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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.40 no.73 São Paulo Dec. 2007

 

JORNADA DA TEORIA DOS CAMPOS E SBPSP - RELAÇÃO ENTRE TEORIA E CLÍNICA: A QUESTÃO DA INTERPRETAÇÃO

 

Re-desenhando com Winnicott: a interpretação encarnada1

 

Drawing with Winnicott: the interpretation incarnated

 

Rediseñando con Winnicott: la interpretación encarnada

 

 

Milton Della Nina*

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor, como um jogo do rabisco, dialoga com as idéias de Winnicott sobre interpretação em psicanálise. A interpretação, como comunicação na dupla analítica, teria a natureza de um processo. Nele se percebe a visão winnicottiana do desenvolvimento emocional primitivo. Dispõe-se como modificadora da subjetividade, emanando sempre da contribuição do analisando, denominada colaboração inconsciente. A interpretação será considerada construção a quatro mãos. Como fator de transformação afetivo-cognitiva, em espaço potencializador da criatividade, seria objeto transicional desenvolvido na cultura intersubjetiva. O tempo será cuidadosamente observado no ajuste do encontro transferencial, considerando-se o ritmo do analisando. Colocando-se a interpretação como parte integrante do espaço potencial, também poderá ser objeto do brincar. Assim evita-se dogmatismo, sendo hipótese a ser verificada com o analisando e um impedimento à sua submissão. Winnicott, ao longo de seus textos, revelaria a existência de grande confiança na possibilidade evolutiva do analisando. No que denomina capacidade adquirida do analista, existe a sustentação do paradoxo: manter a análise em continuidade enquanto se ajuda a terminar e ao analisando se separar. Portanto, espera-se que cada interpretação possa integrar tais tendências. Finalmente, identifica-se a expressão de amor pela subjetividade, do outro e de si mesmo, analista. Existindo, pode o analista ajudar o outro a existir e acima de tudo a serem pessoas presentes, no âmbito desta sempre surpreendente relação humana, tão difícil de sustentar.

Palavras-chave: Interpretação, Processo analítico, Subjetividade, Objeto transicional, Criatividade.


ABSTRACT

The author, as in a “Squiggle Game”, dialogues with Winnicott’s ideas about interpretation in psychoanalysis. The interpretation, as a communication within the analytic duet, is considered as a process; within it Winnicott’s view on primitive emotional development can be captured. The interpretation is understood as a modifier of subjectivity and always comes from the patient’s contribution, what is called ‘unconscious collaboration’. The interpretation is considered as a four-hands construction. It is a factor of affective and cognitive transformation in potential space of creativity, and a transitional object developed in the intersubjective culture. Time is carefully observed within the transference’s encounter adjustment, where the pace of the patient is considered. Taking into account the interpretation as part of the potential space, it can also be an object of play. It is a hypothesis to be examined with the patient and an impediment to one’s submission. Thus, dogmatism is avoided. Over his papers, Winnicott reveals a great confidence in the patient’s possibility of development. In the ‘gained capacity of the analyst’, there is a paradox: to maintain analysis’s continuity while assisting the patient to be separated and to finish analysis. Therefore, it is expected that each interpretation can integrate this contradiction. Finally, the expression ‘love for subjectivity’ of the patient and of oneself is identified. Being oneself the analyst can help the other person to exist as a present person in a always surprising human relationship, so difficult to sustain.

Keywords: Interpretation, Analytical process, Subjectivity, Transitional object, Creativity.


RESUMEN

Como en un juego de hacer garabatos, el autor dialoga con las ideas de Winnicott sobre interpretación en psicoanálisis. La interpretación como comunicación en el par analítico tendría la naturaleza de un proceso. En el mismo se percibe la visión winnicottiana del desarrollo emocional primitivo presentándose como modificadora de la subjetividad, emergiendo siempre de la contribución del analizando, denominada colaboración inconsciente. La interpretación será considerada una construcción a cuatro manos. Como factor de transformación afectivo-cognitiva, en un espacio potencializador de la creatividad, vendría a ser un objeto transicional desarrollado en la cultura intersubjetiva. El tiempo será cuidadosamente observado en lo que se refiere al ajuste del encuentro transferencial, teniéndose en cuenta el ritmo del analizando. Si se considera la interpretación como parte integrante del espacio potencial, también podrá ser objeto del juego. De esta manera se evita el dogmatismo, siendo una hipótesis a ser verificada con el analizando y un impedimento para su sumisión. A lo largo de su texto, Winnicott revelaría la existencia de una gran confianza en la posibilidad evolutiva del analizando. En lo que denomina capacidad adquirida del analista, se encuentra la ratificación de la paradoja: mantener la continuidad del análisis mientras se ayuda a terminarlo y al analizando a separarse. Por lo tanto se espera que cada interpretación pueda integrar tales tendencias. Finalmente, se identifica la expresión de amor por la subjetividad del otro y de sí mismo, analista. Existiendo, el analista puede ayudar al otro a existir y sobre todo a ser personas presentes en el ámbito de esta siempre sorprendente relación humana, tan difícil de sustentar.

Palabras clave: Interpretación, Proceso analítico, Subjetividad, Objeto transicional, Creatividad.


 

 

Ao praticar psicanálise, tenho o propósito de me manter vivo, me manter bem, me manter desperto. Objetivo ser eu mesmo e me portar bem. Uma vez iniciada uma análise espero continuar com ela, sobreviver a ela e terminá-la. Gosto de fazer análise e sempre anseio pelo seu fim. A análise só pela análise para mim não tem sentido. Faço análise porque é do que o paciente necessita.

Winnicott (1962/1983, pp. 152 -155)

Em seu livro A linguagem de Winnicott, Abram (1996/2000) refere-se ao jogo do rabisco como elemento diagnóstico e mesmo terapêutico no trabalho com crianças. Nele Winnicott se dispunha a brincar, convidando a criança a prosseguir, por meio de seu próprio traço, um rabisco que ele começara a fazer no papel. Em seguida acrescentava algo mais, também como gesto surgido espontaneamente, ao que a criança continuava somando outra linha e assim por diante, ambos alternando colaborativamente, até se darem por satisfeitos. Disso surgiam as mais variadas formas como desenho e sobre as quais a dupla podia ir conversando se eles quisessem. Formas não apenas sugestivas e reveladoras do processo mental em investigação, mas também em sua própria ação de construção causa de movimento psíquico com efeitos transformadores. Ao lado do jogo da espátula, desenvolvido com crianças acompanhadas da mãe, aí já se encontram intrinsecamente algumas de suas idéias básicas, não apenas sobre o desenvolvimento emocional, como também na forma de trabalhar em conjunto com o analisando durante a elaboração em psicanálise.

Na construção deste pequeno texto sobre o enfoque da interpretação por Winnicott e sua importância para a prática analítica da atualidade, pretendo me valer da idéia do jogo do rabisco. Portanto, aqui proponho um “re-desenhar” com Winnicott onde, na leitura de suas contribuições ao tema, tentarei continuar seu traçado com aquilo que tenho considerado em minha prática como analista. Assim o faço pelo respeito à idéia de que cada analista deve ter a liberdade de desenvolver e expressar o que de mais útil encontra na evolução de seu trabalho. Como conseqüência evitaremos nos prender a modelos dogmáticos ou à busca na clínica de pura ilustração de idéias preconcebidas. A leitura de Winnicott tem esse encanto de nos conduzir à nossa própria elaboração, ajudando-nos por meio de seu estilo e verdade de expressão a evitar qualquer invasão sobre a nossa liberdade de pensar. Portanto, também aquilo que esperamos fazer com nossos analisandos, em particular no que se refere ao trabalho interpretativo.

Desde o seminal trabalho de 1945, sobre o desenvolvimento emocional primitivo, Winnicott foi concedendo crescente papel ao ambiente como fator essencial para a organização mental. Daí na clínica a oportunidade oferecida pelo setting como facilitador para as transformações psíquicas durante o processo analítico. O ápice desse enfoque ficará bem definido na década de 1950, onde, ao estudar a regressão e seus aspectos metapsicológicos, estabeleceria definitivamente o setting como instrumento de tanta importância clínica quanto a interpretação. Devido à atenção concedida à reconstrução egóica, antes da possibilidade mutativa dada pela interpretação, o leitor desavisado poderá ser levado a acreditar que esta última teria pouca relevância no seu trabalho. Poderíamos também pensar que entendia a interpretação apenas em sua forma clássica como revelação do inconsciente, segundo a orientação freudiana, ou então com finalidade integrativa, proposta pela escola kleiniana. Entretanto, como veremos, Winnicott tinha da interpretação uma visão pessoal que, aqui colhida de vários textos ao longo de sua obra, mostra original e avançada forma de compreender seu uso em análise.

Na perspectiva clássica da psicanálise a interpretação é instrumento principal de mudança estrutural e será empregada pelo analista, atento à fala do analisando, no momento de máxima oportunidade para a transformação psíquica. Essa visão da interpretação, coerente pela responsabilidade ética do analista e a posição assimétrica instaurada pela análise, pode não obstante, se exagerada, levar a uma compreensão inadequada dessa situação. Assim, poderiam ser superestimados tanto o poder como a importância exclusiva do analista enquanto condutor do processo. Creio ser interessante aqui lembrar as palavras de Winnicott:

A análise não é apenas um exercício técnico. É algo que nos tornamos capazes de fazer quando um certo estádio na aquisição de uma técnica básica é atingido. O que nos tornamos capazes de fazer permite que cooperemos com o paciente no andamento do processo, aquilo que, para cada paciente, tem seu próprio ritmo e segue seu próprio curso (Winnicott, 1954/1978a, p. 459).

E logo acrescenta: “Todas as características importantes deste processo derivam do paciente e não de nós como analistas”.

Para Winnicott a capacidade de cooperação do analisando é inconsciente e se manifesta explicitamente em sua produção dos sonhos, relatos e associações decorrentes. Vincula-se aos aspectos positivos da transferência e nesse sentido a presença e o vínculo dependente do analista são essenciais. Mesmo diante do que denomina análise-padrão, sem se referir ao trabalho com pacientes fronteiriços, Winnicott percebe a reorganização dinâmica do ego diante das influências ambientais mediadas pelo analista. Assim descreve o andamento da análise em três etapas:

Contamos com certa força do ego nos estágios iniciais da análise, pelo apoio que simplesmente damos ao ego por fazer análise-padrão, e fazê-la bem. Isso corresponde ao apoio dado ao ego pela mãe que (na minha teoria) torna forte o ego da criança se, e somente se, é capaz de desempenhar sua parte especial nesta época. Isto é temporário e faz parte de uma fase especial.
Segue-se então uma longa fase em que a confiança do paciente no processo analítico acarreta todo tipo de experimentação (por parte do paciente) em termos de independência do ego.
Na terceira fase o ego do paciente, agora independente, começa a se revelar e afirmar suas características individuais, começando o paciente a ver como natural o sentimento de existir por si mesmo (Winnicott, 1962/1983, p. 154).

No âmbito clínico, entende Winnicott que a presença do analista representa um fenômeno transicional, já que simultaneamente é representante do princípio da realidade, mantendo as condições externas do setting, mas também objeto subjetivo para o paciente. Nesse ambiente favorecedor de área potencial de ilusão é que o fazer do analista inclui e fundamenta a intervenção interpretativa.

Porém, mesmo em se tratando de ato incluído em área transicional, Winnicott procura preservar na sua realização esses dois pólos: da realidade e da potencialidade criativa. Invocará o primeiro desses aspectos como uma das razões para que interprete, pois se não interpretar o paciente ficaria com a impressão de que o analista tudo compreende, e o segundo ao acreditar que a verbalização no momento exato geraria forças intelectuais de transformação. Ao se referir ao processo intelectual não o entende como intelectualização defensiva, mas como mobilizador do psiquismo quando integrado psicossomaticamente. Deste modo, a interpretação estaria sendo considerada dentro de suas teorias de desenvolvimento da psique e da mente, onde, ao lado da integração e da tolerância gradativa ao real, desempenharia fundamental importância a interação corpo-psique, a qual denomina personalização (Winnicott, 1945/1978a). Para ele a psique, onde se integrariam tempo e espaço, se desenvolveria por elaboração imaginativa das experiências corporais, e disso logo deduzimos que qualquer intervenção do analista, tal como a interpretação, também influenciará esta interação sempre existente no indivíduo. Será no campo dessa observação detida e atenta às expressões dos elementos espaciotemporais constituintes, que a noção de tempo oportuno merecerá destaque na atividade interpretativa de Winnicott. Diz o autor:

Minhas interpretações são econômicas, pelo menos assim espero. Uma interpretação por sessão me satisfaz, se está relacionada com o material produzido pela cooperação inconsciente do paciente. Digo uma coisa, ou digo uma coisa em duas ou três partes. Nunca uso frases longas, a menos que esteja muito cansado. Se estou próximo do ponto de exaustão me ponho a ensinar (Winnicott, 1962/1983, p. 153).

Esse olhar para a máxima otimização da intervenção psicanalítica, resultado possível da atenção e da escuta levadas a extremos, considerando principalmente o ritmo e o andamento do processo modulado pelo paciente, foi novamente destacado poucos anos antes da sua morte. No magistral trabalho sobre o uso de um objeto e naturalmente do analista em análise, em 1969, Winnicott declara sobre sua técnica:

Por exemplo, só recentemente me tornei capaz de esperar; e esperar, ainda pela evolução natural da transferência que surge da confiança crescente do paciente na técnica e no cenário psicanalítico, e evitar romper esse processo natural, pela produção de interpretações. Refiro-me à produção de interpretações e não às interpretações como tais. Estarrece-me pensar quanta mudança profunda impedi, ou retardei, em pacientes de certa categoria de classificação pela minha necessidade de interpretar. Se pudermos esperar, o paciente chegará a compreensão criativamente, e com imensa alegria; hoje posso fruir mais prazer nessa alegria do que costumava com o sentimento de ter sido arguto. Ao interpretar, acredito que o faço principalmente no intuito de deixar o paciente conhecer os limites de minha compreensão. Trata-se de partir do princípio de que é o paciente, e apenas ele, que tem as respostas. Podemos ou não torná-lo apto a abranger o que é conhecido, ou disso tornar-se ciente, com aceitação (Winnicott, 1969/1975b, pp. 121-122).

Tornar o paciente apto a abranger o que lhe é conhecido, porém, ainda não sabido, como dirá depois Cristopher Bollas (1987/1992), tornando-se inteligível e tolerável em sua realidade psíquica, é sem dúvida a tarefa do analista. Creio que essa forma de pensar está presente também, de diferentes maneiras, na obra original de outros autores. Em Freud o tornar consciente o que inconsciente era, em Bion a expansão do espaço psíquico pela transformação de seus elementos e, em nosso meio, Fabio Herrmann ao nos oferecer o conceito de ruptura de campo, estariam todos se encaminhando nessa mesma direção. Destaco aqui a contribuição de Winnicott, não por considerá-la única e exclusiva, mas apenas para ressaltar certos aspectos próprios e inerentes à forma pela qual parecia conceber a possibilidade interpretativa do analista.

Quase na mesma época, em 1968, Winnicott tinha escrito especificamente sobre a interpretação em psicanálise. Parte da concepção de ser uma comunicação e entende que, mesmo se referindo ao conteúdo oral, deve ser considerado que “... uma grande parte da comunicação que se dá de paciente para analista não é verbalizada” (Winnicott, 1968/1994, p.163). Assim ressalta os matizes da fala, silêncios e movimentos, como também todos os detalhes comportamentais. Essa abrangência da atenção na construção da interpretação deve, no entanto, receber cuidados pelo analista, o qual deveria evitar fazer comentários explícitos sobre essas observações a menos que se sinta autorizado pelo analisando em sua verbalização. Da mesma forma o analista está se comunicando indiretamente pela sua expressão falada, que não raro contém atitudes morais independentes de sua intenção consciente. Acima de tudo o autor assinala ser propósito da interpretação a inclusão de “... um sentimento que o analista tem de que foi feita uma comunicação que precisa ser reconhecida”(p.164). Centrando sua atenção naquilo que pode compreender da comunicação do analisando, o analista deveria se afastar da utilização de suas próprias idéias, já que no momento poderiam estar erradas do ponto de vista do paciente. Destarte, aqui Winnicott nos surpreende dizendo que a interpretação na sua forma mais simples “... devolve ao paciente o que este comunicou”(Winnicott, 1968/1994, p. 164).

Ao comentar como tal proposta pode parecer simplista, contendo no mínimo o “... intuito de informar ao paciente que o que ele disse foi ouvido e que o analista está tentando alcançar corretamente o sentido daquilo” (p. 164), acentua, por outro lado, seu sentido mutativo. Baseado nas concepções de pessoa total e comunicação dissociada a partir da relação de objeto parcial, Winnicott acredita que o analista, ao refletir de volta o que o paciente comunicou, o faz em um momento diferente da comunicação limitada e dissociada fornecida pelo analisando. Assim, favorece o contato do analisando com parte de si mesmo, agora tomado pelo analista como pessoa total, em um momento em que ele já emergiu “... desta área limitada ou condição dissociada” (p. 164). Portanto, vemos como aí considera, mais uma vez, a importância na comunicação do fator temporal, como também privilegia o sentido da integração egóica. Além disso, a devolução do material comunicado, por exemplo, um sonho, permitiria na concepção de Winnicott uso compartilhado dos processos afetivo-cognitivos, como se analista e analisando brincassem junto com esse conteúdo.

Em especial, acentua o momento oportuno para a comunicação, já que entende que, feita quando o analisando não se dispõe mentalmente para tal, estaria o analista “mais além do lugar onde se encontra” o paciente e, portanto, a interpretação poderia ser sentida como quase “miraculosa”. Sem a confiança que o encontro permite, pode então ser transformada “... numa ameaça, por achar-se em contato com um estágio de desenvolvimento emocional que o paciente ainda não atingiu, pelo menos como personalidade total” (Winnicott, 1968/1994, p. 166).

Ao comentar esse trabalho, Giovacchini (1990/1995) sustenta que apesar de a análise clássica considerar o fluxo como unilateral, do paciente para o analista, a interação interpretativa como Winnicott parece sugerir seria uma abordagem mais tolerada na atualidade. Textualmente nos diz que: “... muitos pacientes não apenas precisam ter o que dizem refletido de volta para eles, como Winnicott sugeriu, mas querem engajar-se em um diálogo em que a participação do analista seja importante” (Giovacchini, 1990/1995, p. 77). Creio que a interpretação assim entendida como comunicacional e transformadora não se dirige à decifração de conflitos inconscientes, tampouco à pura descrição do funcionamento mental atuante naquele momento, mas a uma proposta de abertura de novos significados que incluem o tempo todo ativa participação do analisando neste processo.

Sandler, em um trabalho apresentado em 2002, ao investigar a construção clínica de atmosfera favorável ao pensamento onírico e à intimidade do paciente consigo mesmo, revê a atitude do analista. Nesse texto encontro uma forma de trabalho analítico que me apraz e em que, embora ela relacione com as idéias de Bion e de Ferenczi, creio também reconhecer aspectos da proposta interativa de Winnicott, especialmente na construção da interpretação. Ao invés de interpretar classicamente uma paciente de difícil acesso, ali propõe uma forma de intervenção que metaforicamente denomina “obstétrica”. Descrevendo-a diz:

Eventualmente consigo tentar dar pequenos toques aqui e ali, chamar sua atenção para algum detalhe, propor alguma questão. Pode parecer muito pouco, mas me lembra o trabalho de auxiliar um parto: acompanhar, aliviar, amparar, fazer pequenas manobras e torcer para que a natureza faça sua parte (Sandler, 2002, p. 7).

Essa sutil descrição, que revela existência de grande confiança do analista na possibilidade evolutiva do analisando, assim como no predomínio da atenção compartilhada na elaboração psíquica, lembra-nos também a divisão do ato interpretativo da qual nos fala Winnicott ao dividir a interpretação em duas ou três pequenas frases. Além disso, a autora, ao comentar a importância atual das concepções clínicas e metodológicas de Ferenczi, cita uma frase de Franco Borgogno que aqui tomo a liberdade de emprestar:

Ferenczi parece saber que aquilo que o paciente necessita não é uma interpretação, mas, antes de tudo, de um reconhecimento de existência, que passa por uma comprovação do encontro com a mente, o corpo e o coração do outro e do confronto com as qualidades afetivas da relação (Borgonno, citado por Sandler, 2002, p. 8).

Torna-se impossível aos leitores de Winnicott não reconhecer nessa assertiva de Borgogno a maneira daquele autor de conceber o encontro na situação analítica. De fato, lembremos que esses autores, Ferenczi e Winnicott, dispõem-se cada vez mais como vanguardistas daquilo que Roberto Graña (2007), ao comentar a influência do primeiro sobre o segundo, nos diz: que em Ferenczi

... encontraremos o húmus da inspiração principal para o passo além de Freud e da metapsicologia freudiana, rumo ao que tem sido eventualmente denominado terceira tópica, ou seja, a redescrição do contexto da investigação teórica e da prática clínica psicanalítica a partir da perspectiva da interatividade ou da intersubjetividade (Graña, 2007, p. 55).

Portanto, vemos que ao estudar a interatividade na construção da interpretação, vértice também destacado por Winnicott, estaremos em plena perspectiva de uma investigação clínica no desenvolvimento da metodologia psicanalítica.

Ao final destes rabiscos referenciais, a partir de Winnicott e de alguns outros autores correlacionados, podemos então contemplar o nosso desenho. Creio nele ser patente que a interpretação na ótica winnicottiana pode ser mais bem entendida como um processo. Fundamenta-se em suas teorias sobre o desenvolvimento mental a partir da vida emocional. O objeto externo, na situação analítica lugar ocupado pelo analista, está sempre implicado na manutenção de um ambiente favorável ao desenvolvimento do potencial do analisando. Assim, a interpretação não dependeria exclusivamente do analista, mas deveria ser considerada uma construção a quatro mãos. Inserindo-se como um fator de transformação afetivo-cognitiva em espaço potencializador da criatividade, pode ser também compreendida como objeto transicional desenvolvido na cultura intersubjetiva, progressivamente desenvolvida pela parceria. O tempo nessa relação criativa será cuidadosamente observado, tentando-se um ajuste que permita o encontro transferencial, levando-se em conta principalmente o ritmo do analisando.

Colocando-se a interpretação no espaço transicional, e em sua melhor evolução como parte integrante do espaço potencial, também poderá ser objeto do brincar na concepção de Winnicott. Assim poderíamos nos afastar do dogmatismo, considerando-a sempre como hipótese a ser verificada conjuntamente com o analisando e um impedimento à sua submissão.

Sabemos que a criatividade, assim como a existência, é ponto importante na concepção de desenvolvimento emocional para Winnicott. Ele entende que a criatividade, como “apercepção criativa”, é o elemento essencial à possibilidade de sentir, como diz, “que a vida é digna de ser vivida”. No texto “A criatividade e suas origens”, publicado em livro onde reúne seus principais trabalhos sobre a transicionalidade, declara textualmente que essa condição de criatividade não ocorre quando

... em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, onde o mundo em todos seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou a exigir adaptação (Winnicott, 1971/1975a, p. 95).

Nos traços referenciais que anteriormente esboçamos é perfeitamente identificável a preocupação de Winnicott de que a interpretação não crie essa condição de submissão ou “falso self”, expondo-se o analista o tempo todo ao escrutínio do analisando. Creio ser esta uma disposição interior que o analista pode ou não apresentar, inserindo-se naquilo que nos objetivos da análise, mencionados na epígrafe deste texto, Winnicott parece referir como ser ele mesmo e se comportar bem.

Nessa epígrafe, ao apresentar os objetivos da análise, chama-nos a atenção que Winnicott inicie seu pensamento falando de si mesmo e não de metas ou projetos para o analisando. Destaca-se assim, em minha opinião, não apenas a importância da contratransferência em um sentido amplo, como também já estaria aí enunciada a liberdade do analisando em fazer da análise seu próprio uso. Naquilo que denomina capacidade adquirida do analista, e que prefiro chamar de disposição interna, podemos ainda reconhecer a sustentação do paradoxo: manter a análise em sua continuidade enquanto desde o primeiro momento pretende ajudá-la a terminar e ao analisando se separar. Naturalmente, espera-se que cada interpretação possa integrar tais tendências. Finalmente, podemos ali reconhecer, como em cada uma de suas idéias sobre interpretação, a expressão de amor pela subjetividade, do outro e de si mesmo, analista. Portanto, assim existindo pode o analista ajudar o outro a existir e acima de tudo serem pessoas presentes, no âmbito desta sempre surpreendente relação humana, tão difícil de sustentar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Milton Della Nina
R. Leôncio de Carvalho, 306/81 &– Paraíso
04003-010 São Paulo, SP
Fone: (11) 3289-6381
E-mail: mdnina@uol.com.br

Recebido em: 20/11/2007
Aceito em: 27/11/2007

 

 

* Membro Efetivo e Analista Didata da SBPSP.
1 Apresentado na Jornada sobre Teoria dos Campos: “A relação entre teoria e clínica: A questão da interpretação”, na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, São Paulo, em 11 de agosto de 2007.

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