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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo Dec. 2011

 

DEBATE

 

Os tempos da psicanálise

 

The times of psychoanalysis

 

Los tiempos del psicoanálisis

 

 

O corpo editorial do Jornal de Psicanálise1 recebeu, no dia 29 de outubro de 2011, os colegas: Ana Maria Azevedo, Antonio Sapienza e Bernardo Tanis para um debate sobre o tema deste número do Jornal, "Os tempos da psicanálise". Foi um debate caloroso e instigante, com uma revisão a posteriori do trajeto de nossos convidados, como psicanalistas, e suas inquietações em relação ao presente e futuro da psicanálise.

 

Jornal de Psicanálise: Agradecemos a presença de vocês neste debate e vamos começar com uma pergunta bastante ampla: como vocês foram escolhendo os autores que desde Freud têm se dedicado à produção escrita em Psicanálise, e como o tema da temporalidade, os tempos da psicanálise, ganhou importância em seus percursos como psicanalistas?

Ana Maria Azevedo: Posso falar alguma coisa a respeito de sua colocação, Eunice, mas antes gostaria de agradecer à equipe do Jornal de Psicanálise pelo convite que me oferece a oportunidade de poder conversar e debater com os ilustres colegas. Em toda a minha vida como psicanalista, na minha experiência clínica, essa questão de autores e de interesse sobre este tema foi sempre muito importante. Qualquer um que tenha lido meus trabalhos pode talvez perceber isso. Nos meus trabalhos são evidentes as mudanças de vértices e modificações significativas nos autores, nas teorias que utilizo, na ênfase dada a determinadas ideias. Acho que isso foi uma coisa curiosa até para mim mesma, porque quando recebi o convite do Jornal para falar sobre o tempo, não titubeei em aceitar, me dei conta, não só por um trabalho que estou escrevendo sobre esse tema agora, mas me dei conta de que venho me ocupando com o tempo desde longa data, sem saber conscientemente que estava me ocupando com o tempo. O trabalho que escrevi para membro associado, em 1980, há trinta e um anos – uma eternidade –, chamava-se "Passado-presente", e se referia exatamente às questões do passado sendo arrastadas e vividas como presente, e das dificuldades que enfrentamos para lidar com essas repetições intermináveis. Refletindo sobre estas questões pude considerar que na verdade não se tratava de um passado e sim de um "mito", construído internamente. Este encontro me parece ser uma oportunidade de pensar e discutir mais sobre o tema, e poder talvez elaborar novas ideias. Em relação aos autores, penso que fiz um passeio por diversas escolas; não descarto nenhuma delas, todas foram muito importantes para o desenvolvimento do meu pensamento. Até hoje não parei de passear nem pretendo parar, pois acredito ser importante entrar sempre em contato com novas ideias. Penso que isso tem me enriquecido.

Antonio Sapienza: Em primeiro lugar, quero agradecer o convite. O conjunto das indagações que a equipe editorial propõe é de interesse para cada um de nós e meu em particular, e falarei a partir da clínica e não de autores. A essência é distinguir o que vem a ser um tempo vazio, um tempo em suspense e um tempo morto. A proposta que está contida na primeira pergunta se refere a essa introjeção e a uma necessidade de nos libertarmos de autores, dentro do possível dos analistas e autores mais admirados; um combate que cada um de nós vai travar para que na sala, se possível, os nossos fantasmas não apareçam nem prevaleçam. Se aparecerem os fantasmas com o paciente, suponho que cada analista realize exercícios de esvaziamento dos próprios fantasmas, não só com a análise, mas exercícios que cada um necessita fazer diariamente para se libertar dos venenos que vêm de fora e dos venenos que a gente mesmo fabrica. Como não é possível estar em análise o tempo todo, temos de nos haver com o uso que fazemos dos nossos analisandos para continuarmos a apreender a experiência emocional na sessão. A questão dos autores está relacionada ao ateliê particular de cada analista, como diz Ana. É quase um percurso de um tempo às vezes infinito, assim como é necessário respeitar a individualidade de quem está com você. Há um momento em que você não pode ficar refém dos melhores autores, dos melhores analistas, supervisores e amigos. Torço para que esta reunião não mate as perguntas que vocês desenvolveram e que possamos gerar mais indagações para não buscarmos respostas definitivas e fechadas; nem prescritivas e, se possível, não dogmáticas. Aqui há pessoas que trabalharam e trabalham em publicações, em revistas, ou em outros bastidores, dentro e fora da instituição.

Bernardo Tanis: Antes de iniciar, gostaria de agradecer o convite do corpo editorial do Jornal. Estou contente de estar aqui junto à Ana e ao Sapienza para falar de um tema que há anos me fisgou. Não escolhemos, mas somos escolhidos pelos temas, pelos autores e pelas questões. A temporalidade foi uma questão que foi surgindo aos poucos. Antes de vir para a Sociedade, fiz o curso de psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae, e logo comecei a trabalhar com crianças e a indagar-me sobre qual seria o lugar do infantil, do passado, do vivido inscrito, e do peso dessas experiências. Percebia uma grande diversidade de ideias em torno dessas questões e pensei que precisava fazer algo para libertar-me dos modelos e não ficar refém deles. Resultou dessa primeira investida uma dissertação de mestrado: Memória e temporalidade: sobre o infantil na Psicanálise (tese publicada em 1995)2. Procurei estudar, voltar-me à minha própria experiência de análise e ao meu trabalho na clínica. Deparei-me também com um texto de André Green chamado "Tiempo y Memoria"3. Encontrei nesse texto muita ressonância com as minhas inquietações. Diferentes tipos de memória, diferentes regimes temporais. Fui percebendo que a recuperação dos tempos estanques, tempos mortos, sempre emergia nas minhas leituras e, de alguma forma, na minha experiência clínica. Lembrei-me de uma situação na qual uma criança dizia, depois de anos de análise: "Lembra-se, Bernardo, quando…". Ela relatava uma vivência de análise há tempos experimentada e recuperada – este tipo de retomada tem sido frequente com analisandos após alguns anos de análise, esse resgate de um tempo e de algo que podia se historiar a partir de nossa própria relação, que também historiava a própria história da vida pessoal do paciente. Temos muito o que pensar sobre a construção do tempo desde que nascemos, do tempo na sessão analítica, do tempo na história, do après-coup. Foi por essa via que fui pego pela questão. Dos autores, falaremos depois, mas adianto que Freud e Winnicott foram se fazendo presentes nas minhas reflexões como referências fundamentais sobre o tema.

Eunice: Parece interessante a ideia de ser fisgado, porque não é uma escolha, e sim alguma coisa que te pegou no meio do caminho. Fica a pergunta de como vocês, como autores, foram revendo esse trajeto no decorrer de todo esse processo.

Ana Maria: Quero complementar: não é que "o que fui lá atrás, agora não sou mais" – não é isso, pelo contrário, o que fui constitui o que sou e o que serei no futuro. Nesse trabalho específico do passado-presente, ficou muito claro para mim, ao relê-lo, que o trabalho surgiu a partir de uma indagação clínica da experiência com a paciente: por que ela precisava trazer tão insistentemente e constantemente algumas estórias e lembranças, o que a fazia repetir sem parar? Em minha reflexão foi ficando claro que não era uma questão de um passado que se repetia e sim a de um mito, construído em relação a um passado; e mitos não se desmancham com facilidade porque são questões de fé, de crenças. Queria ressaltar isso porque não são os autores apenas que saliento, não foi a teoria o que me levou a seguir esse caminho, foi basicamente a experiência, embora depois senti necessidade de ver o que outras pessoas falavam, e me enriqueci muito com as contribuições que fui encontrando. Concordo com Bernardo, com Sapienza, que é a clínica, a experiência que coloca indagações, e temos que acompanhar essas indagações.

Sapienza: Particularmente, estou muito interessado em estudar as questões traumáticas, visando desmontar as compulsões às repetições e favorecer elaborações. Primeiramente, surgem questões delicadas ligadas à distinção entre vazio e vácuo. De que maneira se trabalha não apenas a transferência relacionada a movimentos rígidos, conectada a modelos e reedições do passado, mas essencialmente o que está em trânsito, isto é a ferência, que é efêmera. Outra coisa é o futuro, os projetos e sonhos, tanto os do paciente quanto os do próprio analista, jovem ou velho, pois cada um tem certa ideia de que o tempo de vida não é eterno. E, assim sendo, pressupõe-se que o analista vai se dedicar a exercer suas funções de analista com paixão. Fala-se muito em amor pela psicanálise ou pela função que se exerce. Os fatos mostram que os narcisismos são feridos na experiência clínica, em maior ou menor grau, tanto no analista como no paciente. É inevitável que surjam as questões controversas, como a capacidade de sonhar a sessão em andamento junto com o analisando. Podem existir momentos em que não estejamos relativamente bem, e às vezes o paciente – e isto não é uma questão puramente transferencial – sinaliza algo bastante desagradável de nossa personalidade, como também pode ser alguma coisa agradável, incluindo nossos pontos cegos. E então é o tempo de surpresa para que se possa lidar com verdades que surjam na sessão. Não estou aqui para dizer nada sobre esta coisa mística do O, mas o O da sessão se instala em cada sessão, e nós analistas podemos ser extremamente obstrutores. Ana estava dizendo, e Bernardo também, sobre as associações livres, que não são só uma questão de método. A associação livre tem essa marca da liberdade. Quando se termina uma análise, ou outra análise, ou outra mais, existe sempre um pano de fundo, que também inquietou Freud, qual seja a questão da análise terminável e interminável. Então o projeto de querer exercer essa função de analista consiste em também querer lucrar pelo contato com o paciente, nem tanto para se analisar, senão para tentar continuar a aprender com a experiência emocional em andamento. Falando de tempos: há ocasiões em que o analista se esvazia de memórias, compreensão, teorias, para ampliar acolhimento ao analisando, e há outras ocasiões em que faz uso de um background próprio, pois o analista deve fazê-lo, uma vez que ele não é uma caricatura semimorta e sem memória, sem teoria, sem compreensão, como se fosse um robô ou um guru adormecido.

Bernardo: Pegando a bola que Sapienza levantou, e entrando nessa questão da liberdade, na quarta-feira tivemos uma conversa organizada pelos membros filiados do Instituto com os editores de revistas de psicanálise sobre a questão da escrita em psicanálise. O tema proposto era "Da arte de escrever à coragem de publicar", tempos distintos. Lembrei-me, nessa ocasião, da escritora espanhola Rosa Montero, quando fala da presença da fantasia e da paixão no envolvimento com a escrita. Ela diz que, em sua experiência, enquanto está escrevendo se dá uma abolição do tempo na fala, como se ela mergulhasse numa experiência de eternidade: "Escrevo para me defender da morte". Quando li isso, fiquei muito tocado, e pensando em algo semelhante ao que Sapienza diz sobre a situação analítica e a paixão.

Também me fez pensar no analisando, mergulhado nos diferentes tempos do acontecer psíquico e transferencial. Passado, presente e futuro são apenas uma camada muito fina da nossa consciência que nos ajuda a organizar minimamente a experiência, para tornar razoável o tempo-espaço da nossa existência cotidiana. No entanto, há outros tempos que nos invadem e que vivemos na situação clínica. Por exemplo, momentos de eternidade, paradoxalmente fugazes. Outras vezes temos situações em curto-circuito, ou melhor, de circuito curto, nas quais não há mediação simbólica, mas uma pura presença do instante, uma abolição do devir, da angústia, do vazio. Na clínica, observamos o tempo vinculado ao movimento, ritmo ou paralisia.

Eunice: Estava pensando a relação da atemporalidade do mito, de que Ana estava falando, e de como o mito se instala e se repete. Como se dará essa repetição ou a atemporalidade do inconsciente, e quando é que se instaura um tempo histórico? Ou seja, outra noção de tempo se instaura dentro da análise porque essa dualidade da psicanálise vai trazer a noção de um tempo que é de outros tempos, que não é linear, que se constroi e se desconstroi e, de alguma maneira, a psicanálise vai falar sobre outros tempos como o formulado por Pontalis: "a psicanálise não é de outro tempo senão de um tempo outro". Qual será esse tempo outro tão peculiar da psicanálise, que se instaura com a metapsicologia, com o pensar psicanalítico?

Ana: Quando penso em tempo e experiência psicanalítica, penso no tempo da sessão, porque o tempo da sessão vai ser um corte fundamental para os dois, analista e analisando. Considerar esse ponto como uma ideia fundamental é importante, pois se situar na experiência, como você está colocando, ao falar do atemporal – e eu não sei se é atemporal ou um tempo outro, que eu preferiria aproximar ao tempo dos sonhos, tempo sem tempo, mistura de todas as possibilidades de tempo. O inconsciente se mostra no tempo do sonho, no tempo do sempre.

Um dia coloquei numa assembleia a questão das sessões analíticas como tendo uma importância enorme, não porque o analista quer que o paciente venha três, quatro ou cinco vezes por semana, senão porque a sessão engloba elementos fundamentais para uma estruturação psíquica. Cada analisando terá a sua necessidade, cada analista também, e sem a consideração desses ritmos como estruturantes de noções básicas como a de presença-ausência, satisfação-frustração, por exemplo, será difícil a construção ou transformação de um psiquismo; não estaremos oferecendo uma psicanálise, no sentido de uma experiência básica para a formação de um psicanalista. Vendo vocês falarem do atemporal, prefiro pensar que é um tempo como o tempo dos sonhos que se instaura, em que as coisas têm e não têm existência, aparecem e desaparecem. Sem o sonho se formaria um vazio, um vácuo, porque sonhamos exatamente para não ficarmos com este não tempo do vazio.

Sapienza: Talvez exista o tempo da não existência. A questão do setting a que Ana está se referindo, ligada a espacialidade, temporalidade e corporeidade. Há pessoas que dizem que analisam por Skype ou por telefone. Não é que não possa haver uma conversa através desses instrumentos tecnológicos, dependendo do que está acontecendo. Há uma ruptura com o poder lidar com sensações quando o registro da linguagem abarca os corpos da parceria presente ao vivo. Alguns analistas de nosso meio destacaram isso de uma maneira intensa; ocorre-me, entre outros, o psicanalista Armando Bianco Ferrari, que põe ênfase em seus trabalhos sobre eclipse e objeto concreto. Um dos fatores que o levaram a ir embora de São Paulo talvez possa ter sido o seu interesse em se aprofundar em questões de semiologia e semântica, enigmas, segredos e mistérios, face à necessidade que o ser humano tem de encontrar significados e crescer mentalmente. Destacaria o como se constroi uma parceria em análise, e como também se lida com os problemas das assim mal denominadas "reações terapêuticas negativas", nas quais o analista pode ser bombardeado com disputas que aparentemente são destinadas a fazer um assassinato das questões de existência e sobrevivência do analista. Presumo que o analista tenha certo grau de consciência e de consentimento em elaboração de aspectos de sua própria morte mental, ou ainda de ter assistido morte mental em maior ou menor grau de pessoas significativas. Criam-se ainda momentos de prevalência de estados de guerra, quando não se trata apenas de uma questão de mal-entendido, mas de condições de o par ser posto à prova na capacidade de sobreviver em grupo, pois a análise chamada individual na verdade é também grupal e requer as condições de sobrevivência, face às nossas precariedades mentais e pessoais, ou seja, "fazendo o melhor possível em condições adversas".4 Tenho tentado distinguir as diferenças entre o ato de morrer e a morte; assim, para não fazer confusão, se a psicanálise vai subsistir ou não a cada um de nós, em grande parte vai depender de nós como analistas na função. Podemos nos indagar sobre qual possa ser a função de continência da instituição e dos colegas entre si. Não estamos condenados a sermos sozinhos, embora às vezes a solidão constitua uma boa parceira. Mas ninguém vai transformar o consultório numa "caverna de eremita", ou pensar que a vida do psicanalista é só psicanálise. Em debate recente sobre "Clínica na atualidade", um colega perguntou o que se entende por vida real. Procurei destacar que não me cabe definir os limites do que seja real, nem imaginário, nem simbólico para outra pessoa, pois não me arvoro a ser a autoridade a afirmar quando determinada pessoa tem consciência que sua personalidade já nasceu e que possa continuar a se sentir viva. Às vezes é necessário que tenhamos bons parceiros no cotidiano, casados ou não, bem como algumas crianças e jovens bem atrevidos, para que nos digam algumas verdades pertinentes também fora do setting. Se as duas pessoas não estiverem na sala, como é que ocorre a sessão analítica? Quem garante que via Skype não tenha uma plateia extra a assistir à conversa que deveria ser privativa e privada? Sem paranoia, pode estar havendo também uma gravação com usos os mais variados, que possam até mesmo chegar a uma ruptura, que levará o paciente e/ ou acompanhantes a gravar as sessões e, de modo direto ou indireto, instaurar aberturas de processo ético contra o analista. Não que hoje em dia alguém não se disponha a gravar uma sessão diretamente, pois com um celular e em surdina o paciente pode gravar o que quiser, e aí a questão passa a ser qual o uso que será feito. A revolução tecnológica não tem reversão. Surgem questões éticas, estéticas.

Eunice: Estava pensando na questão da morte e da não existência na constituição do tempo. De alguma maneira, Bernardo, no seu livro Memória e temporalidade, você fala nessa questão do luto, de como o luto vai constituir o tempo da sessão, pela presença e ausência, e como esse tempo vai construindo a história do indivíduo e da dupla. Existe o tempo da atemporalidade, da não existência. Como vai se constituindo o tempo da história?

Bernardo: Penso a questão da morte como tensão fundamental. Tensão, conflito entre vida e morte. Podemos falar em diferentes tipos de morte. Na situação clínica, às vezes também morremos ou estamos parados, amortecidos, estanques. Vivemos com o paciente momentos de paralisia nos quais o tempo parece não andar, se petrifica. Não estamos caminhando pela via da teoria, mas pela via da experiência. Sem dúvida o tema da separação, da elaboração da mesma, dos lutos concomitantes, é central para nossa conversa.

Sapienza levantou questões ligadas à vida institucional, societária e à formação. Trata-se de um novo polo instigante e de tensão: ter gratidão pelo recebido e, ao mesmo tempo, ter liberdade para criar e para ousar. Invenção e tradição. Entra uma questão de vida, na vida institucional, na vida fora da vida psicanalítica, e tudo está sujeito à critica e à reflexão.

A vida, nos tempos de hoje, nos pressiona como analistas. Surgem propostas ou demandas que podem contrariar, por vezes, nossos modelos de prática clínica; é como se estivéssemos impelidos a entrar em práticas que nos levam a aniquilar a capacidade de estar junto ao outro. Sapienza falou da corporeidade na situação analítica, o que nos introduz a questão da finitude e da presença da sexualidade, algo inexorável em relação ao tempo. Como se algumas práticas procurassem transcender o corpo, a presença, como na análise pelo Skype. Temos muitos temas para refletir.

Sapienza: O analista pode ser simplesmente uma função e virar uma voz e uma imagem virtual. Agora, se o paciente está em alucinose e já ouve vozes extraterrenas, quais garantias o analista poderá ter de estar numa experiência emocional viva e real, bipessoal e específica? Então a situação pode vir a ser um arremedo de comunicações em centros espíritas. Nessa questão do tempo, lembrei-me de Santo Agostinho, que quando alguém perguntava o que era o tempo, ele falava: "quando não me perguntam o que é o tempo, sei o que é". 5

Ana: Colocaria uma pergunta a vocês: acham que se não existisse a morte haveria tempo? Porque, para mim, o que institui a ideia do tempo é a constatação da morte. É a constatação da existência de um limite fora de nós mesmos e independente de nós mesmos. Podemos postergar isso por muito tempo, mas temos que constatar que realmente a morte está aí para todos. Isso é que instaura na pessoa a noção do existente e do não existente, e em toda a humanidade é o que permite a ideia de tempo.

Sapienza: Lembro de uma amiga conversando com um amigo, a amiga falava de seus projetos dentro do tempo da vida finita, da mortalidade, e ele saiu-se com a seguinte graça: "Se eu morrer…". Pareceu-me que, sob forma de anedota do cotidiano, se torna manifesto um desejo melancólico do que seja tornar-se imortal.

Eunice: Retomando isso que Ana estava falando da descoberta da mortalidade, é uma descoberta a posteriori que vai instituir a noção do tempo, da ausência e da presença, e isso requer um trabalho de luto. Lembro que Freud, em seu trabalho "Mais além do princípio do prazer", propõe aproximar o desejo da imortalidade à ontogênese e à filogênese, considerando essa fantasia de desejo como ocupando o primeiro e principal lugar na escala da evolução. Com isso ele posterga a temporalidade e o reconhecimento desta a uma etapa posterior, assim tratando a mortalidade como uma aquisição secundária e tardia.

Sapienza: "Luto" em varias línguas quer dizer luta: duelo em espanhol; deuil em francês; algo que envolve conflito. Poderíamos dar um recado para o título original de Freud "Luto e Melancolia", transformando-o em "Luto e/ou Melancolia", qual infindável conta conjunta. Quando se está sofrendo, tem-se a impressão de que o tempo é pesado e lentificado, mas quando se está gozando, tem-se a sensação de que o tempo se acelera e voa. Quando se envelhece, o tempo parece escoar em alta velocidade. Tempo não é só tempo, é tempo oportuno, que os gregos denominaram kairós.

Bernardo: Queria falar de uma situação para que possamos pensar juntos sobre essa questão da morte, da possibilidade do luto, do vazio e do que pode trazer vida. Um filme que assisti recentemente, O dia em que eu não nasci, do diretor Florian Cossen. Trata-se da história de uma moça que vem da Alemanha e vai para o Chile para uma competição de natação. A moça fala alemão e, no entanto, enquanto aguarda sua conexão para Santiago no aeroporto de Buenos Aires, ouve uma mulher cantando uma canção de ninar em espanhol. O filme retrata sua emoção quando começa a chorar sem saber por que o faz. De repente, brota nela essa canção e começa a cantar em espanhol. Desespera-se, sente muita angústia, telefona para o pai na Alemanha e conta que decidiu não ir ao Chile e que ficará na Argentina para entender o que tinha acontecido. O pai, perplexo, diz: "espera que estou indo para aí". No desenrolar da história, que remete à situação política na Argentina, ao golpe militar, revela-se que os pais dela haviam sido sequestrados pela polícia repressora, como tantos outros, e morreram. Com dois anos de idade, ela havia sido adotada por uma família alemã. O filme relata em que condições se deu essa adoção.

Trago esse filme para mostrar que são muitos os temas que têm a ver com o tempo, com a história, com os traumas, com o vazio de uma experiência primeira que ficou inscrita na moça mas da qual não tinha registro. A situação em que algo de traumático emerge é tremendamente dolorosa. No caso do filme, emerge com essa vivência um ódio ao pai e uma busca de descobrir quem se é. Ocorre no filme algo semelhante ao que acontece em situação de análise, na qual tentamos encontrar algo sobre nós mesmos que parecia estar congelado, mas que ganha vida a partir de uma situação específica. Podemos estabelecer várias analogias entre o filme e a situação de análise: o tempo congelado, o vazio que se transforma, a ressignificação, a história que pode se construir ou reconstruir. Até que ponto a construção ou reconstrução da própria história é importante, ou seriam elas construções de outro mito? De qualquer forma, há algo que se move. O movimento de circulação é fundamental. A narrativa está sujeita a muitas versões, mas o eu necessita pelo menos de alguma versão. Piera Aulagnier6 nos fala bastante disso, pois viver sem nenhuma versão é muito difícil, angustiante; mergulharíamos num caos, numa ausência de significados. O problema radica quando a versão se torna rígida, dogmática, cristalizada, engessada, estreita e paralisante.

Ana: Penso que quando Freud fala de ontogênese, filogênese, fala de um movimento que vem vindo desde sempre, muito antes de nós, no qual nos inserimos quando nascemos e que, na verdade, não temos escolha, pois já está dado. O que já está dado é a natureza humana, somos pessoas humanas e estamos inseridos num mundo em movimento. Essa é a questão que tem a ver com a ontogênese, que mostra como alguma coisa está existindo, independente de nós estarmos vivos ou não. Essa existência em movimento vai prosseguir, não sei para onde vai nem de onde vem, mas há alguma coisa que está acontecendo sempre. Não é que eu entenda isso; não entendo, mas de algum jeito, sinto, vejo que é assim. O que já está dado é a natureza humana, somos pessoas humanas e estamos inseridos num mundo em movimento. Essa é a questão que tem a ver com a ontogênese, que mostra como alguma coisa está existindo, independente de nós estarmos vivos ou não. Essa existência em movimento vai prosseguir, não sei para onde vai nem de onde vem, mas independente de nosso desejo e consentimento, o que acontece, continuará, tal como uma espiral em expansão.

Sonia: Na Divina comédia, Dante visita o inferno com o interlocutor Virgílio. Lá os castigos são perenes e o medo de Dante enquanto está no inferno é ficar lá. Vai para o Paraíso, para o Purgatório e volta para o Inferno. Está indo e vindo. Paradoxalmente o movimento e a transitoriedade são ali fundamentais.

Sapienza: Há uma edição nova da Divina comédia7 ilustrada por Sandro Boticcelli que dá forma a elementos visuais contidos nos versos. Essa questão visual, que é a linguagem que o bebê também tem, implica que o bebê pode não ter a linguagem verbal. Infância significa o que não tem fala, mas não quer dizer que não tenha expressividade. Alguns analistas não prestam atenção à linguagem não verbal e à linguagem pré-verbal, e talvez por esses escotomas defendam a ideia de se poder trabalhar na clínica sem a presença corporal do outro. Até certo ponto o fenômeno do setting, dependendo das circunstâncias, é como um útero. Klein propõe em sua metapsicologia que o útero materno contém, além do pênis paterno, o conjunto de bebês: os bebês mortos, os bebês nascidos e os bebês que ainda aguardam nascimento (unborn babies)8. Foi uma brecha que Bion encontrou para poder analisar Samuel Beckett qual irmão gêmeo imaginário dele e vice-versa9. Imaginou duas figuras que tinham uma capacidade de ficar em silêncio e olhando para o tempo da guerra pendente e aguardando os acontecimentos de uma possível vida a dois. Não é que exista impasse em análise, senão que existam ou não consentimentos com certas situações muito peculiares. Se o casal gera um bebê, há um sonho em andamento de como vai ser esse bebê; e, ao nascer, como o casal vai lidar com o bebê tal como é, e que não é evidentemente o bebê de seu sonho. O paciente que não corresponde aos sonhos do analista poderá também sobreviver e existir? Quem vai dizer que é não analisável? Se tiver humildade, vai dizer que é não analisável por mim, ou conversável por mim, mas aí vamos a entrar em questões como Sonia estava dizendo, se você já foi tratado como pária ou desprovido de capacidade de amar e de crescer. Essa questão envolve similaridades com a dinâmica de adoção, porque a transferência é também um pedido de adoção, seja de um quadrúmano, mulher gorila, homem tigre, monstrinhos, políticos fortes ou primatas, pois os pacientes e os analistas são humanos, nem anjos, nem demônios.

Bernardo: Podemos pensar como, em situação de análise, nos defrontamos com diferentes tempos e personalidades que se chocam, e esse atrito, quando vivido, gera algo transformador.

Quando vivemos a ilusão do encaixe perfeito e da fusão, da repetição, da idealização, perdemos a dimensão do tempo histórico na e da psicanálise. Talvez o que estejamos vivendo e pensando seja a questão de qual será este nosso tempo, suas particularidades, e como nos relacionamos com ele na psicanálise. Lá fora, no hall, temos a exposição em homenagem à Dona Lygia Amaral10, pioneira da SBPSP; em outros espaços, o tempo do Skype, o questionamento do setting clássico…

Sapienza: A troca de cartas entre Lygia Alcântara Amaral e Virgínia Leone Bicudo põe em evidência diferenças de personalidades, pois consta que não temos os registros das cartas de Lygia. Estamos aqui falando de correspondências e de reciprocidades. Vocês guardam tudo o que vocês têm? E quando alguma outra pessoa vem fazer a faxina por vocês, vocês aceitam? Tem fronteiras, há invasão? O analista, por mais delicado e suave que seja, ao instaurar uma investigação já machuca o narcisismo do outro. Se o analista quer ser santinho, não é o melhor ofício a que possa se dedicar.

Beatriz: Tem um texto de Rolland que gostaria de citar para vocês: "O objetivo da psicanálise não é nem teorizar o tempo e suas categorias, nem observar como uma subjetividade se organiza em torno desse eixo do mundo que é a temporalidade: ao contrário, seu objetivo é avaliar por quais meios e em que medida o eu, enfrentando o tempo do destino e substituindo-o por um tempo da história, é capaz de ampliar suas fronteiras e seus espaços…" Esse objetivo "exigiria que especulação e práxis caminhassem juntas, o que não ocorre, pois os desenvolvimentos teóricos, em seus avanços ou recuos, estão submetidos a uma temporalidade que lhes é própria, diferente daquela da eficiência prática, sujeita a outros movimentos de progresso ou de resistência."11 Como vocês comentariam essa ideia?

Ana: Em parte concordo. Tem a ver com o que Sapienza estava falando, sobre o tempo que a teoria propõe, que não é a mesma temporalidade da experiência emocional; elas não caminham juntas. O que vamos encontrar no consultório não é o que a gente aprende, discute; existem diferenças fundamentais. De algum jeito o analista tem que elaborar, digerir, fazer tentativas de entender de que maneira essas ideias que provêm da teoria podem vir a ser incorporadas, introjetadas, e o que vai poder fazer com elas, como vai poder usá-las na clínica. Queria dizer outra coisa, acredito que na vida fazemos isso o tempo todo, isso é, como será que fazemos para que aquilo que se aprende vivendo possa, por exemplo, ser usado em outra experiência emocional? Sempre há uma transposição de elementos, aspectos, que estão em tempos subjetivos diferentes, em situações diferentes.

Bernardo: Sem dúvida a experiência tem uma intensidade afetiva e um potencial de aprendizagem que é de outra ordem que a teoria. Esta última se constitui em diferentes níveis de abstração da primeira. Não consigo fazer uma separação. Quando estamos mergulhados na experiência, ainda que não a teorizemos, não podemos prescindir totalmente do ego e da representação. É muito difícil se imaginar nesse estado. Cairíamos em outro mito. No entanto, há muitas formas e diferentes níveis de lidar com a teoria.

Contamos com um repertório que faz parte de nossa história e que, como psicanalistas, não faz sentido que nos desvencilhemos dele uma vez que constitui nossa riqueza. No entanto, sempre há o risco de recorrer às teorias de modo defensivo. Buscamos referências e às vezes buscamos no lugar errado, como o bêbado que perdeu a chave em frente à porta da sua casa e vai procurá-la na calçada da frente. Quando lhe perguntam por que vai procurar nesse outro lugar ele responde: "é porque aqui tem luz e lá está escuro". Como ele, às vezes nós buscamos no lugar errado, fugimos ou temos medo do escuro. Diante da angústia do desconhecido, podemos nos deixar invadir pelas teorias, achar que são um porto seguro.

A teoria nos é útil quando conseguimos ter uma experiência encarnada e podemos dialogar internamente com o que os colegas pensaram e teorizaram. Por exemplo, o texto "Notas sobre o bloco mágico", de Freud, até agora tem ressonância em mim; de pequeno, quando brincava com o bloco mágico, eu gostava dele porque podia escrever e ninguém veria o que eu tinha escrito. A ideia do sistema perceptivo, exposta nesse trabalho, que alude de alguma forma a uma saturação com excesso de informação, é fundamental para compreender a noção de ritmo.

Estava vindo para cá e ouvindo uma estação de rádio; um atentado aqui, outro ali. Informações transmitidas de modo totalmente vazio, sem sentido, sem contexto: morreram tantas pessoas aqui, morreram tantas ali. Mudei de estação, não porque não me interesse pela política, mas porque essas informações eram puro estímulo que não me levava a nada, e é preciso que eu me proteja de alguma forma. A questão que vivemos hoje é como criar, seja na vida, seja na psicanálise, clínica e institucional, condições de se proteger do excesso – de informação, de teorias, do consumo – para poder existir, garantindo uma situação mínima de experiência, de troca e de diálogo.

Sapienza: A escola kleiniana clássica perdeu um referencial que distingue je de moi; e, consequentemente, tenderia a se desconectar em maior ou menor grau das articulações também com ideal de moi e censuras do surmoi. Atualmente me debruço em textos da escola de psicanálise de alguns franceses, que abrem pistas interessantes sobre o tema de experiências traumáticas, despersonalização e adições; destaco e recomendo em particular o livro de Sylvie Le Poulichet A arte do perigo: desamparo e criação,12 em que Sylvie estuda indivíduos que tiveram experiências muito sérias de lidar com vazio. Particularmente estou me dedicando a estudar o capítulo sobre Fernando Pessoa e a criação de seus heterônimos. A autora examina a correlação de lutos precoces que Fernando sofreu aos seis anos – as mortes do pai tuberculoso e do irmão mais novo, também tuberculoso. É quando Pessoa cria seu primeiro heterônimo, que denomina "Le Chevalier de Pas".13 Vocês provavelmente conhecem pessoas que a primeira coisa que falam é "não!". Trata-se de um julgamento denegativo, que talvez preserve a soberania dos desejos, por exemplo, "você quer ir comigo a tal lugar?", "talvez, deixa-me pensar". Quando Freud vai lidar com o negativo, o uso do não é um fator que preserva o julgamento de pensamento e que afasta o julgamento de atribuição como o de existência, que venha de outra pessoa que queira ocupar uma posição não pertinente ou que é julgada como não pertinente. Os heterônimos estão sendo estudados por essa psicanalista não como uma relação de objeto, trata-se de criar uma esquiva, bastante similar a um alter-ego, sendo e não sendo quem se possa ser, o que permitiria engendrar um estrangeiro imaginário pelo qual ao mesmo tempo o fabricante se apresenta e se oculta. O escritor italiano Antonio Tabucchi descobriu um baú contendo inúmeros textos de Fernando Pessoa, com vários heterônimos ainda não publicados e vários homônimos do próprio Fernando Pessoa, com textos e poesias aguardando publicação; o uso dos heterônimos parece-me tão postiço e sutil, que vale a pena reservar um bom tempo para estudarmos mais detalhadamente essa questão. Dante foi exilado, e demorou cerca de treze anos para escrever A divina comédia. E Dante colocou no Inferno quantos papas, amigos e inimigos? Por que deixou Virgílio – qual seu preceptor e analista – no Purgatório, juntamente com Sócrates, Aristóteles e outros, apenas por serem pagãos e não batizados, impedindo-os de entrar no Paraíso?

Beatriz: Estava às voltas com a bidirecionalidade do tempo no sentido que estamos circulando, trocando e conversando agora. Quero me referir à ideia da pensabilidade máxima de uma época, pois Dante não podia pensar como a gente pensa hoje, e é difícil sabermos porque ele não deixa entrar o analista no paraíso e porque ele o deixa no purgatório.

Como podemos pensar as questões clínicas do vazio, do tempo… se essas questões vão sendo formuladas ou reformuladas?

Digo reformuladas no sentido que anteriormente citei, a pensabilidade máxima de uma época, para pensar com vocês se o texto seria sempre vivo – podemos estar sempre relendo Freud, M. Klein, Bion…, e assim também o texto não é datado?

Sapienza: Se tivesse que ficar um mês numa ilha, hoje em dia, quais livros levaria? Fizeram essa pergunta para Freud fixando cerca de dez livros e ele falou em Anatole France, além da Bíblia, e outros tantos. As questões giram em torno de quais livros vão poder revitalizá-lo, re-energizá-lo; quais objetos e encontros são vitalizadores, bem como quais músicas, obras de literatura, etc.? Eu daria como exemplo o escritor basco Enrique Vila-Matas, com os livros Paris não acaba nunca, Filho sem filhos, A viagem vertical; e ainda poesias com linguagem de concisão geométrica, entre outras as de Paul Valéry; enfim, algo que vai fazer bem para cada um. Pois não tenho que ser feliz a qualquer custo nem propiciar felicidade também a qualquer custo. Basta lembrar que o texto de Freud de 1920 trata de "Além do principio do prazer e da dor", que constituem os polos da avidez de prazer sem fim e consequentemente também da vida baseada no terrorismo do tudo ou nada. Como é que se lida com frustração, sem deslizar para a rabugice, autoritarismo, ressentimentos, mandonismo e patrulhas de pessoas desprovidas de humor e ranzinzas? Será que ainda estamos retidos em sonhos ou ilusões de que em algum lugar há alguém que tenha a obrigação de nos fazer felizes e nos restabelecer?

Ana: Apesar de ouvir o Sapienza e saber que ele pode ter um tom irônico, meio de brincadeira, recebo isso de uma forma extremamente dramática, não consigo vivenciar isso com ironia, minha vivência é angustiante. Faz-me pensar nas situações da vida e a vida é muito dura. Sapienza se pergunta como a gente faz para conter a frustração. Eu acho que não fazemos nada a maior parte do tempo. A gente dá um jeito com o próprio corpo, atua, ou faz uso dos objetos, cria uma atividade, seja o que for, mas o fato é que com a frustração a gente não faz nada, e o dramático é isso. De fato não tem saída. É sofrimento.

Sapienza: Então uma boa dica é voltar a ler as tragédias gregas. Édipo em Colona, Filoctetes etc.; identificar-se com a precariedade de Édipo quando perde os poderes, e busca um refúgio em Atenas, cego e exilado de Tebas. Há quem diga, "ah, você é bioniano!" Quem diz que eu sou isso? Posso ter admiração e estudar as obras e os livros autobiográficos de Bion. Se você for bioniano, kleiniano, freudiano, winnicottiano, espero que use uma camisa que não seja de força, a impor a seus pacientes o Leito de Procrusto. Por isso que a linguagem clínica é específica e essencial para aquela pessoa naquele momento. Como é que se treina intuição? Temos um privilégio de exercermos uma função em que se treina e se exerce isso e ainda somos pagos para tanto.

Eunice: Esse privilégio tem certa responsabilidade, somos pagos para lidar com as dores humanas. Com isso, queria retomar uma questão de como vamos sendo pressionados pelos tempos atuais a reconfigurar o setting.

Bernardo: Quando digo que somos pressionados, falo de como nos sentimos frente às fronteiras, frente aos desafios. Podemos ter diferentes atitudes diante disso. Muitas vezes, por serem diferentes, é difícil dizer o que essas questões suscitam e ter instrumentos para pensá-las. O importante é criarmos condições para pensar sobre essas questões contemporâneas, seja para conservá-las ou descartá-las de nossas práticas. Existem posturas cristalizadas que não nos permitem fazer coisas novas e que não necessariamente vão contra a natureza da experiência analítica. Poder se defrontar com os limites não é o que fazemos em análise, na vida? Muitas vezes temos disponibilidade enorme para lidar com situações limite fora da vida institucional e, dentro dela, nossa tolerância é mínima. É curioso esse fato e nos faz pensar: quais os nossos medos, quais os terrores, qual é a ameaça? Parece que sempre precisamos colocá-los no outro, como se a ameaça viesse sempre de fora. Isto não significa adotar práticas que descaracterizem o processo analítico, mas estar atentos a não criar institucionalmente um tempo estanque, sem movimento. Eu não tenho resposta, mas é angustiante quando pensamos no futuro e em conduzir criativamente a vida numa comunidade analítica.

Ana: Outro dia soube de uma assembleia onde divulgaram um comunicado usando duas ou três vezes a palavra "engessada", com relação à supervisão e análise didática. Chamou minha atenção. Por que uma pessoa se sente engessada? Dando continuidade ao que Bernardo está falando, eu acredito no setting analítico. Eu não faço análise, ou não tenho determinado setting estabelecido porque alguém achou que é o melhor setting. Eu acredito que aquela sequência, aquele espaço, aquele tempo é estruturante, é fundamental para a relação e para o paciente. Qual é a diferença, disso que eu acredito, e o que sempre ouvimos: "não, vocês são engessados, vocês não têm capacidade de mudar, o tempo passa e vocês continuam iguais, numa cidade como São Paulo, num trânsito como o de São Paulo." Então como é que fica a questão do acreditar, da ética e a questão do "engessamento", isso é, teríamos que mudar a psicanálise em que acreditamos para seguir o curso das modificações externas? Penso numa criança pequena que fica berrando, berrando, se debatendo, não tem condições de fazer outra coisa, pois não tolera o custo do desenvolvimento. Quando se pensa as questões da psicanálise, dentro do consultório, temos condições de tentar lidar com isso. Quando vamos para um âmbito institucional, fica muito complicado porque aquilo em que acreditamos, levamos a sério, é muito questionado. Teríamos que ficar mudando para lá para cá, tentando fazer com que a criança ficasse quieta de qualquer jeito, porque fica insuportável a convivência desses dois elementos, a queixa, o ataque, por um lado, e o que acreditamos a partir de nossa experiência, por outro lado. Não se leva em conta ter certa postura condizente com o que se acredita ser ético.

Beatriz: É diferente ter de se engessar porque tem fraturas e quando há uma crença que vira uma constituição e todo mundo tem de se submeter.

Sapienza: A questão da submissão é um mal-entendido porque nem sempre é decorrente de autoritarismo. Qual é o problema para quem exerce funções de autoridade? Se o apego é por vontade de poder, há quem tenha vontade de poderes sem limites, as rivalidades explodem em disputas e guerras sem fim. Se estivermos apoiados nessa mesa, e se a mesa estiver podre, haverá um despencar de objetos, livros, papeis e talvez também de pessoas; então cada qual será testado pelos lugares, funções e temporalidade que ocupar. Na prática espera- -se que cada qual possa dimensionar sua sustentabilidade e limites em poder se responsabilizar quanto ao que decide se dedicar. Penso que há regras adequadas para as duas pessoas na sala de análise não poderem fazer o que bem entendem, seja análise de crianças ou de psicóticos.

Ana: a palavra, de meu ponto de vista, é competência. E essa palavra facilmente sofre certa desvalorização porque se chama de autoritarismo algo que de fato decorre da competência.

Sapienza: Competência e compromisso. Muitas pessoas acham que compromisso é ficar comprometido. Certa ocasião um paciente me falou: "Sou muito comprometido." Eu respondi: "Estou percebendo."

(Risos)

Bernardo: Acho importante quando Ana fala de competência, e Sapienza de compromisso. Penso que há sempre "certas pessoas" falando muitas coisas sobre as outras, mas eu considero mais edificante e construtivo falar das ideias em si. Adianto, como editor da Revista Brasileira de Psicanálise, que o próximo número será sobre o tema "Ética e psicanálise". A equipe editorial escolheu o tema justamente porque diz respeito à competência e ao compromisso na clínica, e percebemos uma necessidade de aprofundar a discussão desses tópicos.

Sapienza: Não é só competência. Se você trabalha numa área de ética, seja qual for, numa instituição ou em medicina, o que importa avaliar é o grau de proficiência do profissional. Se o profissional tem uma proficiência 100 e ele usou 100, mas o paciente morreu, ele não pode ser condenado. Se o profissional tem um grau de proficiência 1000 e usou 50, por negligência, então poderá ser aberto um processo de investigação. Lembro-me em obstetrícia de um médico plantonista que, chamado para atender emergência de pronto atendimento, alegou estar cansado e não se dispôs a atender paciente em risco de vida, e assim acontecem acidentes e morte. Então está em jogo a proficiência daquilo que essa pessoa está exercendo, seja mais jovem, com maior ou menor grau de experiência, pois o que se avalia é o grau de compromisso em se responsabilizar pela função.

Bernardo: Essa é uma ideia central para pensar a ética: qual o grau de compromisso com a função. Uma das dificuldades que nós temos na vida institucional é olhar para um colega qualquer e reconhecer que esse colega tem um compromisso com a tarefa. Isso porque, às vezes, confundimos e achamos que certas medidas ou normas burocráticas garantem o compromisso, o que eu não acredito. Acho que o debate deve ir fundo na questão da ética, do compromisso, de poder criar as condições para que um processo psicanalítico possa acontecer e para que possamos cuidar dele, porque nossa responsabilidade é muito grande. Penso que quando as discussões vão para o lado do engessamento, maior ou menor, corremos o risco de perder o foco do debate em torno do exercício ético singular inerente à psicanálise.

Ana: O argumento que usualmente se contrapõe ao do engessamento, ou seja "deixar livre" fica pior ainda quando se coloca a liberdade como sendo o oposto do engessamento. É pior ainda, porque quando ficar engessada é não poder ficar livre, me leva a pensar o que será que esta pessoa entende por liberdade? Pode-se usar a palavra liberdade em vários sentidos, em qualquer hora, em qualquer situação. Volto a pensar numa criança e considerar se educar, criar, e ensinar necessariamente teriam que ser consideradas atividades engessadoras. Sei que podem vir a ser, mas também sei que o sem limites não produz nenhum ganho. Teríamos que incluir e pensar no tempo da cultura atual, o tempo em que vivemos, porque é um tempo que não tolera nada, é um tempo que privilegia o descartar, a rapidez, o consumo, e é esse o tempo do sem limite.A liberdade inclui sempre a noção de um tempo limitado e de uma escolha responsável. Ser livre é muito mais difícil que estar engessado.

Bernardo: Para um debate futuro, teríamos que pensar se consideramos a ética como invariante ou se a noção de ética se transforma ao longo da história, como por exemplo no texto de Marilena Chauí,14 no qual ela expõe as transformações na noção de ética. A ética é discutida desde Aristóteles e é uma questão fundamental para criar um debate forte e consistente em relação à nossa prática.

Sapienza: Penso que se seguirão dois tempos diferentes, um é o tempo atual da conversa ao vivo, que envolve presença, voz e imagem, e outro é o tempo da revisão do que se fala e que irá requerer o tempo da escrita. Talvez a gente escreva para cumprir o destino de um possível futuro olvido. Se a escrita será lida e

Eunice: Tal como o bloco mágico, no qual fica uma marca a posteriori.

Sapienza: Talvez também como uma semente que possa algum dia germinar.

 

 

1 Estiveram presentes durante o debate representando o corpo editorial: Eunice Nishikawa, Marta Úrsula Lambrecht, Alexandre Socha, Beatriz Stucchi, Raquel Pires, Sonia Marchini e Suzana Kruchin.
2 Tanis, B. (1995). Memória e temporalidade: sobre o infantil na Psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo.
3 Green, A. (2002). Tiempo y memoria. In La diacronia en Psicoanálisis. Buenos Aires: Amorrortu.
4 Bion, W. R. (1979). Making the best of a bad job. In Clinical seminars: Brasília and São Paulo, and four papers. Abingdon: Fleetwood Press, 1987. Há uma tradução publicada na Rev. Bras. Psicanál., 13: 467-478.
5 Santo Agostinho (1987). Confissões, II. (Livro XI, 14, 18a. ed., p. 178). Petrópolis, RJ: Vozes.
6 Aulagnier, P. (1986). El aprendiz de historiador y el maestro-brujo: del discurso identificante al discurso delirante. Buenos Aires: Amorrortu.
7 Alighieri, D. (2011). Divina comédia. (S. Botticelli, ilust., J. T. Ziller, trad.). São Paulo: Ateliê.
8 Klein, M. (1975). On Identification. In M. Klein, The writings of Melanie Klein. Vol. III (1946-1963), p. 158. London: Hogarth Press.
9 Anzieu, D. (1992). Beckett et le psychanalyste. Paris: Mentha-Archimbaud.
10 Homenagem ao centenário de nascimento de Dona Lygia Alcântara do Amaral, evento que ocorreu na SBPSP no dia 29 de outubro de 2011.
11 Rolland, J-C. (1999). Curar do mal de amor. São Paulo: Martins Fontes.
12 Le Poulichet, S. (2001). L'art du danger – De la détresse à la création. Paris: Economica-Anthropos.
13 "O cavaleiro do não" (N.R.).
14 Chauí, M. (1992). Público, privado, despotismo. In A. Adauto Novaes (Org.) Ética. São Paulo: Companhia das Letras.

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