Services on Demand
article
Indicators
Share
Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo June 2013
MANIFESTAÇÕES
Manifestações de junho - um breve balanço
June demonstrations: a brief balance
Manifestaciones de Junio - un breve balance
Marcelo Coelho
Sociólogo e colunista da Folha de S. Paulo
RESUMO
Em junho de 2013 manifestações populares de grande envergadura aconteceram nas principais cidades brasileiras. O fenômeno gerou perplexidade no início, dados os altos índices de aprovação popular ao governo federal. A variedade de revindicações e demandas expressas naqueles movimentos sugere a existência de uma crise de representatividade no sistema político, aliadas a fatores conjunturais que este artigo procura brevemente analisar.
Palavras-chave: mobilizações urbanas, manifestações de junho, crise de representatividade, poder político, internet.
ABSTRACT
In June 2013, large-scale popular demonstrations took place in major Brazilian cities. At first, the phenomenon generated perplexity considering the high level of popular approval of the federal government. The diversity of claims and demands expressed in those movements suggest the existence of a political representation crisis coupled with situational factors that this article seeks to briefly examine.
Keywords: public demonstrations, June protests, crisis of representation, political power, internet
RESUMEN
Durante el mes de Junio de 2013, hubo manifestaciones populares de gran envergadura en las principales ciudades de Brasil. Inicialmente, el fenómeno generó perplejidad, dado el alto índice de aprobación popular del gobierno federal. La variedad de reivindicaciones y demandas expresadas en esos movimientos sugiere la existencia de una crisis de representación política junto a factores coyunturales que este artículo intenta analizar brevemente.
Palabras clave: mobilizaciones urbanas, manifestaciones de Junio, crisis de representación, poder político, internet
"Afinal, o que querem os manifestantes?". A pergunta, cujo eco freudiano deixo à interpretação do leitor, repetiu-se durante as mobilizações urbanas do último mês de junho, e logo foi acompanhada de uma constatação no mesmo tom: "sejamos sinceros, ninguém está entendendo nada".
No começo, era possível concordar com essa afirmação. A partir de um movimento com objetivos bastante definidos, a suspensão do aumento nas tarifas de transporte público, as ruas passaram a ser ocupadas por palavras de ordem as mais variadas, e por pessoas de diferente extração social. Defensores da liberação da maconha e senhoras torcendo pela prisão de José Dirceu desfilaram lado a lado; o remanescente stalinista do pc do b sucedia militantes da causa transexual; era possível ser ao mesmo tempo contra a repressão policial do governo Alckmin, o petismo tecnocratizado de Fernando Haddad e a oposição sectária dos pequenos partidos de extrema esquerda ao mesmo tempo.
O fato de haver tantas causas e bandeiras, e pessoas tão diversas - ainda que a maioria fosse de jovens não abastados - não tornou todavia legítima, pelo menos depois de alguns dias de manifestações repetidas, a opinião de que tudo era incompreensível. Dizer que "ninguém está entendendo nada" é também uma forma de recusar-se a entender alguma coisa, e na pergunta sobre "o que eles querem, afinal?" esconde-se, certamente, menos o desejo de que algo seja conquistado e mais o sentimento de que não há nada a reivindicar ou corrigir.
Durante aqueles dias, sensibilizei-me com a avaliação de alguns intelectuais e comentaristas, como José Arthur Giannotti, por exemplo, que apontavam nos movimentos de massa o sintoma de uma "crise de representação".
Sem dúvida: se uma passeata serve para tantos grupos distintos, e veicula ideias tão variadas, é porque foi vista como ocasião para interpelar governantes e parlamentares sobre tudo o que, no cotidiano político, parecem voluntariamente ignorar, voltados que estão a outros interesses e outra lógica administrativa.
Evidentemente, estava aí a raiz para o fato de que os manifestantes não eram necessariamente "de esquerda" ou "de direita", se entendermos como esquerda tudo o que for próximo a Lula, a Dilma Rousseff, a Fernando Haddad e ao pt, e se entendermos como direita tudo o que for próximo a Geraldo Alckmin, a Fernando Henrique Cardoso, a Andrea Matarazzo ou ao PSDB -para nada falar do deputado evangélico Feliciano, Renan Calheiros ou José Sarney, figuras aliás especialmente destacadas pelos manifestantes.
Esse entendimento da cisão esquerda/direita como equivalente à cisão PT/PSDB constituiu, por certo, passaporte seguro para a conclusão de que "não estamos entendendo nada". A experiência dos anos Lula, entretanto, deveria ter ensinado que esquerdismo e direitismo não coincidiram nunca com a divisão partidária e, não digo ideológica, mas publicística, jornalística, que cindiu as opiniões entre, por exemplo, admiradores da revista "Veja" e seguidores da "Caros Amigos".
O que não quer dizer que "Veja" não seja de direita e "Caros Amigos" de esquerda. Visões de mundo bastante claras se contrapõem ali. O problema é que, quando se traduzem para o mundo da política partidária, tudo se embaralha. Quando o então presidente Lula, por motivos consideráveis, aliou-se a Paulo Maluf, a Fernando Collor, a Renan Calheiros, a José Sarney, a Roberto Jefferson e ao pl de Valdemar da Costa Neto, sem contar os evangélicos de várias legendas, é evidente que a preferência partidária de um eleitor (pelo pt, digamos) não se via refletida no mundo real. E que partidos deixavam, mais do que nunca, de servir como canais (não digo de participação, porque não chegaram a tanto no Brasil) mas de identificação política. Tampouco serviriam, como sempre serviram, como máquinas capazes, em determinadas circunstâncias, de levar pessoas às ruas numa manifestação. Sobraram PSTU, PCO, PSOL, ainda assim minoritários nos acontecimentos de junho.
Nada mais incorreto, desse ponto vista, do que as críticas ao caráter antipartidário, e mais ainda supostamente "fascista" das manifestações. Não há nada de fascista, diga-se de passagem, no fato de alguém ser contra os partidos existentes. O fascismo pode ter todos os defeitos do mundo, mas precisamente se constitui por meio de um partido, endeusado acima da própria sociedade. Por longo tempo, mesmo no Brasil, foi ponto de honra dos movimentos sociais manter uma linha independente de qualquer partido. Formulações radicais do socialismo autogestionário, do anarquismo, do ideal libertário, do feminismo e do pacifismo foram hostis aos partidos existentes e à forma de organização partidária sem por isso serem identificadas com o fascismo.
No fundo, muitas das bandeiras e do ímpeto presente nas mobilizações de junho poderiam ter sido perfeitamente encampadas pelo pt de 20 ou 30 anos atrás. Poucas organizações de esquerda apresentavam discurso tão cerrado contra a corrupção quanto o partido de Lula e Genoino durante os governos Sarney, Collor e Fernando Henrique Cardoso. Para nada dizer da simpatia pelo movimento gay, e mais ainda no que diz respeito à revolta contra aumentos de tarifas. Um "petismo sem PT", ao qual não faltavam tintas socialistas e de condenação ao consenso neoliberal, poderia definir, sem muita imprecisão, o espírito da maioria dos manifestantes - cuja extração social, de classe média ampliada e com forte presença estudantil, não diferia daquela de muitos eleitores petistas na primeira década de sua fundação.
A crise de representatividade apontada por Giannotti e outros comentaristas não se restringiu, todavia, à decepção com os partidos. Parece-me claro que, desde as recusas iniciais a reverter o aumento nas tarifas de ônibus, o movimento se voltou não exatamente contra a figura das autoridades que mantinham sua decisão. Foi, principalmente, uma revolta contra o modo de agir, de governar, presente em tantos atos executivos, aqui ou em qualquer outro país. Existe nos prefeitos, governadores, presidentes, uma tendência quase automática, que só não se manifesta no período de propaganda eleitoral. Trata-se de dizer "não". "Não dá", "não é possível". Óbvio que nem tudo é possível. Todavia, o marketing das campanhas sugere habitualmente o contrário: "dá para fazer", "basta vontade política", "vai melhorar".
O apelo ao "princípio da realidade" quando se recusa, por exemplo, a proposta de transporte público mais barato (ou gratuito, no plano utópico dos deflagradores do movimento) sofre, entretanto, não apenas em função dos velamentos publicitários - a que estamos cotidianamente expostos, também fora da política -, mas também porque os "fatos" da administração pública padecem de grande intransparência. Não é algo que se soubesse com clareza quando começaram as manifestações, mas de todo modo os ativistas do Movimento Passe Livre, ainda que radicais em suas reivindicações, não tinham ilusões quanto à racionalidade e à razoabilidade dos acordos firmados entre Prefeitura e empresas de ônibus, por exemplo. O mero ostentar de planilhas de custos, por um prefeito ou governador, carecia de legitimidade - ainda mais quando, diante da pressão popular, terminou-se voltando atrás e aceitando a manutenção do preço das passagens.
Ocorre que não foram apenas planilhas o que se ostentou. Como em qualquer governo democrático, aliás, ostentaram-se também escudos e cassetetes. Essa cisão entre promessas de mudança e realidade econômica, aliada à pura autoridade policial, tem sido a regra em toda cidade, em qualquer país, nas mais diversas circunstâncias. O uso de uma praça para um projeto de interesse imobiliário na Turquia, a imposição de medidas econômicas de austeridade depois de promessas de emprego e crescimento, na Grécia ou na Espanha: multiplicam-se, e estopins não faltam, os sinais de uma crise de legitimidade profunda nos sistemas democráticos. Primeiro, porque mesmo ao cidadão mais iludido parece claro que a mudança do governo A para o governo B pouca influência pode ter diante das pressões da economia global. Um fechamento das alternativas no plano macroeconômico naturalmente possibilita, ainda que de modo ocasional, que pequenas decisões cotidianas (a derrubada de um edifício histórico, o fechamento de determinado posto de saúde) possam servir para a canalização de insatisfações difusas.
Durante os anos mais duros da crise econômica nos países em desenvolvimento, esse hábito ou necessidade governamental de "dizer não" esteve de tal modo incorporado à vida dos cidadãos, a começar dos próprios salários, que talvez a indignação ou o protesto não encontrassem incentivo suficiente do ponto de vista subjetivo, anímico.
Em especial nos últimos anos do governo Lula, contudo, a sensação de maior flexibilidade, de maior largueza nas concessões do Estado frente a demandas sociais, e também de menor austeridade no modo com que as próprias pessoas de classe baixa e média geriam suas contas domésticas. O acesso a bens de consumo não apenas elevou larga parcela da população para o limiar da classe média; trouxe um aumento de auto-estima, a que se somaram as facilidades no acesso ao ensino superior e, sem dúvida, a própria sensação de que se afastavam as perspectivas de fracasso histórico que tanto pesaram sobre o país nos anos da recessão.
Esse aquecimento das expectativas, dentro do qual as obras da Copa do Mundo se incluíam com monumentalidade, veio a confrontar-se com a queda no ritmo do crescimento econômico, no governo Dilma Rousseff. Curiosamente, e o ponto foi assinalado pelo cientista político André Singer em palestra1 sobre as manifestações, a presidente empenhou-se em efetivar um "pacto produtivista", pressionando pela baixa dos juros e pela desoneração fiscal. A retomada do crescimento, nota Singer, não veio; caberia enfatizar, para além de suas considerações, o fato de que os próprios investimentos públicos se travaram durante esses anos, enquanto a inflação deu sinais de acelerar-se.
O tempo do "não" voltou a se impor - exceção feita, naturalmente, aos financiadores de campanha, bancos e empreiteiras que não fazem distinção partidária. Enquanto isso, a capacidade para ouvir "não" estava muito diminuída. A própria internet, tão importante na organização dos movimentos, age no sentido do imediatismo, da resposta instantânea ao que teclamos. Mas o principal é que, uma vez esgotado o ciclo de aquisição dos bens básicos de consumo, os serviços de transporte, saúde, educação, surgiram mais do que nunca com as deficiências de sempre. O cidadão-consumidor, sem recursos ainda para morar perto do local de trabalho ou de estudo, sem sobras para matricular os filhos na escola particular, muitas vezes sem convênio privado para atendimento médico, viu sua condição de "classe média" limitada por tudo o que ainda faz dele um membro da "classe popular": o transporte público em especial.
Nesse sentido, ainda que faltem dados estatísticos a respeito, é natural que a esquerda petista tenha reconhecido, nas manifestações, componentes de "direita". Houve uma corrida para atribuir a responsabilidade dos movimentos a um grupo de classe média tradicional, privilegiado, em geral eleitor do psdb. Sem tanta crueza, a análise de classes feita por André Singer indicava que a política "antiprodutivista", com altos juros - tais como estabelecidos tanto por Fernando Henrique quanto por Lula - não beneficiava apenas os detentores do capital financeiro. Uma base populacional grande o bastante para ter atuação na política de massas beneficiava-se da renda financeira de suas aplicações, e do real valorizado nas suas viagens e compras no exterior. Ao mesmo tempo, argumenta Singer, os maiores beneficiários do "lulismo", vastos contingentes pobres no interior do país, pertencem a um "subproletariado" distante dos cenários urbanos da luta sindical.
Faltaria falar de outro beneficiário desses anos de prosperidade, a classe dos produtores rurais, os milionários da agroexportação. Seja como for, é inegável que o ambiente urbano estava mais dividido, politicamente, do que o rural, em seu apoio a Lula.
Seria apenas essa classe média tradicional, ameaçada pela ascensão dos pobres e pela queda nos juros, o terreno da oposição a Lula? Em boa parte, sim. Mas não seria essa classe média o principal componente de manifestações em que a corrupção era, sem dúvida, um dos temas mais presentes; o preço dos ônibus ou a repressão policial, as reclamações por melhores serviços de saúde e educação tinham um componente popular muito mais marcado. Também a crítica tradicional ao "estatismo" da esquerda, a seu intervencionismo etc., não têm por que se restringirem a parcelas mais privilegiadas da população. É o micro-empreendedor, o trabalhador autônomo, a trabalhadora em serviços de enfermagem, a quituteira ou o revendedor de roupas quem reclama, tanto quanto o grande empresário, da alta carga tributária - e da corrupção.
Mais um aspecto: a repressão policial, nos dias de hoje, não mais se restringe a um tema caro aos antigos participantes das manifestações pelo fim da ditadura. O jovem negro da periferia, já estudante universitário e dispondo de algum bem de consumo, vê-se ameaçado corriqueiramente pela abordagem das forças policiais; o protesto, no caso, tinha também o sentido de ajuste de contas, por vezes violento, e não apenas o da reivindicação de determinadas melhorias nos serviços públicos.
Vemos assim uma crise mais ampla de representação política, ao lado de uma conjuntura desfavorável na economia urbana. Para quem viveu situações econômicas infinitamente mais dramáticas do que a dos últimos anos, talvez pareça pouco o temporário travamento no pib ou a moderada aceleração nos preços. Mas a turbulência que se produziu, não que tenha apenas essas causas, é mostra de que o país vinha mesmo mudando.
O quanto irá prosseguir essa mobilização, e que frutos mais permanentes podem surgir daí, é certamente uma incógnita. Seus aspectos imediatos, econômicos, locais, podem determinar alguma acomodação. Como toda festa, em que o prazer de estar com mais pessoas, de ver e de ser visto é fundamental, os movimentos de junho não poderiam durar para sempre. Todavia, a crise mais ampla, que atinge todas as democracias, também expostas a escândalos de corrupção e a mudanças puramente cosméticas na cúpula do poder, irá prolongar-se, a meu ver, enquanto novas formas de representação e deliberação popular não vierem a se consolidar. Não será nos próximos dez ou quinze anos, mas tendo a considerar possível um aperfeiçoamento das iniciativas de legislação e controle popular por meio das redes da internet. Já começa a parecer estranho, a mim pelo menos, que eu possa comprar produtos com cartão de crédito, mandar documentos escaneados pelo email, fazer a declaração de Imposto de Renda pelo computador, e ainda assim tenha de comparecer pessoalmente a uma urna no dia da eleição. O próprio princípio da representação parlamentar, com sua história de séculos, é remanescente de dificuldades de comunicação e discussão a distância que hoje desapareceram. Evidentemente, a internet não é resposta para tudo; uma das vitórias dos ativistas de junho terá sido, com efeito, sair do mundo virtual para o encontro face a face - com tudo o que representa de surpresa e de reconhecimento. O anonimato, a falta de surpresa, e a incapacidade de reconhecimento fazem parte, na verdade, do mundo do poder político, tal como é exercido hoje em dia - e isso, cedo ou tarde, terá de mudar.
Recebido em: 18/6/2013
Aceito em: 25/6/2013
Marcelo Coelho. coelhofsp@uol.com.br
1 Palestra de André Singer: http://escola.dieese.org.br/escola/events/videos-conferencia-andre-singer.