro clássico acerca do luto, Sobre a morte e o morrer: o que os doentes têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos seus próprios parentes, de Kübler-Ross (1996), e o livro Crise Suicida: avaliação e manejo, de Neury José Botega (2015), dentre outros materiais.

Seguiu-se a construção do artigo mediante a análise de dados por categoria que, de acordo com Moraes (1999), caracteriza-se pela descrição e interpretação dos conteúdos coletados, possibilitando reinterpretar as mensagens e compreender seus significados e sentidos simbólicos em um nível mais elevado que o de uma leitura comum. Por meio da categorização dos dados, os aspectos mais importantes do conteúdo são destacados e sintetizados a partir de determinados critérios.

 

Suicídio e luto

Conforme exposto pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP, 2014, p. 9), o suicídio é um fenômeno que tem estado presente na história da humanidade e pode ser entendido como "um ato deliberado executado pelo próprio indivíduo, cuja intenção seja a morte, de forma consciente e intencional, mesmo que ambivalente, usando um meio que ele acredita ser letal".

De acordo com Sebastião (2017), o suicídio é percebido em um continuum, em que existem a ideação suicida, a tentativa e o ato consumado. De um modo geral, a ideação caracteriza-se por pensamentos, cognições e desejos de acabar com a própria vida; tais pensamentos podem se transformar em ação, na qual há a intenção de provocar a própria morte e que se, por quaisquer motivos, geralmente alheios ao indivíduo, não resultar na morte como esperado, consiste em uma tentativa de suicídio; porém, se tal ação culminar com o fim da vida do sujeito, é considerada suicídio.

Batista e Santos (2014, p. 17) afirmam que "o suicídio retrata uma situação, na qual o sujeito decide acabar com a própria vida, tentando assim livrar-se de uma situação de dor psíquica insuportável". Fukumitsu et al. (2015) complementam essa ideia afirmando que ocorre no processo de suicídio uma ambivalência entre o desejo de viver e o de acabar com a dor, sem que haja necessariamente o desejo de morrer, mas o de encerrar o sofrimento, acompanhado de impulsividade e rigidez de pensamento que podem levar o sujeito a tentar realmente se matar.

É exposto também que o suicídio é um comportamento resultante de interação complexa entre fatores psicológicos, biológicos, culturais, genéticos e socioambientais. Assim, não pode ser considerado de forma simplista e casual, como se fosse unicamente a consequência de determinado acontecimento na vida da pessoa, pois advém de uma série de fatores acumulados ao longo da história do indivíduo, constituindo a fatal culminância de um processo complexo (ABP, 2014).

Conforme a ABP (2014), a média da ocorrência de suicídios no Brasil é de 30 casos diários, isto é, uma pessoa tira a própria vida a cada 48 minutos. Para cada pessoa que se suicida, outras são impactadas por essa morte, principalmente pessoas próximas à que morreu; ser um sobrevivente é um dos fatores de risco de suicídio mais relevantes (ABP, 2014).

Segundo Batista e Santos (2014), fatores de risco são elementos que aumentam a probabilidade de a pessoa se suicidar, dentre os quais podem ser citados isolamento ou solidão; sentimentos de angústia; e depressão. Também a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP, 2014) refere alguns desses fatores ligados a características psicológicas: personalidade impulsiva, perdas recentes, sentimentos de desamparo, desespero e desesperança, além de depressão (chamados de 4Ds); condições de saúde limitantes, especialmente quando há cronicidade; e transtornos psicológicos, como Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), transtornos depressivos e de personalidade, esquizofrenia, transtorno bipolar.

Dentre alguns fatores sociais que aumentam a probabilidade de ocorrer o suicídio, podemos citar, em escala mundial, indivíduos do gênero masculino, nos quais os números de óbitos por suicídio são três vezes maiores do que entre mulheres; desemprego somado a dificuldades financeiras; estar divorciado, viúvo ou nunca ter casado; viver sozinho; ter entre 15 e 29 anos de idade ou acima de 65 anos. É perceptível que esses fatores podem apresentar interrelação com os sentimentos de desamparo, desesperança, desespero e até depressão (OMS, 2014; ABP, 2014).

Recentemente no Brasil, em setembro de 2017, foi divulgado pelo Ministério da Saúde o primeiro Boletim Epidemiológico de Tentativas e Óbitos por Suicídio no Brasil, que consiste num estudo descritivo do perfil epidemiológico dos indivíduos que tentaram suicídio e dos que chegaram a óbito por essa causa no Brasil, no período de 2011 a 2016.

Nessa pesquisa constatou-se, dentre várias informações importantes, que a maioria das tentativas de suicídio ocorre entre mulheres, na proporção de 69% dos casos entre elas e 31% entre os homens; os meios mais utilizados na tentativa de suicídio de mulheres são envenenamento ou intoxicação (57,6%), enquanto homens tentam mais por enforcamento (62%); também foi exposto que mulheres são mais reincidentes nas tentativas (31,3% mulheres e 26,4% homens), enquanto que mais homens morrem por suicídio (21% mulheres e 71% homens) (Ministério da Saúde, 2017).

Esses dados são de fundamental relevância para o entendimento do suicídio e para a implementação de medidas de prevenção e tratamento. Porém, nos revelam a necessidade de mais pesquisas e que estas sejam mais aprofundadas para compreendermos alguns fatores, como o fato de que as mulheres tentam mais vezes enquanto os homens morrem mais. Não se sabe exatamente o motivo; talvez uma das explicações seja o método utilizado, pois diferentemente do enforcamento, em casos de envenenamento ou intoxicação há mais possibilidades de prestar socorro à vítima, mas faz-se necessária a realização de estudos que comprovem esta ou outras especulações.

Outros dados significativos apontados por esta pesquisa: a mortalidade é mais prevalente em idosos com 70 anos ou mais (8,9%), o que diferencia o Brasil do contexto internacional; porém, entre os indígenas, o maior índice de mortalidade está na faixa etária de 10 a 19 anos (44,8%) (Ministério da Saúde, 2017).

Precisamos de estudos que respondam a outros questionamentos como: por que no Brasil, entre a população geral, os idosos a partir de 70 anos se suicidam mais e entre indígenas a maior mortalidade reside entre 10 a 19 anos; também, o que tem sido feito com intuito de prevenir esses casos e se as pessoas que perderam seus parentes ou amigos têm recebido algum atendimento, visto que, de acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP, 2014), ser sobrevivente a um suicídio é um importante fator de risco para uma futura tentativa de suicídio.

Batista e Santos (2014) complementam que as repercussões do suicídio chegam a diversos níveis. Atingem pessoas próximas, como amigos, colegas de trabalho e familiares em aspectos individuais e até na sociedade, pois causa um impacto psicológico nas pessoas que conviviam com a que se matou e até mesmo em pessoas que não tinham ligação direta com ela, como, por exemplo, ao se sensibilizarem com a dor dos que ficaram.

Essa é uma evidência perturbadora, pois as taxas de suicídio são muito altas; logo, é ainda maior as das pessoas que sofrem com este fenômeno, sendo importante ressaltar que a realidade pode ultrapassar as estatísticas, devido à subnotificação, que ocorre mediante dificuldades de identificação e classificação da causa da morte (Miranda, 2014; Batista & Santos, 2014).

Para exemplificar a subnotificação que acontece no contexto do suicídio, podemos supor um caso de acidente no trânsito em que um condutor dirige ou pilota contra um obstáculo e vem a óbito sem haver possibilidade de distinguir se o indivíduo perdeu o controle do veículo ou se houve intenção no ato. Tais acontecimentos podem ser tentativas de suicídio, mas que, por não haver certeza da intenção, não são notificados como tal.

Fukumitsu e Kovács (2016) apontam que o suicídio não significa apenas matar a si mesmo, pois é um ato que provoca o sofrimento das pessoas que ficaram e vivenciaram seu impacto. Elas afirmam ainda que a morte por suicídio é violenta e repentina, exigindo muita energia psíquica da pessoa sobrevivente em sua elaboração do luto.

Batista e Santos (2014, p. 19) contribuem para o entendimento do luto definindo-o como sendo um "conjunto de reações emocionais, físicas, comportamentais e sociais que aparecem como resposta a uma perda, seja real ou imaginativa (perda de um ideal, de uma expectativa), seja uma perda por morte ou pela cessação/diminuição de uma função, possibilidade ou oportunidade".

Dessa forma, o luto é considerado uma resposta natural à perda, que cada sujeito expressa em diferentes dimensões do ser, por uma perda seja material, como a morte, seja imaterial, como um sonho planejado que por algum motivo não pôde ser vivido.

Kübler-Ross (1996) propõe o entendimento do luto em cinco estágios: o primeiro diz respeito à negação e isolamento, no qual o indivíduo não aceita as evidências que denotam a perda ou a veracidade da chegada da morte; o segundo se refere à raiva, que ocorre quando o sujeito já compreende o fato como algo real, mas sente raiva profunda com a situação e a projeta em tudo e todos; o terceiro é a barganha, em que o paciente, a partir de experiências anteriores em que foi recompensado por bom comportamento, busca adiar o sofrimento ou prolongar a vida em troca de promessas, geralmente feitas a Deus ou a seus cuidadores; o quarto estágio é a depressão, que se divide em dois tipos: preparatória e reativa, esta referente à perda do que passou e foi perdido, enquanto aquela diz respeito à preparação frente a perdas iminentes e funciona como facilitadora para o estágio seguinte; neste último estágio, da aceitação, o paciente não sente mais depressão ou raiva por sua situação e passa a contemplar a morte com certo grau de tranquilidade e paz, a partir de uma separação gradativa (Kübler-Ross, 1996).

Ela cita a importância da esperança, que está presente nos diversos estágios e é uma das causas pelas quais os enlutados suportam meses e até anos de sofrimento, visto que cada indivíduo tem também seu próprio tempo de elaboração do luto. É importante ressaltar que essas fases não são experienciadas por todos os sujeitos, nem nessa ordem exata, pois cada pessoa é única e tem sua própria subjetividade (Kübler-Ross, 1996; Oliveira & Lopes, 2008).

Silva (2013) salienta que a violência presente no suicídio, a qual os sobreviventes precisam enfrentar, se manifesta mediante a autoagressão de tirar a própria vida, no método utilizado e até no gesto de endereçar esse ato a alguém, como acontece em alguns casos. Retrata também que, quando há esse endereçamento, aumenta a dificuldade de elaboração das questões com o falecido, dificultando a possibilidade de reconciliação devido à lacuna que fica a partir do suicídio.

De acordo com o DSM-5, da American Psychiatric Association (2014), os indivíduos que vivenciam luto em consequência de uma morte traumática podem desenvolver transtorno do luto complexo persistente, que se distingue do luto natural devido à presença de reações graves de luto por um período de pelo menos 12 meses após a morte da pessoa amada, interferindo na capacidade do indivíduo de realizar suas atividades.

Esses sujeitos podem desenvolver, além do transtorno do luto complexo persistente, transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), surgindo em ambos pensamentos intrusivos e evitação, mas com algumas variações em cada. No primeiro, os pensamentos ou sentimentos angustiantes são mais relacionados à forma como a morte aconteceu, com foco nos aspectos, especialmente os positivos, do relacionamento com o falecido e no sofrimento com a separação, por exemplo, fantasias sobre o sofrimento da pessoa no momento em que se matou e da falta que sentirá dela, dentre outros pensamentos (ABP, 2014).

No segundo (TEPT), os pensamentos intrusivos estão mais relacionados ao evento tido como traumático, como encontrar o corpo da pessoa que se matou. A evitação nos dois é mais pertinente a estímulos internos e externos que lembram a experiência traumática, havendo também, no transtorno do luto complexo persistente, preocupações com a perda e saudades do falecido, o que não se encontra no TEPT (ABP, 2014).

É importante ressaltar que materiais como o DSM-5 apresentam um enquadramento diagnóstico baseado em estatísticas que deve ser respeitado, mas não deve ser seguido sem um posicionamento crítico que respeite a subjetividade dos indivíduos. Pois, embora possa haver aspectos patológicos no luto, como nos casos em que ocorre o transtorno do luto complexo persistente ou quando se desenvolve outros transtornos psicológicos, como a depressão, Oliveira e Lopes (2008), dentre outros autores, apontam que o luto em geral é um processo não linear que não tem data estabelecida para acabar, nem forma definida para acontecer, pois depende de características individuais de quem sofre e da relação que se tinha com o falecido.

Fukumitsu e Kovács (2016) enfatizam que não se pode reduzir o luto dos sobreviventes a afirmações simplistas, pois é um fenômeno tão complexo quanto o suicídio e diferentes fatores influenciam a maneira como cada pessoa enfrenta uma perda importante. O enlutado precisa enfrentar a necessidade de entender e aceitar a ausência do ente querido, o próprio papel na família a partir da perda e a inexatidão do que se perde.

Surgem ainda sentimentos de impotência e fracasso, quando a família sabia do risco de suicídio do ente amado e até o acompanhava em tratamento especializado. Além desses, podem emergir culpa e raiva, principalmente quando a família não havia percebido a ideação ou comportamento suicida; pode ocorrer a surpresa por não terem compreendido ou valorizado os comportamentos que o sujeito apresentava antes de se matar. É comum também a culpabilização de outras pessoas pela morte ou tentativas de autoflagelo (Tavares, 2013).

Sobre a raiva, Batista e Santos (2014) acrescentam que tal sentimento pode surgir também pelo fato de o falecido escolher a morte em detrimento da vida, somado ao sentimento de abandono. Eles afirmam ainda que o suicídio pode alterar as relações entre os membros da família e em outros tipos de relacionamento, tamanho o sofrimento experienciado.

Tavares (2013) aponta que os sobreviventes sofrem emoções muito fortes, devido à necessidade de dar sentido ao ato da pessoa que deu fim à própria vida e de fazer uma reorganização interna, diante da perda irreversível. Ele cita:

O medo, a culpa, a raiva, a tristeza, a ansiedade, a vergonha, a saudade. Mas os sobreviventes não ficam apenas afetados por emoções como essas; também sofrem de outras decorrências dessas emoções intensas, como a negação, depressão, isolamento, não aceitação daquela ausência, problemas de ajustamento, dificuldades de estabelecer novas relações, sensação de desamparo, queda de produtividade, desenvolvimento de transtornos mentais, aumento do uso de drogas ou álcool e desinvestimento em sua própria vida. (Tavares, 2013, p. 48-49)

Podemos perceber que o luto por suicídio remete o sujeito não só a sentimentos e comportamentos vivenciados num luto por morte natural, mas também o expõe a sentimentos particulares, como vergonha e a outros fenômenos complexos, o que pode estar relacionado ao tabu em torno do suicídio e que possibilita o desenvolvimento de transtornos psicológicos, como a depressão e até a dependência química.

Miranda (2014) afirma que os sobreviventes ao suicídio sentem a perda como uma forte dor psicológica, na qual o significado que cada um atribuirá ao suicídio dependerá de um intercâmbio entre fatores pessoais (características de personalidade, relação com o suicida) e culturais. Em nossa sociedade, esse tipo de morte é valorada como pecaminosa, egoísta e vergonhosa, e tais atribuições culturais influenciam o modo particular como os sobreviventes inseridos nesse contexto enfrentarão o suicídio.

Martins e Leão (2010) apontam que o suicídio de um parente gera sentimentos de responsabilidade nos sobreviventes, levando-os à necessidade de punição e culpa. O que confirma o risco de tentativa de suicídio do sobrevivente, que pode emergir como forma de unir-se à pessoa amada ou de punição por sentir-se culpado por essa morte.

É também apresentado por Miranda (2014) o fato de existir diferença na elaboração do luto por suicídio em relação ao luto por morte natural, porque este tende a ser menos complicado que aquele, possivelmente influenciado, dentre outros fatores, pela maior possibilidade de compartilhamento da dor quando a morte se dá por causas naturais, pois neste tipo de morte há o apoio de outras pessoas e se pode falar sobre a dor e vivenciá-la sem tantos sentimentos de medo, culpa, vergonha, não aceitação do fato e preconceito. A autora complementa:

O suicídio marca uma multiplicidade de pensamentos e sentimentos singulares, como a aceitação da decisão da vítima de se matar. Em vários relatos a dificuldade em entender o porquê do suicídio foi averiguada. Esse processo abre uma lacuna no pensamento, pois apenas hipóteses poderão ser levantadas, o que, geralmente, faz com que os sobreviventes fiquem reexaminando os fatos. Mesmo quando cartas são deixadas, explicando os motivos do suicídio, elas quase sempre não irão responder as dúvidas e anseios dos que ficaram. (Miranda, 2014, p. 98)

Sebastião (2017) reúne algumas das especificidades que os sobreviventes ao suicídio enfrentam em seu processo de elaboração do luto, que se diferencia do luto por outros tipos de morte. Ela apresenta quatro principais: procura por justificação, culpa, estigma social e abandono, que corroboram o exposto.

Entre os sobreviventes pode emergir ainda uma ambivalência sobre o que pensam e sentem em relação ao suicídio, pois há o cansaço com o cuidado dispensado à pessoa que se matou e sentimentos de abandono mesclados ao entendimento de que a pessoa que consumou o suicídio estava sofrendo e precisava de ajuda. Dessa forma, os sobreviventes teriam que lidar não só com os próprios sentimentos, mas também com os da pessoa que se suicidou (Fukumitsu et al., 2015).

Ocorre às famílias sobreviventes ao suicídio um processo de luto não reconhecido ou não autorizado, que acontece devido à forte desaprovação social sobre esse tipo de morte, considerada obscura e fortemente estigmatizada, o que se percebe também em casos de AIDS. Assim, os enlutados não vivenciam o luto publicamente devido ao preconceito e, consequentemente, não recebem o apoio social que poderia ajudá-los a superar esse momento (Domingos e Maluf, 2003; Kovács, 2010).

Em concordância com o exposto, Silva (2013) expõe que o preconceito e o estigma em relação ao suicídio interferem na vivência do luto dos familiares sobreviventes, os quais muitas vezes entendem que é melhor se isolar e evitar falar sobre o que estão sentindo ou sobre o a morte do ente querido, pois sentem vergonha:

Eles não compartilham sua dor, evitam o contato social. A família e, principalmente, a mulher, por ser mãe, esposa, sente muita vergonha por não ter sido suficientemente cuidadora. Ela fica pensando que não cuidou suficientemente. Acha que foi negligente e tem medo que as pessoas pensem isso dela. (Silva, 2013, p. 61)

Segundo a mesma autora, as pessoas próximas ao enlutado também não sabem ao certo como ajudar ou o que dizer ao sobrevivente, por se sentirem constrangidas pelo tipo de morte, que suscita diversas crenças preconceituosas. Acontece em vários casos de se evitar falar sobre o assunto e até de a família manter segredo sobre o tipo de morte do ente querido, o que denota o caráter social do entendimento do suicídio e da vivência desse tipo de luto (Martins & Leão, 2010; Silva, 2013).

Miranda (2014) também salienta a presença do silêncio como forma de lidar com a dor causada pelo suicídio e afirma que, apesar de ser uma estratégia particular de enfrentamento da dor, pode atrapalhar o processo de elaboração saudável do luto, pois a carga emocional é guardada. Ela também expressa que o luto é um processo relacional na família e que o suicídio pode interferir na comunicação adequada dela, desequilibrando-a.

Nunes, Pinto, Lopes, Enes e Botti (2016) afirmam que a maioria dos sobreviventes não recorre a profissionais de saúde para obter ajuda ou suporte especializado, buscando apoio principalmente na família para vivenciar o luto. Relatam que, embora muitos sobreviventes consigam viver esse luto, até quando prolongado, sem a ajuda de profissionais, muitos deles desenvolvem problemas graves de saúde devido à complexidade dos sentimentos envolvidos no processo.

Dentre as alterações na saúde mental que podem ocorrer aos sobreviventes que não buscam ajuda profissional, as que mais comumente se encontram são: depressão, perturbações ansiosas, sentimentos de culpa e sintomas de transtorno do estresse pós-traumático (Batista & Santos, 2014).

Martins e Leão (2010) apresentam algumas estratégias de enfrentamento adotadas pelos familiares sobreviventes ao suicídio, tais como afastamento e evitação, que indicam tanto a vergonha e o medo em relação ao preconceito e ao estigma, como exposto anteriormente, quanto a dificuldade de aceitação do acontecimento e se manifestam na fala dessas pessoas quando dizem que não acreditavam no suicídio ou que evitavam comentários sobre o assunto.

Outra estratégia, que as autoras demonstram que os familiares adotam, é a busca de sentido na religiosidade, atribuindo a Deus a responsabilidade pela situação e buscando ajuda de Deus em tudo ou assumindo uma posição de parceria com Deus na resolução dos problemas vivenciados. Por fim, é apontado que alguns sobreviventes obtêm como forma de enfrentamento a contribuição terapêutica e o trabalho, que emergem como fatores psicossociais positivos pelo apoio encontrado nas pessoas e no ambiente.

 

Atuação do psicólogo mediante luto das famílias sobreviventes ao suicídio

Após a perda de um familiar por suicídio, é importante que os sobreviventes recebam suporte especializado. Embora o objetivo do presente artigo seja apontar as contribuições dos profissionais da psicologia no atendimento a sujeitos enlutados por suicídio, são abordadas também as atuações de outros profissionais de saúde mental, visto que muitas vezes trabalham em conjunto com os psicólogos (principalmente os psiquiatras) ou podem desempenhar o mesmo papel em algumas situações.

Segundo Batista e Santos (2014), nem sempre os profissionais de saúde são procurados pelos sobreviventes, muitos dos quais recorrem inicialmente ou exclusivamente à família na busca por apoio. Possivelmente isso ocorre por questões culturais de algumas sociedades, como o descrédito na importância da saúde mental. Sebastião (2017) confirma esta afirmação, ao apontar que entre as barreiras que existem para busca dos sobreviventes por apoio psicológico estão a desvalorização e o preconceito.

De acordo com Fukumitsu et al. (2015, p. 60), há diversas ações que podem ser realizadas por psicólogos com os sobreviventes ao suicídio, chamadas de posvenção, termo que pode ser definido, segundo essa autora, da seguinte maneira: "toda e qualquer atividade, depois de um suicídio, a fim de prevenir outro ato suicida ou sua tentativa". Dessa forma, quaisquer ações direcionadas aos sobreviventes que tenham por objetivo evitar o surgimento de novas tentativas de suicídio podem ser caracterizadas como posvenção, como atendimento psicológico individual e grupos terapêuticos, dentre outras intervenções. Serão apresentadas a seguir algumas dessas ações de posvenção.

Botega (2015) afirma que quando ocorre um suicídio é papel do profissional de saúde que atendia o sujeito antes do ocorrido oferecer apoio emocional à família sobrevivente, propiciar um ambiente para esse apoio, identificar dentre os enlutados aqueles que mais precisam de suporte e possibilitar o atendimento adequado, além de ser importante que o profissional compareça ao funeral do indivíduo que se suicidou, quando possível.

Diante do risco de tentativa de suicídio a que os sobreviventes estão expostos, torna-se necessário que haja atividades de prevenção desse risco, ou seja, de posvenção. Dentre as formas que os profissionais da psicologia podem utilizar para prevenir, há a possibilidade de aproveitamento dos fatores de proteção do suicídio (Batista e Santos, 2014; Fukumitsu et al., 2015).

Fatores de proteção são recursos que podem reduzir a probabilidade de uma pessoa consumar o suicídio. Embora esses fatores ainda não tenham sido muito estudados quanto a sua real proteção, são considerados na avaliação clínica e acredita-se que influenciam a vida do sujeito desde muito cedo e protegem não só do suicídio, como também de outras adversidades (Botega, 2015). Dentre os fatores de proteção podem ser citados:

autoestima elevada; bom suporte familiar; laços sociais bem estabelecidos com família e amigos; religiosidade independente da afiliação religiosa e razão para viver; ausência de doença mental; estar empregado; ter crianças em casa; senso de responsabilidade com a família; gravidez desejada e planejada; capacidade de adaptação positiva; capacidade de resolução de problemas e relação terapêutica positiva, além de acesso a serviços e cuidados de saúde mental. (ABP, 2014, p. 24)

Dessa forma, a atuação do psicólogo em posvenção ao suicídio pode estar voltada para a identificação e valorização dos fatores de proteção disponíveis aos indivíduos. Vale ressaltar que cada fator de proteção tem uma influência diferente sobre as pessoas, o que requer dos psicólogos um olhar atento a cada situação. Esse método pode ser adotado tanto para tratamento de indivíduos em risco de suicídio quanto para sujeitos que estejam vivenciando o processo de luto por suicídio, visto que estes também podem desenvolver o mesmo risco e que os fatores de proteção podem ser considerados em diversas situações, como supracitado (Tavares, 2013; Botega, 2015; Fukumitsu et al., 2015).

Rostila et al. (2013, apud Nunes et al., 2016) afirmam que, de modo geral, o grupo de apoio é a primeira intervenção clínica de posvenção a ser ofertada às famílias enlutadas por suicídio, pois lhes proporciona a oportunidade de interagir com outros sobreviventes ao suicídio.

Batista e Santos (2014) sugerem que o acompanhamento sistematizado dos sobreviventes poderia prevenir comportamentos suicidas no futuro, pois propiciaria maior proximidade e acesso aos cuidados de saúde. Ampliando esse raciocínio, os mesmos autores apontam a importância da ação em promoção de saúde, intervenção e posvenção, além do investimento na rede de suporte social e de outros fatores de proteção identificados em cada caso.

Para esses autores, não só os profissionais da psicologia ou saúde mental devem atuar junto aos enlutados por suicídio, como também outros profissionais, como técnicos, que devem estar atentos aos sinais de risco que essa população apresentar para encaminhá-los ao atendimento especializado, tanto nos contextos comunitários quanto nos hospitalares. A intervenção psicológica deve estar direcionada para o indivíduo, a família e a comunidade.

Portanto, infere-se, por exemplo, que o psicólogo pode, dentre diversas intervenções, prestar atendimento psicoterápico individual ao sujeito enlutado; no contexto familiar, podem ser ofertados grupos de apoio, como citado anteriormente; e, de forma comunitária, além dos grupos de apoio, atuar em ações de informação sobre o suicídio e suas várias implicações e na divulgação dos grupos de apoio aos sobreviventes.

Às famílias sobreviventes também podem ser oferecidas algumas orientações, como não mentir sobre a causa da morte, para evitar dúvidas ou disfarces fantasiosos sobre ela; realizar o funeral, mesmo que haja receios devido ao preconceito, pois esse momento é importante para início do processo de elaboração do luto e para que os enlutados recebam apoio de outras pessoas (Botega, 2015).

Fukumitsu e Kovács (2016, p. 10) afirmam que "a melhor maneira de acolher o sofrimento provocado pelo suicídio deve derivar do próprio enlutado, que tem o direito de viver o processo de luto a seu modo e conforme o tempo que for necessário".

Dessa forma, pode-se reconhecer a necessidade de compreender e acolher os enlutados por suicídio em suas experiências psíquicas, mantendo de um olhar atento e respeitoso às necessidades individuais.

Em concordância, Fukumitsu e Kovács (2016) acrescentam que os psicólogos e demais profissionais da área da saúde têm de fomentar reflexões sobre recursos e estratégias de reconciliação (tanto entre os familiares, quanto destes com o falecido) e de enfrentamento utilizados para o acolhimento do sofrimento no luto por suicídio.

Martins e Leão (2010) reiteram a importância de que sejam desenvolvidos projetos que aprimorem as práticas de apoio às famílias enlutadas por suicídio para que elas possam desenvolver os recursos necessários para o enfrentamento da situação, pelo aumento da capacidade de aceitação e resiliência.

Fukumitsu e Kovács (2015) afirmam que a importância dos grupos de apoio consiste em evitar os efeitos prejudiciais da negação dos sobreviventes sobre a morte por suicídio que ocorreu na família e dos sentimentos relacionados a ela, sendo papel do profissional ser facilitador e mediador nesse processo de reconciliação do indivíduo com a vida. Elas sintetizam as diversas modalidades da atuação do psicólogo com pessoas enlutadas por suicídio da seguinte maneira:

Atendimentos em psicoterapia individual ou em grupo; aconselhamento psicológico; trabalho psicoeducativo, informando os sinais de alerta e fatores de risco predisponentes e precipitantes, bem como incentivando trabalhos de prevenção ao suicídio; formação de profissionais para habilitá-los a lidar com situações de crise; palestras e eventos sobre a temática do suicídio e sua prevenção; cursos para apresentar subsídios para novas formas de enfrentamento; e grupos de luto aos sobreviventes. (Fukumitsu & Kovács, 2015, p. 44-45)

Nunes et al. (2016) confirmam e ressaltam a importância do investimento nos trabalhos de posvenção, pois se percebe que, em sujeitos enlutados por suicídio que desenvolvem sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático, há a redução desses sintomas bem como melhorias na qualidade de vida tanto desses indivíduos, quanto de outros sobreviventes que não apresentam o transtorno citado.

Fukumitsu e Kovács (2016, p. 11) ressaltam a viabilidade de superação do luto por suicídio mediante a busca pelo sentido de viver, apesar do sofrimento, e afirmam que assim eles podem "transformar vergonha em permissão, culpa em compaixão, saudade em apropriação das vivências, dor em amor e sofrimento em altruísmo".

Dessa forma, percebemos que, embora haja muito sofrimento e dificuldades, é possível que os sentimentos peculiares a essa situação sejam ressignificados e os sobreviventes ao suicídio possam encontrar uma nova maneira de viver, principalmente quando amparados por psicólogos e/ou outros profissionais de saúde mental.

 

Considerações finais

Neste artigo foram constatadas, a partir das contribuições de alguns autores, diversas singularidades no enlutamento das famílias sobreviventes ao suicídio, dentre as quais podemos citar sentimentos particulares a essa forma de luto, como vergonha, abandono, medo, culpa, ansiedade e desamparo, bem como sentimentos presentes em outras formas de enlutamento, mas que adquirem uma conotação diferente no luto por suicídio, como raiva, saudade e tristeza. Esses se diferenciam conforme os motivos por que são sentidos, como, por exemplo, devido ao fato de os familiares não poderem se despedir do falecido e sofrerem com a violência desse tipo de morte ou porque o falecido aparentemente não pensou neles (Tavares, 2013; Fukumitsu & Kovács, 2016).

As famílias enlutadas por suicídio vivenciam diversas atribuições culturais e sociais impostas sobre este tipo de morte, tida como pecaminosa ou egoísta, quando na verdade há muitos preconceitos que dificultam a elaboração do luto dos sobreviventes, o que os faz decidir se calar, viver o luto de forma solitária ou esconder o motivo da morte por medo do que as pessoas pensarão. Possivelmente, essa reação social ocorre por falta de conhecimento das pessoas sobre o assunto, o que evidencia a necessidade de se falar sobre ele (Silva, 2013; Miranda, 2014).

Quanto à atuação dos profissionais da psicologia, foi apresentado que eles podem realizar trabalhos interventivos, de psicoeducação, de disseminação de informações para a comunidade e para profissionais, além de psicoterapia de forma individual ou familiar e formação de grupos de apoio específicos para prestar acolhimento e suporte psicológico a essas pessoas (Batista & Santos, 2014; Fukumitsu & Kovács, 2015).

É válido assinalar que, dentre os trabalhos encontrados, nem todos abordavam apenas a atuação do psicólogo especificamente; em geral, os materiais utilizados apontavam também a atuação de outros profissionais da saúde mental. Isto pode enriquecer o presente trabalho, por aumentar seu alcance de interesse dos leitores.

Diante do exposto, é ressaltada a carência e a possibilidade de novas pesquisas que permitam maior investigação não só sobre a atuação do psicólogo, como também acerca das estatísticas referentes ao suicídio, sobre o enlutamento e superação desse processo nas famílias e entre os demais sobreviventes, devido à amplitude e complexidade de tais temas.

Foi percebido que, como apontam Fukumitsu e Kovács (2016), o termo posvenção ainda não é muito conhecido no Brasil; logo, não há muitos serviços e cuidados sendo prestados às pessoas sobreviventes ao suicídio. Faz-se necessário que esse termo seja mais conhecido e amplamente divulgado entre os profissionais da saúde mental e nas comunidades, para que os trabalhos de posvenção sejam efetivamente realizados e que seja viabilizado o acesso dos enlutados a esse tipo de atendimento.

Assim, a presente pesquisa se justifica por seu caráter informativo e social, visto que contribui para a construção de conhecimento teórico-científico que pode tanto impulsionar novas pesquisas quanto oferecer esclarecimentos e reflexões que motivem a construção de políticas públicas e/ou diferentes ações na sociedade para auxiliar os enlutados que perderam uma pessoa amada por suicídio.

 

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Recebido em 06 de março de 2018
Aceito para publicação em 12 de agosto de 2018

 

 

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