Services on Demand
article
Indicators
Share
Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.47 no.86 São Paulo June 2014
AULA INAUGURAL DO INSTITUTO DE PSICANÁLISE
Níveis clínicos de captação da organização emocional: lógico, psico-lógico e meta-psico-lógico1
Clinical levels of apprehension of the emotional organisation: logical, psycho-logical, meta-psycho-logical
Niveles clínicos de captación de la organización emocional: lógico, psico-lógico e meta-psico-lógico
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP
RESUMO
Este trabalho procura considerar as implicações clínicas de duas premissas: que a metapsicologia é o coração da psicanálise e que qualquer experiência humana possuirá sempre três dimensões - a lógica, a psico-lógica e a meta-psico-lógica. Após uma breve exposição prática a respeito de cada um desses níveis, um caso clínico é apresentado, em que se tenta demonstrar a interrelação dos três níveis. A meta-psico-logia é conceituada segundo, uma visão pessoal do autor, como "o conjunto dos esforços econômicos empreendidos pelo psiquismo para representar a experiência emocional através de uma artimanha estética, causadora de espanto e/ou admiração".
Palavras-chave: lógico, psico-lógico, meta-psico-lógico
ABSTRACT
This paper considers the clinical implications of two premises: that Metapsychology is the heart of psychoanalysis, and that any human experience will always have three dimensions - the logical, the psycho-logical and the metapsycho-logical. After a brief practical exposition concerned with each one of these levels, a clinical case is introduced, where the interplay of these levels is depicted. Meta-psycho-logy is conceptualised following a personal vision by the author as "the ensemble of economic efforts held by the psychic to represent emotional experiences through an aesthetic trick, engendering awe and/or astonishment".
Keywords: logical, psycho-logical, meta-psycho-logical
RESUMEN
Este trabajo busca considerar las implicaciones clínicas de dos premisas: que la metapsicología es el corazón del psicoanálisis y que cualquier experiencia humana siempre tendrá tres dimensiones - la lógica, la psico-lógica y la meta-psico-lógica. Después de una breve exposición práctica respecto de cada uno de estos niveles, se presenta un caso clínico donde se intenta demonstrar la interacción entre los tres niveles. La meta-psico-logia es conceptualizada según una visión personal del autor como "la suma de los esfuerzos económicos empleados por el psiquismo para representar la experiencia emocional mediante una artimaña estética, generadora de espanto y/o admiración".
Palabras clave: lógico, psico-lógico, meta-psico-lógico
Nosso encontro de hoje não é só uma abertura formal de um ano de trabalho, mas se propõe também festejar a entrada de novos colegas em nossa Instituição. Refletindo sobre isto, senti que, no fundo, estamos diante de uma espécie de rito de passagem, ou quem sabe mesmo de um "rito de continuidade". No entanto, não podemos esquecer que a psicanálise, a quem a Instituição pretende preservar e expandir, é fruto da contribuição continuada de muitas pessoas que nos antecederam. Proponho, portanto, que dediquemos nosso encontro a nossos antecessores, pois, sem eles, não estaríamos aqui.
Por antecessores quero me referir a poètes penseurs como Heráclito, para quem "A morte são todas as coisas que vemos acordados; quando adormecidos, só vemos o sono". Ou então a Platão, que no "Teeteto" nos oferece uma entusiástica exortação ao "des-conhecimento", aquilo que Keats viria a chamar de "capacidade negativa". Ou a Shakespeare e sua incrível sensibilidade para explorar as dobras da alma humana, garantindo-lhe, na visão de muitos, o título de primeiro psicanalista. Ou a Leibniz, que já no século XVII nos ofereceu a primeira formulação clara de uma vida mental inconsciente, ao propor a existência de percepções abaixo de um dado limiar perceptivo. Ou mesmo a Herbart, agora no século XVIII, que imaginou esse limiar como uma superfície onde se travaria uma batalha entre percepções fortes e fracas, de modo que estas últimas seriam empurradas abaixo do limiar: essas representações reprimidas, ao tentarem reemergir, associar-se-iam com outras representações.
Por último, naturalmente, temos que pensar em Freud e no formidável séquito de psicanalistas que o sucedeu, deixando aqui uma menção carinhosa e agradecida aos inúmeros colegas de nossa própria Sociedade, cuja ausência só podemos enxergar por "estarmos acordados", como diria Heráclito.
Consideremos dois princípios fundamentais: que a metapsicologia é o coração da psicanálise e que qualquer experiência humana possui uma dimensão meta-psico-lógica.
Proponhamos duas definições:
Que a metapsicologia seria o conjunto de esforços econômicos empreendidos pelo psiquismo para representar a experiência emocional através de uma artimanha estética,2 causadora de espanto e/ou admiração.
Qualquer experiência humana possuirá sempre três dimensões: a lógica, a psico-lógica e a meta-psico-lógica.3
Admitamos a tese de que os artigos de Freud Das Unheimliche, publicado em 1919, e "A sagacidade e sua relação com o inconsciente", de 1905, representem seu "manifesto metapsicológico" por excelência, por circundarem a enunciação descritiva dos princípios meta-psico-lógicos e por articularem claramente a economia psíquica com o estranhamento estético. (Flávio Kothe, professor de Teoria Literária, lembra-nos, ao prefaciar uma coletânea de aforismos de Nietzsche, que a ironia é o modo de dizer algo pelo avesso, sem que o literalmente dito fique eliminado como mero passaporte, ou seja, quando retrabalhamos a forma estamos automaticamente reformulando o conteúdo.) Aqui, poder-se-ia dizer, a psicanálise inscreve-se na modernidade, fazendo coro com Nietzsche e com as vanguardas artísticas que, em suas ânsias expressivas, exploraram as sínteses, as fragmentações, as transposições, a visualidade, a velocidade, enfim, tudo aquilo que é também da essência do lúdico.
A vida emocional, é sempre bom lembrarmos, sendo uma dimensão da natureza humana, constitui um fenômeno natural que segue seu curso à revelia de qualquer conhecimento extrínseco à sua essencialidade. Como seres humanos, somos aquinhoados, então, com a dupla oportunidade, tanto de viver esta vida como sujeitos, quanto de observá-la como objeto.
A psicanálise, como sabemos, ao se estabelecer como método de investigação do psiquismo, abrigou ambas as oportunidades sob o mesmo teto, credenciando o psicanalista a alçar-se à condição de observador, exatamente por manter-se em contato permanente com a vida emocional da dupla analítica. É esta, portanto, a essência da clínica.
O ser humano, no entanto, não podia ficar aguardando impunemente o surgimento da clínica psicanalítica. Assim sendo, muito antes do advento da psicanálise, ele se viu obrigado a forjar um método para enfrentar a realidade externa a partir de sua realidade interna: nesse sentido, sua situação era parecida com a de Freud, que precisou forjar a psicanálise quando se deu conta que não possuía um método confiável para gerir esse enfrentamento. E que método, basicamente, o ser humano (ou Freud, seu representante) utilizou? O de ficcionalizar a realidade durante alguns encontros programados ou fortuitos, ou seja, transformando-a numa espécie de simulação, para depois voltar a ela com uma visão ampliada. Isto possivelmente já ocorria na relação entre dois caçadores-coletores, na relação entre pais e filhos, professor e aluno e assim por diante.
Para viabilizar isto, o ser humano imagina-se inicialmente como um dramaturgo que precisa transformar o enfrentamento do seu Eu com a realidade da vida num enredo, ou seja, montar uma espécie de "equação emocional" que lhe permita visualizar sucintamente o desafio que o aguarda.4 A seguir, é preciso encenar a trama proposta, liberando-se como ator. Finalmente, para completar o processo, é preciso oferecer-se como um espectador privilegiado a quem, inclusive, caberá a palavra crítica de avaliar o sucesso ou fracasso da operação. Sublinhemos que, por enquanto, o Eu estaria acumulando as funções de dramaturgo, ator e espectador nessa complexa operação de ficcionalizar ou de sonhar a realidade; não esqueçamos que, o espectador, entre outros malabarismos, precisa "suspender sua descrença", como nos ensinou Coleridge.
Como resultado desse arranjo, a organização emocional do ser humano acaba englobando elementos característicos de cada uma destas três funções: o dramaturgo, para formular sua equação emocional, opera num nível lógico; o ator, para encenar a tensão dramática, opera num nível psico-lógico; e o espectador, como sonhador final da realidade, opera num nível meta-psico-lógico. No nível lógico, o que se busca é coerência; no nível psico-lógico, o que se busca é compreensão; e no nível meta-psico-lógico "somos buscados" ou "visitados", por assim dizer, por um enigma emocional.
Uma vez credenciado como um observador qualificado, compete ao psicanalista mergulhar na clínica em busca do aprendizado que o ensine o que observar e como observar. Sendo dedicado e possuidor de algum talento, ele logo descobrirá que a observação diligente e desinteressada o colocará diante de certos padrões de fenômenos, como já preconizado por Charcot, que aguçarão a sua curiosidade e, por isso mesmo, a sua intuição.
Mas qual intuição? No caso do psicanalista, por definição a intuição meta-psico-lógica, aquela que nos permite circunscrever o setor meta-psico-lógico da vida emocional, captar o seu nível de organização e, quando possível, comunicá-lo ao analisando.
A circunscrição do setor meta-psico-lógico, no entanto, é tão árdua quanto a garimpagem de uma pedra preciosa, sendo fruto do embate entre a competência farejadora do analista e a complexidade do solo psíquico do analisando, sempre pronto a dissimular a presença da meta-psico-logicidade essencial em meio a um profuso aglomerado de logicidades e psico-logicidades acessórias. É fundamental, porém, entendermos que, no caso do funcionamento psíquico, os elementos acessórios merecem toda nossa atenção e respeito, pois, sem conhecê-los profundamente, nossa investigação estará fadada ao fracasso.
Pensadores sensíveis como Wittgenstein intuem isto com simplicidade, como expresso, por exemplo, nas suas proposições 286 e 287 de suas Investigações filosóficas:
- 286. Mas não é um absurdo dizer de um corpo que ele sente dor? E por que se vê nisso um absurdo? Até que ponto não é a minha mão que sente dor, e sim eu na minha mão?
Que controvérsia é essa: é o corpo que sente dor? Como decidi-la? Como se faz para que não seja o corpo a sentir dor? Mais ou menos da seguinte maneira: quando alguém sente dor na mão, não é a mão que o diz (a não ser que ela escreva), e não se consola a mão, e sim a pessoa que está sofrendo: olha-se nos olhos da pessoa.
- 287. De que modo sou tomado de compaixão por esta pessoa? Como é que se mostra qual o objeto da compaixão? (Poder-se-ia dizer que a compaixão é uma maneira de se convencer de que o outro sente dor). (Wittgenstein, 1994, p. 135)
Acho que, neste fragmento, podemos acompanhar com clareza o entrelaçamento entre os níveis lógico, psico-lógico e meta-psico-lógico.
No nível lógico de organização emocional, todas as esperanças estão concentradas na construção de uma cadeia sincrônica de causalidade. Esse construto, como é facilmente perceptível, seduz mediante a oferta do mapeamento seguro das causas em função da análise cuidadosa dos efeitos. Sua utilização na clínica é ampla e insidiosa, já que disfarçada atrás de práticas corriqueiras, como a feitura de perguntas, a instalação de um diálogo, o relato de histórias, a solicitação de opiniões, a interpelação geradora de justificativas ou a argumentação explícita. Um efeito implícito desse nível é submeter o interlocutor a uma espécie de força gravitacional que, sob a falsa justificativa de mantê-lo com os pés no chão, visa, de fato, nocautear sua sensibilidade, fazendo-a beijar a lona, como se diz no boxe; ou seja, enredá-lo num posicionamento rasteiro que o impeça de sonhar e, em última análise, de pensar.
A aparente obtenção de conclusões, ansiosamente buscadas, satura o campo para o prosseguimento da investigação, instalando, assim, um quadro de esterilidade que justifica a "boutade" de Blanchot ao considerar a resposta como a desgraça da indagação; mas, é forçoso reconhecer, sacia o apetite de certas personalidades que só conseguem ir embora para casa sossegadas se tiverem a sensação, como me disse uma vez um analisando, de terem podido "fechar o caixa" da jornada de lucro psicanalítico.5
A dramaticidade envolvida na transformação do "princípio do prazer" em "princípio de realidade" pode ser entendida como uma espécie de imposto filogenético a ser permanentemente cobrado em termos ontogenéticos; ou seja, não se troca impunemente prazer por realidade; é preciso encontrar um antídoto, a racionalidade, ou se preferirmos a logicidade, que domestique as pulsões. Mas, não podemos esquecer, o risco iatrogênico ronda essa manobra, podendo significar que a "cura" pode acabar sendo pior que a doença: a clínica está diariamente nos mostrando o quanto o apego desenfreado à racionalidade sufoca e esteriliza a emocionalidade. Uma última observação, com status de ironia histórica, se impõe. O termo psicoanálise soa, por esse motivo, particularmente infeliz. Advindo, provavelmente, do entusiasmo passageiro de Freud pela psico-física helmholtziana, esse rótulo acaba privilegiando o viés analítico numa atividade que é essencialmente transformadora e "poiética".
No nível lógico, a busca por causa e efeito não está a serviço dessa atividade "poiética", mas, sim, da demonstração do já sabido ou, então, do desejado.
Nesse particular, o próximo termo a nos interessar parece ter sido mais bem-sucedido, já que a psico-lógica, ao nos alertar para a existência de uma "lógica" psíquica, acaba de fato nos obrigando a reconhecer que estamos diante de um campo novo, com estrutura e regras de funcionamento próprias. Passemos, então, ao nível psico-lógico.
A questão que nos interessa aqui não está ligada à ciência psicológica em si, mas, sim, à circunstância da inserção do nível organizacional psico-lógico no campo psicanalítico. Enquanto no nível lógico nossa intimidade sofre a imposição de uma disciplina militar travestida de eficiência,6 no nível psico-lógico estamos vulneráveis a uma aparente normalidade por nutrirmos a ilusão de sermos os autores incontestes de nossas ações e reações. A quantificação estatística que consubstancia toda testagem é somente uma das heranças do nível lógico presente no registro de batismo da ciência psicológica. A organização psico-lógica, porém, deve ter estado presente desde o primeiro instante do surgimento da humanidade através dos mecanismos da projeção e da introjeção, da rejeição do desagradável ou nocivo e do acolhimento do agradável ou benéfico, possuindo, assim, origens de venerável respeitabilidade.
De nossa parte, como psicoterapeutas ou psicanalistas, precisamos estar sempre atentos ao nosso grau de saciedade. Para entenderem a que estou me referindo, recorrerei a uma foto publicada na imprensa de um homem que invadiu a jaula de um leão num zoológico, tendo em vista transmitir à fera suas convicções religiosas: segundo os funcionários que conseguiram resgatá-lo com vida, isto só foi possível porque o leão havia acabado de ser alimentado. É preciso, portanto, que estejamos cônscios a respeito de nosso alimento, que saibamos o que ingerir e o que rejeitar, o que ainda está cru e o que já está cozido, que possamos diferenciar o prato principal do tira-gosto, a mera guloseima da alimentação balanceada.
Essa avaliação, no entanto, é pessoal e intransferível, obrigando-nos a exercer uma permanente autocrítica ao longo de nossa formação, de modo a irmos conhecendo aquilo que nos sacia, mas também, e principalmente, detectando a insaciedade que será a mola propulsora de nosso desenvolvimento profissional. O mesmo se aplica à experiência clínica.
É evidente que a alimentação do paciente é tão importante quanto a alimentação do terapeuta ou do analista: é evidente também que a pessoa que nos procura tem as suas próprias preferências alimentares, nem sempre atendidas pelo cardápio que temos a oferecer-lhe. Creio, portanto, grosso modo, que poderíamos entender o nível psico-lógico como uma espécie de organização tri-dimensional, que amplia a rigidez bi-dimensional do nível lógico, mas que está aquém da complexidade pluri-dimensional do nível meta-psico-lógico, que só pode ser apreendida mediante uma abordagem polivalente que Bion denominou de "interpretação-construção".
Chegamos, assim, ao nível intrínseco ao vértice psicanalítico, o meta-psico-lógico. É nesse nível que adquirem uma importância especial conceitos hoje bastante difundidos, como os de repressão, negação, cisão, identificação projetiva, transicionalidade, forclusão, visão binocular e assim por diante.
Eu assinalaria, preliminarmente, que neste nível de organização a motivação básica é sempre de ordem econômica, quer dizer, o psiquismo se expande, se contrai ou se estabiliza, visando um aproveitamento ótimo da energia psíquica. Em função dessa característica, o perfil de seu funcionamento será necessariamente diacrônico, o resultado de suas operações, performático, as mudanças significativas serão de ordem qualitativa e a perspectiva binária será fundamental na composição de suas realidades de face dupla. Como estamos vendo, a atmosfera nesse cenário é sempre de estranhamento estético.
Um modelo interessante para representar a complexidade desse nível se-ria o Anel de Möebius, em que nos deparamos com uma condição paradoxal, como ilustrado na gravura de Escher tão difundida, onde a formiga que está entrando se confunde misteriosamente com a formiga que está saindo. A eficácia desse modelo está lastreada no fato de que ele expressa o dinamismo entre interiorização e exteriorização, um avanço em relação ao modelo da vesícula protoplasmática usado por Freud para representar, estaticamente, o interior e o exterior do aparelho psíquico.
Etimologicamente, a metapsicologia seria a psicologia da psicologia, ou mesmo uma ultra-psicologia, mas por ser mais operativo, agrada-me encará-la como a ousada atividade de pensarmos sobre o nosso próprio pensar. Essa condição nos impõe o paradoxo de sermos, ao mesmo tempo, sujeito observador e objeto observado. Mas isto, poder-se-ia argumentar, não se resume à velha introspecção dos filósofos? Certamente que não, se considerarmos que para a psicanálise a vida emocional implica necessariamente a existência de pelo menos duas personalidades, o mesmo se aplicando então à investigação sobre o pensar.
Na transformação meta-psico-lógica, o elemento operativo é uma distorção perceptiva que visa ressaltar o irrelevante para que a atenção não se fixe no relevante: é o mesmo recurso usado na prestidigitação do mágico para enganar o espectador. É por isso que na visão acurada, mesmo que debochada, de Millôr Fernandes, o psicanalista seria uma espécie de mágico que buscaria extrair cartolas de coelhos.
É interessante, aqui, estabelecermos uma breve comparação entre a transformação meta-psico-lógica e a transformação artística. Segundo Adrian Stokes, um esteta e artista inglês que foi analisado por Melanie Klein, a transformação artística emprega truques alusivos, sob a égide de alguma forma definidora, amplificando uma síntese de significados através da inserção de sobretons e subtons: nesse sentido, a obra de arte seria um processo que multiplica o significado com a maior economia, já que está atrelada a um meio limitador e definitivo. Em resumo: a meta-psico-logia acompanharia as metamorfoses de significado, e a arte o ampliaria ou sintetizaria.
O instrumento passível de apreender esse tipo de organização meta-psico-lógica seria, então, de ordem "conflitológica" ou, para criarmos um neologismo ainda mais expressivo, de ordem "enigmatológica", já que, no cenário meta-psico-lógico, as contradições existem para serem sofridas e não para serem desfeitas: só mergulhando na dor psíquica é que encontraremos a bússola que nos norteará na apreensão da configuração emocional presente. Oscar Wilde já nos alertava que, para testarmos a verdade, precisamos vê-la na corda bamba: por isso, o caminho dos paradoxos seria o caminho da verdade. Voltemo-nos, então, para a clínica, onde isto é vivido.
A analisanda, logo ao chegar, faz questão de me informar sobre as boas perspectivas para o fim de semana com o marido (ele estava com uma doença terminal e, na sessão anterior, ela literalmente pranteara o sombrio da situação). Sinto que ela estava me comunicando qual deveria ser o "tom" de nossa sessão: "aproveitar este raro momento de distensão, garantir a presença de uma atmosfera emocional menos pessimista, conseguir uma sessão mais leve".
Ao me deparar com a palavra "tom", percebo que seria oportuno comunicar-lhe essa minha impressão (em realidade, essa minha experiência emocional), valendo-me da imagem visual e sonora de um diapasão sendo percutido em nossa "sala de música" para dar-nos um rumo à melodia da sessão. Noto em mim uma pequena hesitação até encontrar a palavra diapasão, mas, tão logo isso ocorreu, verbalizei a minha impressão, que foi afavelmente acolhida pela paciente.
Ela comenta sobre alguns programas que já estavam sendo engatilhados para o fim de semana e, novamente, faz questão de ressaltar uma sugestão que seu marido dera para solucionar um problema doméstico, deixando-me a sensação de que o reconhecimento deste fato era parte da cota de otimismo que ela procurava me transmitir.7 Explica que todos os dias de manhã ela acaba tendo altercações com o filho de 20 anos, que demora para acordar, tomar banho, se arrumar etc. O marido sugerira que ela usasse um timer comprado há cerca de 20 anos (e que até então permanecera inativo numa gaveta), para controlar o tempo do rapaz: ela, então, programou a máquina para 15 minutos, estipulando ser este o tempo que o mesmo dispunha para tomar banho e se arrumar. Seu entusiasmo era consequência do sucesso da operação. É importante ressaltar que, em certo momento do relato, foi assinalado que essas brigas vinham se prolongando a tempo, sugerindo que o conflito entre pais e filho se instalou logo após o seu nascimento.
Esse comentário despertou em mim muitas associações e conjecturas, mas, antes de mencioná-las, devo informar que a teoria que essa pessoa tinha para ter buscado a análise é que estaria procurando "conforto e solidariedade a seu sofrimento de poder perder a pessoa amada". Percebi, no entanto, que o sofrimento maior estava em seu esforço desesperado de tentar "chamar para si" a redução do tempo de vida que ameaçava o marido: isto foi possível intuir, em função do modo obstinado com o qual ela se declarara "sem tempo para entrar num processo de análise".8
Ao interpretar-lhe esse seu gesto sacrificial (o de querer assumir o escasso tempo de vida do marido), veio-lhe à tona como uma espécie de gêiser a informação de que ela "nascera muito atrasada" (cerca de 20 anos depois do irmão mais velho)9 e, portanto, sempre se sentiu assolada pela angústia de "estar sem tempo".
Levando-se em conta que 20 anos é o tempo aproximado de uma geração, e que gerar um filho constitui a mais eficaz defesa bio-psicológica que o ser humano possui para lidar com a inevitabilidade da própria morte, pude lhe sugerir que a "solução mágica" que o marido arranjara para harmonizar o conflito entre ela e o filho expressava sua pré-moção10 (agora confirmada pela própria doença) a respeito da "escassez de tempo".
É claro que os 15 minutos para tomar banho, impingidos ao filho, refletiam uma angústia da mãe, pois, afinal de contas, cada pessoa é que pode encontrar condições pessoais para exercer suas funções fisiológicas básicas.11
De qualquer modo, pareceu-me um avanço que ela tivesse feito a ouverture da sessão valendo-se de um elemento qualitativo (o tom otimista, que eu associei ao diapasão) e não quantitativo (algo, por exemplo, ligado ao ritmo que, no ambiente musical, poderia ser ditado por um metrônomo). Ao expor-lhe esse sentimento, ela conta que, ao ouvir a menção ao diapasão, num primeiro momento confundiu-o com o metrônomo, demonstrando assim cabalmente que sua angústia meta-psicológica central prevalecera sobre o meu otimismo.
Aproveitaremos, então, esse rico material clínico para aprender algo da interação entre os níveis lógico, psico-lógico e meta-psico-lógico da organização mental.
Seria lógico que a analisanda, inundada por angústias de perda face à gravidade da doença do parceiro, chegasse à análise entretendo a teoria de que, como estava há algum tempo empenhada em cuidar dele, chegara o momento de encontrar alguém para cuidar dela. Sua iniciativa de entrar na internet em busca de dados técnicos sobre a doença do marido, principalmente em termos prognósticos, também soou como uma atitude lógica, lastreada na expectativa de diminuir seu desamparo através da aquisição de informações especializadas. O mesmo se aplicaria à sua atitude de buscar a empatia de um "companheiro de infortúnio", mandando um e-mail para um habitante da web que perdera a esposa com a mesma doença. O próprio estado de espírito com que ela chega à sessão parecia apoiado na "psicologia do alívio". Observamos aqui, claramente, uma prevalência do nível psico-lógico; entretanto, precisamos admitir a existência de áreas de superposição com o nível lógico: o mais importante, porém, é que a partir desses enunciados não reconhecemos nenhum elemento meta-psico-lógico.
Sua consternação geral possui, evidentemente, uma matriz psico-lógica cuja raiz básica é a ameaça de perder um objeto amado: o clima emocional consequente envolve desalento, depressão, desconforto com a encenação de um falso otimismo e muita solidão. Na espera do amparo psico-lógico, ela se mostrava particularmente sensível à angústia do marido por nã o poder locomover-se por conta própria, e à introspecção do filho que se recusava a conversar sobre a tempestade que se abatera sobre a família. Nessa espera, vale a pena também assinalar a instalação de "ilusões psico-lógicas" como, por exemplo, a expectativa de que "a pessoa que perdeu o marido com a mesma doença sabe o que eu estou sentindo". 12
Do ponto de vista meta-psico-lógico, a analisanda chegou à sessão disposta a curtir seus "cinco minutos de tranquilidade", mas, no fundo, é provável que soubesse que não é algo que se possa conseguir baixando um decreto. Transferencialmente, porém, seu desejo parece ter sido inalado por mim, a julgar-se pela visão otimista de que ela pudesse estar ditando um tom suave para nosso encontro. A perspectiva de poder ter um fim de semana mais tranquilo pareceu ter sido tomada por ela como uma nesga de céu azul no meio da tempestade que ela, esperançosamente, teria querido compartilhar comigo.
O que a evolução da sessão demonstrou com clareza é que, por mais que os mecanismos lógicos e psico-lógicos sejam mobilizados para tentar "proteger" o sujeito de suas vivências meta-psico-lógicas profundas, a interação natural com outra personalidade (ou se preferirmos a instalação de um campo transferencial), inevitavelmente a colocou em contato com elas. No caso em questão, pôde-se perceber a posteriori que as angústias de ordem temporal estavam presentes desde o começo da sessão, que a analisanda chegou "de timer em punho" numa tentativa desesperada de prolongar o máximo possível a brisa benfazeja de otimismo, que finalmente soprara a seu favor.
É possível que a "hesitação" que eu apresentei ao rastrear a imagem apropriada à situação (o surgimento em mim do metrônomo antes do diapasão) pudesse estar expressando meu reconhecimento do quão difícil é ao ser humano isolar-se do "lençol freático" da sua vida psíquica, ou então, mais especificamente, que ela fosse a pré-moção da "confusão" que a analisanda veio sentir entre diapasão e metrônomo, ou seja, da defesa que ela elaborara para se proteger da angústia temporal.
Acredito que o surgimento da imagem do diapasão foi o primeiro indício meta-psico-lógico de nosso encontro, por condensar com economia e estética a caracterização de um objeto gerador de harmonia que, no entanto, estava só mascarando a presença de outro objeto gerador de sofrimento, o timer implacável que assinala parcimoniosamente o esgotamento da vida.
Para terminar, algumas palavras sobre a conjunção entre estética e economia psíquica. Vários psicanalistas, entre os quais eu me incluo, concordam que a interpretação psicanalítica ideal seria como um haicai, ou seja, um construto que transmite um máximo de significados com um mínimo de enunciados. Para minha surpresa (e satisfação), ao investigar o significado da palavra, descobri que hai quer dizer brincadeira ou gracejo, enquanto que cai representa harmonia.
No fundo, todos os grandes produtores de frases de efeito, gracejos, máximas, aforismos ou apotegmas sempre fizeram isso com elegância e simplicidade. Se formos ao dicionário, como eu fui, descobriremos que o apotegma é um "dito sentencioso curto", e, em nossa licença poética interior, poderíamos acrescentar: "e grosso". Ora, o convite para que nos debrucemos sobre eles é irresistível, e foi o que fiz: passei alguns dias deliciosos mergulhado nos aforismos de Millôr, Estanislaw Ponte Preta, La Rochefoucaud, Oscar Wilde e Nietzsche, de modo a ampliar o escopo daquilo que já me impressionara em William Blake, Keats, Wittgenstein, Beckett e Bion, entre outros. Um resultado interessante dessa peregrinação foi perceber que o tesouro buscado por todo aforista corresponde perfeitamente à pepita meta-psico-lógica do analista, à qual já me referi, e que os mesmos obstáculos lógicos e psico-lógicos estão interpostos em sua empreitada. Vejamos, então, alguns exemplos.
Em primeiro lugar, algumas formulações que considero meta-psico-lógicas em estado bruto, produtoras de espanto e admiração:
A inveja está à espreita; unicelular; prestes a tornar-se maligna (Bion);
A cisterna contém, a fonte transborda (William Blake, mas Bion assinaria embaixo, através da configuração continente/contido);
Aquele que deseja e não age, engendra a peste (William Blake, mas aqui sem o aval de Bion, quando propõe a restrição de memória e desejo);
Escuto de forma vagalumeante (Keats, na "Ode ao rouxinol");
A Memória e o Hábito são atributos do cronocarcinoma (Beckett, fazendo coro com Bion quanto ao caráter maligno do já conhecido);
Uma criança precisa aprender muito antes de poder dissimular (Wittgenstein);
Um cínico? Um homem que conhece o preço de tudo sem conhecer o valor de nada (Oscar Wilde);
O orgulho não quer dever, o amor-próprio não quer pagar (La Rochefoucaud);
A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude (La Rochefoucaud);
Auscultei o eco: só escutei elogios (Nietzsche);
Também no ódio há ciúmes: queremos ter nosso inimigo só para nós (Nietzsche);
Conviceversa (palavra valise usada por Paulo Leminski, que aglutina metonimicamente conversa + vice-versa);
O sol nasce para todos, a sombra, para quem é mais esperto (Estanislaw Ponte Preta);
Há sujeitos tão inábeis, que sua ausência preenche uma lacuna (Estanislaw Ponte Preta);
Viver é desenhar sem borracha (Millôr);
Simbiose: o ventríloquo dorme e o fantoche ronca (Millôr).
É importante assinalar que essas formulações são minoria: do mesmo modo que na garimpagem psicanalítica, a depuração aqui também é trabalhosa e exige que um grande número de enunciados seja consultado. Uma outra categoria que nos interessa, por outro lado, é aquela que engloba os precipitados de sabedoria, os provérbios e as exortações morais; nesses casos, predominam arcabouços lógicos e/ou psico-lógicos.
Quando La Rochefoucaud sugere que "A astúcia diminui as paixões medíocres e aumenta as grandes, assim como o vento apaga as velas e ateia o fogo", vemos que ele se vale tanto da tensão psico-lógica entre contrários quanto da lógica da analogia.
Assim como quando Nietzsche indaga provocativo: "Vós, amantes do conhecimento! O que fizestes até agora, afinal, por amor ao conhecimento? Já chegastes a roubar e matar para saber qual é o estado de ânimo de um ladrão ou assassino?", ele primeiro desafia psico-logicamente a vaidade de seus interlocutores para, em seguida, oferecer um xeque-mate de logicidade empírica.
Em resumo, o que estou sugerindo é que os três níveis em questão estão entrelaçados na organização emocional, cabendo a nós, psicanalistas, rastrearmos incessantemente o nível meta-psico-lógico, descolando-o de qualquer vão onde ele esteja adormecido ou escondido. Assim, quando Oscar Wilde proclama que "A vida de casado é apenas um hábito... um mau hábito", e que "o verdadeiro inconveniente do casamento é que ele extingue em nós o egoísmo", e quando conclui que "os seres sem egoísmos são incolores por carecerem de personalidade", é preciso não nos deixar seduzir pela crítica crua a uma acomodação burguesa vulgar e resgatarmos a conclusão preciosa de que "os seres sem egoísmos são incolores"; este, sim, um enunciado meta-psicológico puro.
Se em nossa clínica diária conseguirmos preservar esse espírito meta-psico-lógico, estaremos ajudando nossos analisandos a extraírem de si aquelas percepções condensadas que os ajudarão a estar em uníssono consigo mesmos. Acho que foi isso que ocorreu com um analisando que, um belo dia, após anos de intenso trabalho analítico, exclamou: "É isto! Acho que eu sou filosoficamente pessimista e fisiologicamente otimista".
Referências
Ellemberger, H. (1957). The Unconscious Before Freud. Bull. Meninger Clinic, 21,3-15. [ Links ]
Fernandes, M. (2013). Millôr definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre: LPM. [ Links ]
Freud, S. (1955a). Jokes and its Relations to the Unconscious. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (J. Strachey, trad., vol. 8, pp. 3-249). Londres: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1905) [ Links ]
Freud, S. (1955b). The Uncanny. In S. Freud, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud J. Strachey trad., vol. 17, pp. 217-256). Londres: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1919) [ Links ]
Grimberg, L. & Sor, D. Bianchedi E. T. (1974). A "analogia", a "simetria" e a "polivalência" no uso da "Interpretação->Construção". Revista Brasileira de Psicanálise, 8(4),581-588. [ Links ]
La Rochefoucauld, F. (1994). Máximas e reflexões. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Nietzsche, F. (2008). Fragmentos do espólio. Brasília: Univ. de Brasília. [ Links ]
Steiner, G. (2011). The Poetry of Thought: From Hellenism to Celan. Nova York: New Directions. [ Links ]
Wilde, O. (2006). Aforismos ou mensagens eternas. São Paulo: Landy. [ Links ]
Williams, M. H. e Waddell, M. (1991). The Chamber of Maiden Thought. Londres/Nova York: Tavistock/Routledge. [ Links ]
Wittgenstein, L. (1994). Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1958) [ Links ]
Recebido em: 13/3/2014
Aceito em: 18/3/2014
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho mr.junqueira@uol.com.br
1 Aula inaugural do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, proferida em 10/2/2014.
2 A verdade é que nós psicanalistas temos uma tendência a desprezar o estético. Eu me convenci da sua importância quando percebi que a verdade é insuportável para a maior parte das pessoas e, portanto, ela precisa ser servida sempre em doses homeopáticas e com elegância: eis aí a importância do estético.
3 Cabe aqui um crédito inicial a Bion, em quem me inspirei para explorar as entranhas de uma palavra, mediante uma operação de des-construção através de hífens. Um excelente exemplo é quando ele reconstrói a palavra insensible (insensível), através da separação un-sense-able (apto-para-a-não-sensibilidade). Ou então, quando descreve um "Super"-Ego, um objeto que afirma a superioridade moral do não-aprendizado (un-learning) sobre o aprendizado através da experiência.
4 Num de seus aforismos, Nietzsche propõe considerarmos o "Eu" como uma hipótese; tese auxiliar para tornarmos o mundo pensável.
5 É desnecessário dizer que, para essas personalidades, o "negócio" psicanalítico nunca deveria dar prejuízo.
6 Este ponto fica bem ilustrado por uma cena de uma entrevista transmitida na tv com o comandante de uma academia militar. Ele aparecia ao lado de um simulacro de escada de alvenaria com três degraus, onde se lia de cima para baixo:
SIM SENHOR
NÃO SENHOR
QUERO IR EMBORA
Segundo a sua exibição à repórter, este lema condensava de modo varonil a filosofia do lugar.
7 Sugerir uma solução para uma questão familiar era, neste cenário impregnado de morte, uma prova de vida.
8 É interessante notar-se nesta altura que a projeção/introjeção e a identificação projetiva na sua vertente evacuatória são, em geral, recursos psico-lógicos; a identificação introjetiva ou a identificação projetiva na sua vertente comunicativa são sempre meta-psico-lógicos.
9 Notemos que o espaço de 20 anos é um elemento constantemente conjugado da questão, emergindo como um padrão.
10 Segundo este interessante conceito de Bion, uma parte importante da função analítica é a detecção de emoções que ainda se encontram em estado embrionário.
11 Por trás desta "psicologia educacional" podemos vislumbrar uma regressão meta-psico-lógica: retornar aos cuidados com o bebê, retroagindo 20 anos.
12 É evidente que nestas circunstâncias o psiquismo torna-se ávido por qualquer demonstração de empatia.