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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.41 no.74 São Paulo June 2008

 

TRABALHOS NÃO TEMÁTICOS

 

O principal instrumento de trabalho do analista1

 

The psychoanalyst’s main instrument of work

 

El principal instrumento de trabajo del analista

 

 

Odilon de Mello Franco Filho*

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor expõe aos novos membros do Instituto da SBPSP a idéia de que a personalidade do analista é o seu principal instrumento de trabalho. Tal “instrumento” se organiza em torno da sensibilidade/disponibilidade para o contato com o paciente e uma tolerância para com o desconhecido, o não-sabido. Nessa perspectiva, o elemento central da formação analítica é a análise pessoal daquele que pretende vir a ser psicanalista. Além disso, mais do que simplesmente participar de cursos e supervisões, é importante que a pessoa se integre a uma rede de relações que fazem parte da vida institucional. Esse envolvimento tem a ver com duas disposições emocionais: paixão (no sentido que Bion lhe dá) e amor à verdade. Trata-se de um compromisso ético para quem pretende se familiarizar com o Método psicanalítico.

Palavras-chave: Personalidade do analista, Análise do analista, Método psicanalítico.


ABSTRACT

In this paper, presented to the new members of the Institute of Psychoanalysis of the Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo as the magna class of the 2008, the author offers the idea that the psychoanalyst’s main instrument of work is his/her personality. This “instrument” is based on the analyst’s sensibility, i.e. his/her availability to contact with the patient, and his/her capacity to tolerate the unknown. In this perspective, the analysis of the psychoanalyst is the central element of the analytical training. Besides participating in the seminars and supervisions, it is especially important that the candidate integrates into the network that is part of the institutional life. This interaction and involvement relates to two emotional dispositions: passion (in Bion’s sense) and love of truth. This means an ethical commitment for those who intend to get acquainted with the psychoanalytic method.

Keywords: Personality of the analyst, Analysis of the psychoanalyst, Psychoanalytic method.


RESUMEN

El autor expone a los nuevos miembros del Instituto de la SBPSP la idea de que la personalidad del analista es su principal instrumento de trabajo. Este “instrumento” se organiza en torno de la sensibilidad/disponibilidad para el contacto con el paciente y una tolerancia para con lo desconocido o no sabido. Desde esa perspectiva, el elemento central de la formación analítica es el análisis personal de aquel que pretender devenir psicoanalista. Por otro lado, además de simplemente participar de cursos y supervisiones, es importante que la persona se integre a una red de relaciones que forman parte de la vida institucional. Ese envolvimiento tiene que ver con dos disposiciones emocionales: pasión (en el sentido que le otorga Bion) y amor a la verdad. Se trata de un compromiso ético para quien pretende familiarizarse con el Método Psicoanalítico.

Palabras clave: Personalidad del analista, Análisis del analista, Método Psicoanalítico.


 

 

Agradeço, honrado, o amável convite da diretoria do Instituto.

Em minha vida, já enfrentei muitos auditórios: dei aulas, seminários; fiz conferências, participei de mesas-redondas. Mas nunca ministrei uma aula inaugural. O que é isso, o que a difere dessas outras atividades? Nesse campo de aula inaugural sou, portanto, um calouro. Calouro como alguns de vocês, que hoje iniciam a vida no Instituto. Temos, pois, algo em comum.

O que falar?

A primeira idéia que me surgiu à cabeça foi uma frase: “O principal instrumento de trabalho do analista é a sua personalidade”. Frase que não era minha — de quem era e onde eu a tinha ouvido? Ocorreu-me, em seguida, que eu a ouvira da prof.ª Virgínia Leone Bicudo, muito tempo atrás. Aos poucos, foi se esclarecendo a situação.

Toda essa associação me veio porque foi uma frase que ela introduziu de forma contundente (como era seu jeito) por ocasião da aula inaugural deste Instituto, em 1970, quando ela era sua diretora. Foi a primeira aula do Instituto a que assisti como candidato-calouro, com muito orgulho e expectativa. Ao registrar aqui essa idéia-reminiscência, estou também expressando gratidão por tudo o que recebi, desde então, desta Sociedade.

A ocorrência que descrevi, uma espécie de devaneio, serve de modelo para uma questão: o que acontece na mente do analista durante a sessão? Segundo James S. Grotstein, analista americano, as interpretações se alimentam de respostas criativas de nosso inconsciente ante a estímulos vindos da relação com o analisando.

E isso tem a ver com o que queria expor aqui. É com o conjunto dos elementos de sua personalidade que o analista trabalha, e é nesse contexto que se organiza uma “sensibilidade/disponibilidade” para o contato com o paciente e uma tolerância para com o desconhecido, o não-sabido.

Aqui, entra a questão da formação analítica. Ela não visa primordialmente à organização de conceitos psicanalíticos, mas a facilitar essa sensibilidade através da vivência de várias experiências emocionais. Quais são essas experiências?

Vou tentar explicitar algumas delas.

O que acontece numa formação analítica?

Ela não se dá no isolamento de quem está sequioso de encontrar, nos textos analíticos, respostas prontas para os fenômenos da mente. Na minha visão, ela ocorre num setting complexo.

Nosso setting formacional poderia ser concebido como dois palcos montados concentricamente. No palco exterior, coloco este ambiente físico da Sociedade, com toda sua infra-estrutura material e de relações pessoais: o Instituto, o currículo, os seminários teóricos e clínicos, as supervisões, os indefectíveis e odiados trabalhos escritos a serem apresentados, e, porque também não dizer, todo o investimento em termos financeiros e de tempo. No espaço interior, com menos visibilidade física, concebo outro palco: aquele em que se dá a nossa análise pessoal. Paradoxalmente, é o mais fechado de todos: a ele só tem acesso a dupla analítica, com a multidão dos seus personagens internos. Digo paradoxalmente porque, de outro lado, tudo o que se passa nesse palco cerrado fornece elementos que transformam o “olhar” sobre o que ocorre no outro palco mais visível, mais ruidoso. Sem o que se passa nesse palco, aparentemente fechado, nada do que circula no outro adquire significado psicanalítico.

Em outras palavras: o núcleo de todo aprendizado psicanalítico se gera no interior desse conjunto de experiências que intercambiam as emoções nelas presentes. Isso ficaria mais bem ilustrado com o auxílio de uma situação que ocorre nos primórdios do desenvolvimento humano: a relação do bebê com o seio. Inicialmente, o que existe não é um seio, mas um seio bom ou um seio mau. O que quer dizer isso? Quer dizer que o que é registrado na mente do bebê é uma experiência marcada pelos afetos que são mobilizados na aproximação com o objeto. Num momento posterior, desse registro afetivo é extraído o conceito seio. Assim caminha nosso aprendizado pelo resto da vida. Conhecemos ou rejeitamos a imagem do objeto, conforme o amamos ou odiamos. É, portanto, num contexto afetivo que se dá um conhecimento. A análise e o restante de nossa formação psicanalítica seguem esse mesmo caminho da mente do bebê.

Por que uma análise pessoal dentro do Instituto?

Reconhecida a importância da relação analista-analisando para lidar com esses registros afetivos que ressurgem na transferência, uma questão, entre outras, pode se apresentar: por que uma análise didática obrigatoriamente com um analista credenciado do próprio Instituto?

Não vejo isso como imposição, mas como oportunidade do analista em formação checar a imagem que a instituição pretende lhe passar a respeito da psicanálise que ela diz conceber. Se, o que é vivenciado na análise com “alguém de dentro” não confere com o que se passa naquele palco externo, ou vice-versa, é porque há algo errado em um ou outro, ou em ambos e a pessoa deverá perceber que essa dissonância pode comprometer sua formação nessa instituição. Aí, é ou largar ou pegar, ou tentar mudar uma situação ou outra, ou ambas.

É essa tensão dinâmica entre essas instâncias de formação que é geradora de desenvolvimento para a personalidade do analista e não simplesmente um obstáculo. É esse o desafio real da formação, e não os créditos formais que a pessoa deve acumular no currículo para receber a aceitação do grupo.

Outro elemento importante da formação: Paixão

Por paixão quero salientar um grau forte de envolvimento emocional da pessoa nos vínculos que estabelece. Se quiserem exemplos: esse envolvimento pode estar presente desde o engajamento na análise didática, até a maneira como a pessoa discute questões dentro de um seminário, ou redige trabalhos curriculares — e vale para a disposição em tomar um cafezinho com os colegas, ou participar de um congresso e outros eventos psicanalíticos. Essas situações todas não são secundárias; elas criam vínculos e estes passam a integrar a identidade psicanalítica da pessoa. Nosso engajamento no objeto de estudo, com amor e/ou ódio, se dá nesses contextos institucionais, nesses palcos, como denominei acima. Sem libido, não podemos compreender, nem criar. Sem libido, podemos racionalizar situações, mas não transformá-las em experiências pessoais. E sem imaginação criativa nos tornamos meros repetidores de idéias, sem podermos resignificá-las dentro de nós, sem podermos expandi-las.

Isto que estou dizendo tem a ver também com a questão da escrita analítica, esse fantasma que a muitos assusta. O ato de passagem da palavra falada para a escrita é um ato de transformação: se inicia numa mobilização da libido que, colocada à disposição do processo mental em curso, abre caminho para novas articulações de significado. Em suma, escrever não é repetir o que foi dito, mas dizer de um outro modo a experiência que acabamos de viver. A escrita é oportunidade de descoberta de sentidos que estavam lá, no nosso interior, sem que nos apercebêssemos deles. Toda escrita é um ato de viagem, não em torno de um texto, mas para o interior de nós mesmos. Toda escrita contém uma surpresa. Quando escrevo, meu maior prazer vem de descobrir que acabei de colocar no papel idéias que nunca imaginei poder pensar e que definem a minha maneira de interagir com o assunto em questão.

Mas escrever não é fácil. Freqüentemente estabelecemos com a escrita uma relação de amor e ódio. Principalmente quando ela nos vem de regulamentos institucionais. Refiro-me aos famigerados textos que os professores pedem para que os alunos desenvolvam ao longo dos seminários, ou após eles. Por que tais tarefas nos constrangem tanto? É importante, nessa instância, que nossa análise pessoal nos ajude a compreender que o espaço da escrita é o da superação do fantasma da castração. Os obstáculos à criatividade, quando não superados, nos tornam apenas repetidores de um saber institucionalizado. Como disse, a escrita é ato de re-conhecimento (conhecimento de um outro jeito). Temos que nos conhecer através da escrita que temos (a que é possível) e não ficar repetindo ou simulando o que não somos.

No que mais nos envolvemos numa empreitada psicanalítica?

Até aqui, salientei os fatores emocionais no analista que se agregam à sua maneira de estar presente no ato analítico e no convívio com seus pares. Meu enfoque foi a subjetividade do analista.

Salientando isso talvez eu corra o risco de passar a vocês a imagem de um “vale-tudo” na conduta do analista, exaltando um subjetivismo selvagem, no qual tudo é válido para o trabalho, se for espontâneo. Em outras palavras, poderia sugerir a idéia de que trabalhamos num clima de “achismo” — eu acho isso, eu acho aquilo —, que bastaria para entender o paciente e formular uma interpretação.

Essa postura de vale-tudo nada tem a ver com o que estou querendo transmitir como compromisso do analista para com seu objeto de estudo.

Respondendo a questão que formulei acima, estamos envolvidos numa empreitada que tem a ver com nosso amor à verdade.

Em outras palavras, o que rege a conduta de um analista é um compromisso ético para com a Verdade. Freud abordou isso numa carta ao embaixador americano Putnam (1914), na qual dizia que “o grande elemento ético no trabalho psicanalítico é a verdade e, de novo, a verdade”. Mas que Verdade? Esta palavra está hoje desgastada exatamente por conta de um subjetivismo selvagem, que eleva o sentimento ao nível de critério único de verdade. Para Freud, Verdade era sinônimo de Realidade. Em Análise terminável e interminável (1937), ele afirmou: “E, finalmente, precisamos não nos esquecer que a relação analítica se baseia em um amor à Verdade — ou seja, em um reconhecimento da realidade —, e isso exclui qualquer tipo de fraude ou dissimulação”. Ao analista interessa como Verdade a existência de uma Realidade Psíquica imaterial, incomensurável, desconhecida, inacessível aos sentidos, a qual compõe o núcleo inconsciente de nossa personalidade.

O acesso a essa Realidade supõe uma disciplina rígida de tolerar sua inacessibilidade sob os recursos sensoriais habituais e de estar disponível a captar suas transformações não como revelação, mas como hipóteses que dêem sentido àquela experiência que está sendo vivida. Isso não tem nada com “achismo”.

O analista não tem a verdade, não é o dono da verdade, mas é responsável por respeitar um senso de verdade que existe em todo ser humano. É esse senso que o analisando também é responsável por cuidar e expandir.

Outros aspectos desse compromisso ético para com a verdade surgem na maneira como o analista lida com o Método: o respeito para com o Método.

O Método Psicanalítico é um conjunto de dispositivos concretos e não concretos que se organizam para propiciar um contato possível com a Realidade Psíquica. Esse contato pode ser transformador para a mente do paciente numa dimensão que não podemos direcionar em termos de cura médica, de alívio de conflitos, de boa convivência social. Enfim, deve o analista tomar cuidado para não transformar, mesmo que inconscientemente, a análise em psicoterapia.

Notou Melanie Klein que a investigação da verdade é por si terapêutica, e que esse resultado (instável frequentemente) não pode ser forçado na obtenção de sucesso ou de isenção de conflitos, dores, angústias, etc. Será essa limitação uma marca de “fracasso” da Psicanálise? Não creio nisso. Limitação é uma marca humana, não um fracasso do ser. O valor do nosso Método se inscreve num outro registro, sinteticamente assinalado pelo analista Michael Eigen: “Podemos não resolver um problema, porém, podemos mudar tentando-o”.

Igualmente, o Método não pode ser desviado para a obtenção de domínio sobre o paciente, para se auferir vantagens sexuais, econômicas e status social. E aqui estou tocando, indiretamente, na questão da importância da análise e reanálise pessoal do analista para lidar com essas questões que freqüentemente invadem o setting.

Iniciei esta nossa conversa com uma lembrança sobre meu passado de candidato. Agora, a encerro com outra lembrança.

Quando freqüentava um cursinho para prestar o vestibular para a faculdade de medicina, tive a oportunidade de receber aulas de português de um professor cuja postura muito me marcou. Quando ele iniciou o curso sobre redação, introduziu o assunto com a seguinte observação: vocês só aprenderão a fazer redações... fazendo-as. Isso vale mais do que quaisquer regras que eu possa lhes passar. Mas uma recomendação eu posso fazer, e ela é essencial. Sugiro que vocês, toda noite, antes de deitar, peguem um papel e caneta e escrevam dez linhas (não mais do que isso) sobre alguma experiência vivida naquele dia. A seguir, leiam com atenção o que foi escrito e, depois, amassem o papel e o destinem a uma lixeira, para nunca mais ser lido. É assim que aprenderão o que é uma escrita.

O que entendo hoje daquela proposta: o que o professor nos recomendava é que, tomando contato atento com o material transposto para o papel, não tentássemos argüi-lo, entendê-lo racionalmente, decorá-lo. Mas que, a seguir, simplesmente o “esquecêssemos” para que ele fosse operado em outra área — inconsciente — dos sonhos. (Interessante a esse respeito era sua recomendação para que esse exercício fosse feito à noite, na hora de dormir.) O material sonhado adquire uma outra configuração, que pode conter outros sentidos além do que foi exposto na palavra escrita. E, armazenado como sonho, pode deixar espaço para que novas experiências emocionais se formem.

É isso também que estou recomendando a vocês em relação a tudo que foi dito por mim nesta noite. Reflitam sobre o que apresentei como minhas experiências analíticas — e esqueçam tudo. Deixem que seus sonhos se apropriem do que ouviram. O resultado disso tudo talvez um dia possa ser reavaliado.

Para terminar, portanto, desejo a todos que tenham bons sonhos nesta noite.

 

 

Endereço para correspondência
Odilon de Mello Franco Filho
R. Sergipe, 441/12 — Consolação
01243-001 São Paulo, SP
Fone/fax: (11) 3661-8648
E-mail: odilon@sbpsp.org.br

Recebido em: 29/05/2008
Aceito em: 10/06/2008

 

 

Tradução de Marta Úrsula Lambrecht
* Analista didata da SBPSP
1 Texto proferido na aula inaugural do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 25 de fevereiro de 2008.

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