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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.44 no.80 São Paulo June 2011
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
A arte da reescritura: uma ressignificação?
The art of rewriting: a ressignification
El arte del reescritura: una re-significación?
Fátima Cristina Monteiro de Oliveira1
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
RESUMO
Ao tempo em que enfoca os conceitos de ressignificação e determinismo nos primeiros textos de Freud, a autora procura fazer uma aproximação entre esses termos e a clínica psicanalítica. Na discussão, retoma propostas teóricas que concebem o aparelho psíquico como sempre aberto à possibilidade de novas significações. O trabalho é acompanhado de breve exposição de um caso clínico, em que a ressignificação se faz presente de modo espontâneo e ilustrativo.
Palavras-chave: Ressignificação, Determinismo, Clínica, Trauma.
ABSTRACT
In this article the author discusses the concept of ressignification and determinism in the early works of Freud and seeks a rapprochement between these terms and the psychoanalytical clinic. The discussion incorporates theoretical proposals that conceive the psychic apparatus as always open to the possibility of new meanings. The work is accompanied by brief exposure to a case in which the ressignification present spontaneously and illustrative.
Keywords: Deferred action, Determination, Clinic, Trauma.
RESUMEN
En este artículo el autor analiza el concepto de re-significación y determinismo en los primeros trabajos de Freud y busca un acercamiento entre estos términos y la clínica psicoanalítica. El debate retoma propuestas teóricas que conciben el aparato psíquico como siempre abiertos a la posibilidad de nuevos significados. El trabajo está acompañado de una breve exposición de un caso clínico en que la re-significación está presente de manera espontánea e ilustrativa.
Palabras clave: Re-significar, Determinismo, Clínica, El trauma.
Introdução
Se quer me seguir, narro-lhe, não uma aventura, mas experiência,
a que me induziram, alternadamente, raciocínio e intuições.
Guimarães Rosa (1988, p. 65)
Ao receber a carta-convite do Jornal de Psicanálise para escrever sobre o tema Nachträglichkeit, tomei-o no sentido da ressignificação e ocorreu-me um texto antigo, em que me debruçara sobre o assunto. Vão-se lá mais de dez anos: o texto teria que ser reescrito. Lembrei-me do conto de Borges (1944/2007, p. 34), Pierre Menard, autor do Quixote, em que o protagonista
não queria compor outro Quixote – o que seria fácil – mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca levou em conta uma transcrição mecânica do original; não se propunha a copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes. (Borges, 1944/2007, p. 38)
Há, portanto, coincidência da escritura, mas que se dá em outro momento: Menard queria "continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote através das experiências de Pierre Menard" (Borges, 1944/2007, p. 39).
Texto intrigante e denso este a que remeto o leitor, no qual subjaz um paradoxo, que não será resolvido. Meu trabalho, bem mais humilde, seria escrever um novo artigo que guardasse, no entanto, alguma identidade com o primeiro. Percebi que já estava visceralmente embrenhada no tema da ressignificação e teria, naturalmente, que dar novo significado ao meu escrito, já que eu própria não era a mesma de quando o realizara pela primeira vez. Aquele se iniciava por um poema (quando escrevo, gosto de me fazer acompanhar de algo lido e amado). Este também se faz acompanhar por epígrafes significativas para mim e afetivamente imbricadas ao tema.
Ressignificação, Nachträglichkeit, a posteriori: aquilo que é compreendido mais tarde, um reconhecimento temporalmente posterior. Retomando o texto de Borges, "A verdade histórica para ele [Menard] não é o que aconteceu; é o que julgamos que aconteceu" (Borges, 1944/2007, p. 43).
Desse modo, "pensar, analisar, inventar, não são atos anônimos, são a respiração normal da inteligência" (Borges, 1944/2007, p. 44).
Assim, 'se quer me seguir', sobre o tema, narro-lhe a reescritura que aqui me saiu.
Um conceito que surgiu cedo e continua ressoando
Mesmo a essa altura do tempo,/ Um tempo que já se expira,/
Continua em mim ressoando,/ Uma canção de Itabira.
Carlos Drummond de Andrade (1984, p. 71)
Se eu conseguir recordar, ganharei calma, se conseguisse religar-me:
adivinhar o verdadeiro e real já havido. Infância é coisa. Coisa?
Guimarães Rosa (1988, p. 48)
É sempre uma renovada surpresa para mim sentir que a literatura e a poesia por vezes conseguem expressar em sucintas frases e versos – como as de Guimarães Rosa e Drummond – os meandros da mente humana, que levamos nós páginas e páginas para, em nossos escritos, significar relatos de atendimentos e buscas de teorizações que possam dar conta da compreensão do psiquismo.
Nas epígrafes que selecionei, os autores parecem falar de uma luta com a memória, daquilo que permanece ressoando em nosso psiquismo, e do desejo de atribuir nova significação ao já vivido. Notem que Guimarães Rosa chama a infância de "coisa", para em seguida indagar-se: coisa? Marcas, signos e indícios ficam à espera de ressignificação, o nachträglich freudiano.
Estreitamente relacionado à ideia de que um trauma psíquico era o responsável pelo adoecimento neurótico, o termo nachträglich surgiu cedo na teoria freudiana. Transportá-lo para outra língua é uma tarefa difícil, segundo Paulo César de Souza (2010, p. 209), doutor em literatura alemã e tradutor de Freud.
Para Souza, a noção de nachträglich mostra-se bem mais complexa do que poderia indicar o simples retardamento da ação no tempo, tal como sugere a tradução para o inglês de Strachey, deferred action. Assim, "está ligada à concepção freudiana da etiologia das neuroses, à questão do trauma ou da fantasia de sedução" (Souza, 2010, p. 209).
Dentro da extensão permitida por este trabalho, percorrerei tais concepções iniciais da teoria freudiana, tão intrinsecamente imbricadas com o conceito de ressignificação.
Já na Comunicação preliminar, Freud (1893/1996h) refere-se ao trauma e relata que nem sempre um trauma único causa a histeria.
No caso da histeria não é incomum a ocorrência, em vez de um trauma principal isolado, de vários traumas parciais, que formam um grupo de causas desencadeadoras. Essas causas só puderam exercer seu efeito traumático por adição e constituem um conjunto por serem, em parte, componentes de uma mesma história de sofrimento. (Freud, 1893/1996h, p. 42)
Freud havia se dado conta de que um somatório de experiências, com modos de funcionamento semelhantes e interligados, poderia ser a base na qual, a posteriori, a tomada de consciência levaria o paciente a adoecer. O conceito de nachträglich abarca, desse modo, a noção de adiamento e posterior retomada.
O significado de a posteriori pode ser apreendido pela sua tradução do alemão, em que o verbo tragen significa 'levar, carregar' e o advérbio nach significa 'depois'. Souza (2010, pp. 206-207) esclarece que nachträglich é o advérbio ou adjetivo, e Nachträglichkeit (de versão ainda mais difícil para o português), o substantivo.
Souza (2010) propõe traduzir o termo por 'atribuição retrospectiva de sentido'.
Embora não se trate de um substantivo abstrato, e seja antes uma paráfrase, esta seria uma opção defensável, talvez: atribuição retrospectiva ou posterior de sentido − juntando-se entre colchetes o termo alemão. Outra hipótese, esta com a vantagem da simplicidade, seria recorrer a efeito a posteriori. (Souza, 2010, p. 219)
Neste trabalho, usarei ressignificação para me referir ao substantivo Nachtraglichkeit: algo do vivido fica reminiscente e latente, como se suspenso, e receberá significação mais tarde.
É ainda na Comunicação preliminar que se encontra a conhecida afirmação de Freud (1893/1996h) de que "os histéricos sofrem principalmente de reminiscências" (p. 31). Essa frase assinala que as representações é que são patogênicas para a histérica e tais lembranças são inconscientes. A histérica não padece de uma doença física. As representações são reprimidas por causa do caráter doloroso e vergonhoso da lembrança.
Portanto, o sintoma histérico seria, inicialmente, a manifestação simbólica daquilo que foi vivido passivamente, manifestando-se a posteriori como ressignificação do que no início da teoria freudiana era visto como trauma factual. Posteriormente, essa ideia englobará também engajamento do paciente em suas fantasias e seu desejo e seu interjogo com os processos defensivos.
Desde o início de suas teorizações, Freud já cultivava subliminarmente a hipótese de que, por trás de todo adoecimento neurótico, existia um fator defensivo, tornando-se a defesa pedra angular da psicanálise. Esses princípios teóricos são o embasamento para o tratamento da histeria pelo método catártico, o processo de cura pela fala. Freud tomou o termo catarse emprestado de Aristóteles para designar o efeito produzido no espectador pela representação das tragédias gregas.
Efetivamente, Monique Schneider (1993), referindo-se aos primeiros escritos de Freud, fala do catártico como dramatização. "Longe da reprodução se constituir em um segundo traumatismo, ela se dá antes como uma dramatização do que pôde ser vivido somente em um silêncio sufocado, estrangulado" (p. 41).
Desse modo, penso, pode-se inferir que desde o método catártico, por meio da reprodução investida de afeto, já se dava uma possibilidade de ressignificação do que antes fora vivenciado sem a atribuição de significado.
Nos Estudos sobre a histeria (1893-1895/1996f), Freud associa os sintomas histéricos a símbolos da lembrança suprimida, uma tentativa de religar a energia da representação que foi tornada inconsciente, sendo, portanto, eles próprios, ricos em significação. Tais sintomas são tentativa de retranscrição precária, uma vez que mais próximos do adoecimento neurótico do que de uma elaboração.
Na Carta 52 a Fliess, Freud (1896/1996b) propôs uma hipótese sobre o funcionamento de um aparelho psíquico passível de rearranjos e retranscrições dos traços mnêmicos.
Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico formou-se por um processo de estratificação: o material presente em forma de traços de memória estaria sujeito de tempos em tempos a um rearranjo segundo novas circunstâncias, a uma retranscrição. (Freud, 1896/1996b, p. 317)
Nessa preciosa citação, Freud afirma que os traços de memória ficam disponíveis no aparelho psíquico para um rearranjo ou retranscrição, libertando o psiquismo do determinismo rígido e linear.
No encaminhamento dos Estudos sobre a histeria, Freud se dá conta de que uma impressão pré-sexual tornava-se traumatizante quando reativada pela sexualidade adquirida mais tarde, ou seja, a posteriori. Logo, o traumático vai se configurando como aquilo que é da ordem do externo, mas também do interno, já que imbricado às fantasias e aos desejos do próprio sujeito. A esse respeito vale a pena citar literalmente Schneider (1993, p. 94):
A cena passada se carrega, então, de realidade no momento em que o sujeito a apreende como sendo este o lugar do qual se surpreende ao ler seu desejo, no momento em que é capaz de ler o acontecimento, não somente intelectual, mas fisicamente, em uma visão corporal e afetiva.
Apreender e surpreender, diz Schneider, ambas as ações abarcam o étimo preender: trazer com preensão (força) para dentro de si, de sua própria subjetividade.
Mais adiante, de fato, a autora completa: "É preciso, então esperar que esta perturbação se aposse do corpo para que, verdadeiramente os olhos se abram, conferindo repentinamente à cena passada uma presença insustentável e intolerável" (Schneider, 1993, p. 94). O que, em contrapartida, creio, torna-se uma exigência para que o psiquismo entre em movimento.
A teoria freudiana: incessante ressignificação
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta,
continuarei a escrever.
Clarice Lispector (1998, p. 25)
Ao longo de toda a teoria freudiana observo trabalho constante de ressignificação de conceitos anteriormente expostos, de modo que esses nunca são desprezados, mas reformulados e elaborados. Ainda que as causas do adoecimento neurótico não sejam lineares ou explícitas, Freud sempre acreditou na existência de determinismo psíquico.
Nas Cinco lições de psicanálise, terceira conferência, Freud afirma sua crença no determinismo da vida mental:
Notarão desde logo que o psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental. Para ele não existe nada insignificante, arbitrário ou casual nas manifestações psíquicas. Antevê um motivo suficiente em toda parte onde habitualmente ninguém pensa nisso; está até disposto a aceitar causas múltiplas para o mesmo efeito, enquanto nossa necessidade causal se satisfaz plenamente com uma única causa psíquica. (Freud, 1909/1996d, p. 50)
O determinismo psíquico estaria, assim, no sentido oposto da ressignificação? Creio que não. Parece-me que Freud crê num determinismo que se encontra nas "ligações" entre as causalidades e suas manifestações psíquicas. O aparelho psíquico, no entanto, é passível de realizar novas ligações, numa trama representacional em que ele mesmo não é imutável. Sendo os sintomas, os atos falhos, os sonhos e os esquecimentos regidos pelo determinismo psíquico, eles constituem via de acesso às representações inconscientes do paciente, possibilitando- lhe novas tessituras entre as representações, através das frestas abertas por essas formações.
É desse modo que, quando Freud (1895/1996f) fala em determinismo psíquico, refere-se às ligações entre causas e efeitos e ao nachträglich, nunca excluindo a possibilidade de religação e ressignificação.
Com efeito, na grande maioria dos eventos, verificamos que um primeiro trauma não deixa nenhum sintoma, ao passo que um trauma posterior da mesma espécie produz um sintoma, só que este último não pode ter surgido sem a cooperação da causa provocadora anterior, nem pode ser esclarecido sem se levarem em conta todas as causas provocadoras. (p. 195)
Ademais, logo Freud percebe que no relato de suas pacientes havia a marca do desejo, da fantasia, da pulsão, o que porá em marcha profundas ressignificações teóricas e clínicas. Será em 1897, na Carta 69 a Fliess, que Freud (1897/1996c) enunciará a célebre frase: "Não acredito mais em minha neurótica" (p. 301).
Laplanche (1988, p. 27), a respeito desse momento de guinada nas hipóteses teóricas, autoriza a seguinte leitura: "A cena em que o sujeito se descreve seduzido por alguém mais velho é apenas de fato um duplo disfarce, uma fantasia pura é convertida em lembrança real, uma atividade sexual espontânea, mascarada de cena de passividade".
Ao renunciar a um trauma único, temporalmente localizado, advindo de fora, como causa da neurose, Freud não está renunciando à influência de todas as experiências precoces, infantis, mas sim admitindo que o traumatismo possa ter uma origem externa e outra interna. Esclarece Schneider (1993, p. 96): "A agressão externa não machuca, a não ser que se acresça de uma agressão interna e pulsional, única capaz de dotar a primeira de um poder de fascinação e paralisia".
Ressignificando permanentemente suas teorizações, em 1924 Freud afirma que: "O método catártico foi o precursor imediato da psicanálise e apesar de toda amplitude da experiência e de todas as modificações da teoria, ainda se acha contido nela como seu núcleo" (1924/1996a, p. 218).
No deslocamento da ideia de que a revelação de um trauma traria a cura da neurose para a do engajamento afetivo do sujeito em sua própria história, insere-se toda a possibilidade de reconstrução da trama psíquica.
Efetivamente, Schneider (1993, p. 99) aponta que, ao referir-se à revelação do reprimido, Freud emprega o vocábulo Annahme com o significado de admissão ou tomada de consciência. Observa a autora: "Annahme não significa ver, objetivar, mas ao contrário, admitir, adotar, assimilar; em outras palavras, fazer um movimento que implica o ser em vez de desemplicá-lo".
E esse movimento requer não um afastamento e um entendimento racional, mas um mergulho no afeto. Citando Schneider integralmente em suas belíssimas intuições:
Este trabalho exige não um simples olhar, mas todo um trabalho que pode ir até a reestruturação interna do sujeito. Para que este acontecimento seja conhecido, é preciso que seja apreendido como ultrapassando o sujeito, impondo-se a ele do interior e do exterior ao mesmo tempo, harmonia que não se dá a não ser em um afeto: momento de posse − renúncia onde o sujeito só dominará a realidade à medida que se deixe surpreender por ela. (Schneider, 1993, p. 99)
Surpreender, apreender, ultrapassar: não estará acaso a autora expondo os meandros de um trabalho psíquico?
Desse modo, pode-se talvez inferir que o processo de elaboração psíquica vai se dando a partir de sucessivas tomadas de consciência e de sucessivas ressignificações.
Do vermelho-sangue ao vermelho-flor
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Carlos Drummond de Andrade (1997, p. 16)
Há alguns anos, em pesquisa que realizei com crianças e adolescente com fobias, desenhos seguidos de verbalizações a respeito foram utilizados durante as sessões. É surpreendente o modo como essa atividade conduz a criança para o centro de seus conflitos. Foi bastante gratificante verificar como processos de ressignificação se davam muitas vezes em movimentos espontâneos de vida e superação de dificuldades internas.
Ao redigir este artigo, lembrei-me de uma sequência de desenhos de uma dessas crianças, que exporei abreviadamente, no intuito de ilustrar o texto de modo mais vivo.
Com 11 anos, a criança atendida tinha muitos medos de ir a festas e enfrentar situações novas em que se sentisse exposta. Não gostava de lugares com muitas pessoas, nos quais sentia mal-estar e tontura. Contou-me que achava a mãe superprotetora. Contou também que, quando pequena, tinha um triciclo, do qual um dia caiu e machucou o joelho. Sua mãe doou o triciclo e proibiu então que ela viesse um dia a andar de bicicleta.
Concluí que, por essas razões, tornara-se tímida e submissa. O que motivou seu atendimento foi a necessidade de uma cirurgia, a qual tornou-se disruptiva para sua personalidade. Contou-me que sempre tivera medo de "qualquer pessoa vestindo branco".
Os desenhos a seguir apresentados foram realizados em duas sessões consecutivas, segundo a proposição do Procedimento de desenhos-estórias, de Walter Trinca (1976). Solicitei que a criança fizesse um desenho qualquer, o que lhe viesse à mente, e em seguida contasse uma estória a respeito.
Todas estas coisas estão me deixando sem forças. Ter que fazer o que não quero. Eu não quero tomar anestesia, nem que mexam em mim. Me dá um estado de morte. Me sinto como nesse desenho que eu fiz: sem vida.
Vou te explicar o meu medo: é que tenho que obedecer ao que eles quiserem que eu faça, ficar quietinha. E é desconforto que eu sinto, e também sujeira. Parece tudo sujo. Penso em remédios, sangue, cortes e anestesia. Ah, e também em dor.
A menina tinha fantasias a respeito da cirurgia; de que tal procedimento expusesse coisas ruins que ela pensava existirem em seu mundo interno. Havia medo de possuir coisas em que não vale a pena mexer, pois são sujas, ruins e perigosas.
O que me assusta é esse negócio de mexer dentro, dentro do meu corpo. Eu tenho medo que algo escape e me fure, me perfure. Eu poderia morrer. Olha essas coisas que desenhei vermelhas: são os pedaços de mim. Tenho medo de coisas feias dentro de mim. Medo de ser uma pessoa ruim, raivosa e chata.
Digo-lhe que as pessoas não são diferentes dela: elas também sentem que têm coisas boas e ruins dentro de si mesmas. Todos têm coisas boas e ruins. E às vezes sentem raiva quando se chateiam. E que eu compreendo que está muito assustada, e o fato de estar assustada parece tornar tudo maior e mais perigoso do que realmente é: faz com que pense até em morte. No entanto, digo que ela está sendo forte e corajosa para me contar o que sente.
Sabe o que eu estou pensando agora? Tem coisas que eu não admiro em mim, mas tudo bem, porque eu sou esta aqui que eu desenhei: uma pessoa legal. Eu sou alegre, e também generosa com os outros. Pude perceber isso assim, de repente!
Agora desenhei o sol brilhando e todas as coisas que eu gosto. Tudo que se relaciona com a natureza eu gosto.
Comento que existe tudo aquilo dentro dela também: sol, flores, alegria. Ao que ela responde: "Sabe de uma coisa! Eu procurei o lápis vermelho pra fazer as flores, e nem percebi, que é o mesmo que eu pego pra fazer o sangue. Nem pensei que tinha a ver com sangue".
Digo-lhe que me parece que o sangue se transformou em flor!
Com um movimento de surpresa e criatividade, a menina ressurge do interior de si, num gesto espontâneo e verdadeiro, encontrando vida onde antes havia só desânimo, ameaça e falta de vitalidade. É muito belo aquele instante em que ela diz que o vermelho do sangue é o mesmo vermelho da flor. Penso que aconteceu ali uma singela ressignificação dos medos anteriormente estabelecidos.
Estaria a ressignificação a serviço das pulsões de vida?
Itabira é só uma fotografia na parede. Mas como dói.
Carlos Drummond de Andrade (1993, p. 135)
Parece-me que a ressignificação pode, sim, trabalhar ao lado da pulsão de vida. Ainda que também possa estar do lado da pulsão de morte, como no ressentimento, por exemplo, pode-se atribuir a esse processo o valor de trabalho psíquico.
Diz Laplanche (2001, p. 36) que o a posteriori poderia ser entendido como descarga retardada, mas "nota-se que para Freud trata-se de uma verdadeira elaboração que não é a simples descarga da tensão, mas um conjunto complexo de operações psicológicas, de um trabalho de memória".
Se o nachträglich recai inicialmente sobre o sujeito como segundo traumatismo e tomada de consciência, penso que, em contrapartida, coloca o psiquismo em movimento, em busca de novas significações.
Disso há consequências para a clínica. Se se pretende ajudar o outro a mitigar seu sofrimento, deve-se saber que será necessário mergulhar nele antes, admiti-lo como traumatismo que pode ter vindo de fora, mas também de dentro dos movimentos pulsionais e afetivos do sujeito.
Não é o afeto que se torna outro, mas o sujeito que se torna outro para receber dentro de si aquilo que até então lhe era insuportável. Para tanto, não basta lançar uma luz intelectual e, sim, dar à noção de Annahme (tomada de consciência) um sentido afetivo e visceral.
Desse modo, pode-se pensar o aparelho psíquico como sempre aberto às ressignificações, não capturado por um determinismo linear, estando as marcas anteriores sujeitas à ressimbolização, à feitura de novos caminhos, já que o traumático não é aquilo que está preso ou encapsulado no passado e sim aquilo que não encontrou, no momento de sua inscrição, uma possibilidade de significação.
Para isso, deve-se acolher a história do sujeito, daquele que se sujeitou a ela, e ajudá-lo a re-historizar, engajando-se afetivamente. Não se trata de priorizar a história factual tampouco de desprezá-la. Trata-se de uma nova textualização, uma recomposição ou retranscrição daquilo que até agora insistia como idêntico.
É acolher a fala, o sonho, o esquecimento, o sintoma, o que têm em comum, como se articular, e possibilitar vias de derivação, novas ligações, diferentes tessituras, nos entramados da transferência em que nos encontramos também urdidos, propiciando-nos ainda, por vezes, ressignificações nossas.
Caminho que vai do registro à compreensão interna posterior, que pode ser, penso, da ordem de um novo traumatismo, tal como nas histéricas, ou do início de um processo de elaboração. Como já dito, de sucessivas ressignificações (desde o nachträglich, desencadeador do trauma), até aquelas obtidas por meio do trabalho de análise, o aparelho psíquico é posto em movimento, e pode, talvez, libertar-se da repetição do idêntico.
Conclusão
Acima dos deuses está o destino, O destino é a ordem suprema,
a que os próprios deuses aspiram,
E os homens, que papel vem a ser o dos homens,
Perturbar a ordem, corrigir o destino,
Para melhor, Para melhor ou para pior,
tanto faz, o que é preciso é impedir que o destino seja destino.
José Saramago (1998b, pp. 333-334)
Impedir que o destino seja destino! Que frase tão simples e, simultaneamente, tão expressiva. E, afinal, saiu-me cá outro texto: um pouco mais trabalhado, um tanto mais elaborado, deveras mais "sentido".
Se há determinismo nas formações do inconsciente, a noção de ressignificação permite perturbar a ordem, corrigir o destino e libertar o psiquismo de um determinismo rígido. Os primeiros registros no aparelho psíquico são oriundos da força de algo concreto sobre um substrato biológico passível de impressão. Essas primeiras inscrições não são passíveis de consciência. São signos, indícios. Fragmentos que precisam de rearranjo: de um outro que lhes ordene, transcreva, possibilite enganches e novas derivações. Outro que faça transcrições, religações, que esteja presente com seu inconsciente, sua cultura, sua história. Quanto mais vias de derivação, maior amplidão psíquica.
O que se encontra no sintoma ou no sofrimento de um paciente? Uma satisfação pulsional proibida, um conflito, um desejo inconsciente. Pode-se, então, redefinir o traumatismo, sendo traumático aquilo que vem do outro e não funciona como rearranjo nem como transcrição.
O analista, como aquele que possui certo conhecimento, como consentimento de sua própria vida pulsional (o que lhe permite abrir-se para uma escuta não obturada), pode possibilitar ao analisando engajar-se numa história própria: construí-la, gerá-la, ressignificá-la. O analista é, ainda, aquele que reconhece o outro, vário e diverso, na alteridade de sua estória.
O psiquismo não está marcado por um determinismo linear e imutável, por vezes é possível, no decorrer do processo de análise, auxiliar o paciente a libertar-se da rigidez que suas histórias parecem lhe impor, para instaurá-lo como autor de sua própria história.
Então, ao final, revelo uma ressignificação minha. Pois, enfim, para que serve uma análise?
Uma análise serve para a vida.
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Endereço para correspondência
Fátima Cristina Monteiro de Oliveira
Rua Girassol, 139/55
05434-020 São Paulo, SP
Fone: 11 3871-2239
E-mail: fatima@gtp.com.br
Recebido em: 1/5/2011
Aceito em: 23/6/2011
1 Mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.