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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo Dec. 2015
EDITORIAL
Editorial
Para os colegas da minha geração e para alguns que me antecederam, trabalhar e operar na perspectiva da Psicologia Analítica de Grupo (PAG) representava um investimento valioso e profundo, que deixou marcas importantes em nossa identidade e na maneira de encararmos a própria psicanálise. Certo que este é o legado mais precioso a ser oferecido às gerações posteriores de terapeutas. Resgatar esse espírito é tão importante quanto superarmos as dificuldades apontadas.1
(Odilon de Mello Franco)
Caros colegas e leitores, este número é fruto de um especial processo de trabalho realizado pela equipe editorial do Jornal.
A escolha do tema tem importância capital na leitura que a equipe fez da nossa Instituição e do campo analítico. Esperamos que nossa escolha revele algo novo ou promova de modo criativo uma re-visão sobre Análise de grupo e grupos em análise.
O número 88 nasceu da percepção de uma demanda institucional não dita, não contemplada dentro e, arriscamo-nos a dizer, nem fora da sbpsp em relação ao trabalho psicanalítico com grupo e em grupo. A hipótese que levantamos era que havia ausência de espaços para troca de experiências, estudos sistemáticos sobre grupos e discussões teórico-clínicas.
Assim resolvemos fazer uma pesquisa que nos fornecesse algum embasamento de como se dava a prática clínica com grupos entre os membros da sbpsp (vejam os resultados detalhados nas páginas 174-177). A pesquisa confirmou que um número razoável de colegas é muito interessado no tema, e vários trabalham com grupos.
Diante dessa constatação, convidamos os colegas para um Encontro e para dar início ou reinaugurar institucionalmente o espaço de conversa sobre Análise de grupo e grupos em análise (este encontro está descrito na página 173) . Este número 88 pode vir a ser uma referência viva sobre o tema. Há muito tempo não existe espaço para o tema do grupo entre nós.
Tanto no Encontro promovido pelo Jornal, como em vários textos sobre análise de grupo, percebe-se certo complexo de inferioridade, como se a análise de grupo fosse algo menor, menos pura que a psicanálise individual. Para Freud, entretanto, "desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido amplo, mas inteiramente justificável, das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social",2 ou seja, toda psicologia individual é social; como, para Bion, grupo não deveria ser visto sociologicamente como uma entidade concreta, mas como um ponto de vista diferente para a observação do mundo psíquico.
O fato é que a psicanálise avança lentamente em suas pesquisas, em parte, devido à resistência a mudanças e transformações, que as instituições psicanalíticas "impõem" a seus analistas. Em nome do rigor e da proteção aos standards da formação e do que no imaginário institucional compreende-se ser um psicanalista, a investigação de outras práticas psicanalíticas e de seus achados sofre até ver reconhecidos seus avanços e contribuições à própria psicanálise individual, "análise clássica". Estou me referindo às práticas - atendimento psicanalítico de bebê, casal, família, de grupo, institucional, situações de guerra, violência de Estado, terrorismo, e, mais recentemente, atendimento no espaço virtual da Internet etc. - que interrogam na clínica cotidiana as articulações entre os espaços e processos intrapsíquicos, interpsíquicos, a transmissão psíquica geracional e, talvez pudéssemos também incluir, os espaços e processos transicionais. As consequências dessas práticas clínicas permitem rearticular os conceitos e experiências das relações de transferência, contratransferência, transmissão psíquica, entre outros. Um exemplo que nos ajuda a vislumbrar essa ideia é o trabalho de René Kaës sobre o sonho,3 em que afirma: "A clínica psicanalítica da análise individual, bem como a das famílias, dos grupos e dos casais permitiu compreender progressivamente de que maneira o espaço intrapsíquico do sonho se articula com espaços psíquicos de outros sonhadores: sonhar exige a precedência de um sonhador, cuja atividade onírica é necessária para que se forme num outro a capacidade de sonhar" (p. 20).
Gostaria de salientar que o conhecimento conceitual, advindo das observações dos analistas que veem e se veem em diferentes situações de trabalho psicanalítico, é que tem permitido novos pensamentos e experiências psicanalíticas.
Ainda se observa a divisão, não por um motivo didático, entre o individual e o social, mas um embate entre a tradição e a inovação - teórico-clínica e metapsicológica - pelo que é ou não é a pura psicanálise.
Nesse sentido, a análise de grupo ainda seria vista como o cobre, elemento impuro diante da psicanálise individual representada pelo ouro, um elemento puro. Para nós, do Jornal, o processo de elaboração deste número nos mostrou que análise de grupo, análise em grupo e grupo em análise, se não é vista ainda como ouro, pelo menos merece ser a prata da psicanálise.
Prata da casa
Os relatos históricos nos contam que após os anos 1970 as análises de grupo ou em grupo diminuíram e cederam lugar aos grupos chamados homogêneos voltados para uma meta comum, objetiva e com tempo razoavelmente previsto. Refiro-me a grupos de alcoólatras, drogados, gestantes, mulheres etc., enfim, grupos organizados para atender a demanda em instituições públicas ou mistas. E mais recentemente as consultorias institucionais a grandes grupos privados utilizam-se do trabalho com grupos para fins também específicos.
Nas palavras de Joel Birman: "a experiência psicanalítica admite diversas possibilidades de clínica, desde que nesta diversidade sejam reconhecidas as condições epistemológicas e éticas para a construção do espaço psicanalítico, isto é, uma experiência centrada na fala, na escuta e regulada pelo impacto da transferência" (1994, p. 27).4
A clínica psicanalítica pode ser entendida como o lugar de produção epistemológica, em que as psicanálises possíveis (para relembrar uma ideia cara a Fabio Herrmann) podem encontrar solo fértil para se desenvolver, transformar e criar, com base na experiência psicanalítica. Nesse sentido, a análise de grupo cumpre rigorosamente as condições acima citadas por Birman.
A pergunta que salta no ar é por que entre os conhecimentos transmitidos na formação, não abarcamos oficialmente o estudo dos fenômenos grupais?
Foram muitos anos para que fossem incorporados os estudos sobre criança e observação de bebê na formação dos novos analistas. E paramos por aí, por quê?
O que notamos com base na pesquisa é que há uma demanda real de estudo de análise de grupos e em grupos. Muitos colegas trabalham com grupos e se ressentem de uma formação sistemática que propicie um embasamento teórico-clínico consistente. Os inúmeros artigos que recebemos para este número demonstram que essa falta de embasamento ocorre, também, extramuros, não é um problema só do nosso Instituto, é uma questão mais abrangente.
O centro clínico da sbpsp, um espaço de aprendizagem e de função social, só teria a ganhar com a inclusão da prática e estudo sobre grupos. O diagnóstico da nossa pesquisa é que análise de grupo e grupo em análise é a prata da casa, ainda reclusa nos subterrâneos da nossa instituição.
Agradecimentos
A segunda gestão do Jornal iniciou este ano, e tivemos a saída dos colegas Heloisa Helena Sitrângulo Ditolvo e Alexandre Socha da equipe editorial. Por dois anos contamos com a presença inteligente e sensível, o trabalho e a delicadeza desses colegas. Heloisa com sua genuína capacidade de organização, seus múltiplos saberes, enorme conhecimento da SBPSP, sempre firme, uma presença fundamental para dar suporte seguro e sólido à equipe em momentos cruciais. Alexandre tem o dom da escrita, da precisão, e muita capacidade de trabalho. Ele transita com desenvoltura no campo da cultura e, sem dúvida, se destacará em nossa instituição por sua presença pensante, crítica e construtiva. A vocês o meu profundo agradecimento por compartilhar conosco este desafio editorial.
Novos colegas já compõem a equipe editorial deste número: Berta Hoffmann Azevedo, Cláudia Amaral Mello Suannes, Ricardo Trapé Trinca e Tiago da Silva Porto. Sejam muito bem-vindos!
Gostaria de agradecer a generosidade da poeta Adélia Prado de permitir a publicação de seu poema "Terra de Santa Cruz" para a seção Manifestações, dedicada a Frei Tito de Alencar.
A Jean-Claude Rolland, psicanalista francês, por seu testemunho que nos convoca a tomar contato com o massacre psíquico a que Frei Tito foi submetido, na figura do delegado Fleury, pela ditadura militar brasileira. Sua reflexão psicanalítica sobre a tortura, com base em seu trabalho psicanalítico com Frei Tito é uma contribuição valiosa para todos nós analistas.
À família Mello Franco, pela disposição em colaborar com o Jornal para que fosse possível homenagear o querido colega e mestre Odilon de Mello Franco Filho.
O meu agradecimento a todos os que colaboraram para tornar este número tão especial. Obrigada.
Boa leitura!
Marina Massi
Editora
jornaldepsicanalise@sbpsp.org.br
1 Artigo republicado neste número do Jornal, às pp. 271-285.
2 Freud, S. (1976). Além do princípio do prazer. Psicologia de grupo e outros trabalhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, p. 91). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920-1922) [ Links ]
3 Kaës, R. (2004). A polifonia do sonho: a experiência onírica compartilhada. São Paulo: Ideias & Letras. [ Links ]
4 Birman, Joel (1994). Psicanálise, ciência e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]