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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo June 2013

 

11 notas sobre a poética de Elisa Bracher*

 

 

Alberto Tassinari

Crítico de arte

 

 

1. O preexistente. Depois de realizadas, as obras de Elisa Bracher guardam sempre algo de intocado, de não trabalhado, das coisas e materiais que são pontos de partida para operações as mais diversas nas diferentes artes em que sua poética se inscreve.

2. O equilíbrio entre operações e o preexistente. Para que o preexistente ainda se mostre na obra acabada é preciso que as operações sobre as coisas e materiais não sejam excessivas, mas mantenham um equilíbrio entre o feito e o não feito.

3. As operações são gráficas. O equilíbrio entre o trabalhado e não trabalhado é obtido por meio de operações que podem ser ditas gráficas. Se por gráfico se entende as marcas que as operações registram nas obras.

4. As gravuras sem tiragem. Se as três notas acima estão corretas, elas ajudam a compreender a singularidade das gravuras de Elisa Bracher. São gravuras em que não há tiragem. Por que então não desenhar os mesmos traços sobre um papel de mesmo tamanho? Os riscos de um desenho, porém, não cravam no papel as nervuras que a operação de gravar obtém. Nas gravuras, os riscos sulcam o papel. O papel ganha, assim, uma importância ainda maior do que possui no desenho. Sulcado, o papel se mostra mais presente. As linhas e manchas o salientam. E justo porque o põem em evidência ele também se exibe em grande parte intocado pelos riscos que o percorrem e o conformam como uma espécie de campo virgem ativado e cultivado pelos riscos.

5. Arranjos escultóricos. Nas esculturas de madeira de Elisa Bracher também as grandes toras de madeira ainda não se tornaram, de todo, madeiras trabalhadas. Os talhos que desbastam os troncos naturais não são regulares. Não são toras que poderiam servir a um uso posterior. São irregulares. Trechos de casca ainda são observáveis. Nenhuma tora tem medidas iguais à de outra. Não se prestam a construções. Não possuem a regularidade necessária. É assim que não formam composições rígidas quando juntadas numa escultura. E também não formam, ao contrário da composicional, uma disposição minimalista, serial. Erguem-se apoiadas umas nas outras como se formassem arranjos ainda com os pés na floresta, assim como, entre toras e troncos, a madeira ainda não foi de todo dirigida a um uso prático.

6. O tamanho necessário. Que tanto as gravuras quanto as esculturas de Elisa Bracher possuam grandes dimensões é algo que se torna necessário para que o elemento preexistente tenha dimensões que o salientem de forma inequívoca, que se ergam ou se enquadrem em dimensões maiores que o corpo humano, e, assim, mostrando o não trabalhado, o intocado, em sua grandeza, sua força, que as operações modificam, mas ao mesmo tempo as reforçam.

7. Motivo e enquadramento nas fotografias. Compreende-se melhor então as fotografias de Elisa Bracher no que elas parecem ter de casuais, de pouco enquadradas, embora a operação que leve à obra seja justamente o enquadramento. É que há nelas um respeito pelo motivo fotografado que não deseja recompô-lo. Se são motivos que lembram suas gravuras e seus arranjos escultóricos, o enquadramento se afasta, cerimonioso, para não afirmar em demasia a semelhança. São fotografias, em geral, de moradias pobres. As fotos assim as mantêm. Não buscam estetizar por enquadramentos essas moradias. Não buscam encontrar nos motivos o que as gravuras e esculturas exibem. O estético é cedido ao motivo e não ao enquadramento. O respeito e a primazia do outro - que nas esculturas é um respeito à natureza, e nas gravuras à autonomia além do artista da obra - aqui é um respeito pelos outros, pelo que antes fizeram, pelo que antes criaram de belo antes que a fotografia interviesse.

8. Ponto final sem pausas. Em "ponto final sem pausas" o contraponto entre operações e o preexistente surge mais intenso do que em trabalhos anteriores. O trabalho é composto de duas partes. Uma esfera de chumbo que paira próximo à altura do espectador e uma espécie de grande varal que sustenta folhas de chumbo que chegam bem próximas ao chão. Para que a esfera de chumbo, de forma e material preexistentes, levite, é necessário um grande esforço das operações que os cabos de aço promovem. Para que a esfera de chumbo se torne ainda mais o que é, ou seja, uma esfera sem nenhuma parte com maior importância, o que ocorreria se disposta no chão, esfera que é assim geométrica, algo ideal, os traços e as trações nos cabos que a sustentam atingem um extremo. De modo inverso, os lençóis de chumbo se deixam atingir pela gravidade. Não levitam, pesam. O resultado, juntadas as duas partes da instalação, fala, de certo modo, de toda a poética de Elisa Bracher. Apenas pendurados, os lençóis de chumbo ainda são materiais não trabalhados. O cabo que os sustenta, essa a operação, não os levam a uma condição de algo feito, mas, ao contrário, de um material sujeito à lei natural da gravidade. Já a esfera, que se assemelha a um olho suspenso no corpo do espaço, mostra esse olhar suspenso, não premeditado e que está na base de toda a poética de Elisa Bracher. Mas então, seguindo a metáfora, enfim é revelado quanto esforço é necessário para olhar o mundo e o outro nesse estado de atenção flutuante, de desprendimento, de respeito ao que não vem de si.

9. O revestimento do ims/una. Nos estudos de revestimento em zinco que fez para o projeto do escritório de arquitetura una, para o concurso do Instituto Moreira Salles em São Paulo, também o equilíbrio entre o feito e o não feito se mostra de forma exemplar. Feita já estava a fachada e o material de seu revestimento. Tratava-se então de desenhar diferenças de tons nas folhas de zinco para melhor afirmar o próprio material, seus brilhos, suas pátinas, tudo o que naturalmente adquire, mas que reduplicado nos desenhos das fachadas evitasse uma presença excessiva ou um desenho maciço demais que o zinco sem nenhuma operação artística adquiriria.

10. O poema e a fala. Em "Ponto final sem pausas" também faz parte da obra um poema lido por Elisa Bracher e que podia ser escutado por fones de ouvido. Também aqui entre o poético e o coloquial é buscado um equilíbrio. As palavras soam, às vezes, coloquiais, outras, mais ditas. A respiração muitas vezes surge. As pausas, deliberadas, ou pausas do falar diário. O outro a respeitar aqui é a língua. A língua é de todos. Trabalhá-la em parte. Mas também deixar ser o que antes era e é.

11. Hipótese sobre o Acaia. Se há uma mesma poética em toda a obra de Elisa Bracher, se o respeito ao outro está no seu cerne, se ele se mostra pelo equilíbrio entre mudar e manter o que já é, talvez isso ajude a compreender, também, a pedagogia do seu trabalho de ensino para crianças e jovens pobres de São Paulo sem que os retire de onde vivem, ensino que se dá próximo de onde moram, que procura mudá-los, cultivá-los, reposicioná-los, mas justo para que não deixem de ser quem são: outros singulares. Como todos, todos outros, somos.

 

 

1 Este texto foi escrito na ocasião da exposição "Ponto final sem pausas" no mam, Rio de Janeiro, 2011.