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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo Dec. 2015
TEMA: ANÁLISE DE GRUPO E GRUPOS EM ANÁLISE
Alguns aspectos da formação analítica
Some aspects of psychoanalytic training
Algunos aspectos de la formación analítica
Cláudio Laks Eizirik
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre sppa. Professor Titular do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. ceizirik.ez@terra.com.br
RESUMO
O autor destaca alguns aspectos da prática analítica contemporânea e, a seguir, discute alguns dos aspectos mais relevantes e dos desafios atuais da análise pessoal, da supervisão e da instituição psicanalítica.
Palavras-chave: formação analítica, prática analítica, supervisão, análise pessoal, instituição analítica
ABSTRACT
The author highlights some aspects of contemporary psychoanalytic practice, and discusses some of the most relevant aspects and some of the current challenges of personal analysis, supervision, and psychoanalytic institution.
Keywords: psychoanalytic training, psychoanalytic practice, supervision, personal analysis, psychoanalytic institution
RESUMEN
El autor subraya algunos aspectos de la práctica analítica contemporánea y, a seguir, discute algunos de los aspectos más relevantes y los desafíos actuales del análisis personal, de la supervisión y de la institución analítica.
Palabras clave: formación analítica, práctica analítica, supervisión, análisis personal, institución analítica
Há modificações nos pacientes que atendemos?
Possivelmente a partir da década de 1980, começaram a surgir referências na literatura sobre modificações nos pacientes analíticos (Gaddini, 1987; Ahumada, 1996), e progressivamente foram entrando em cena novas descrições que se afastavam das clássicas indicações de Freud sobre os pacientes neuróticos. São bastante conhecidos os estudos de Kernberg sobre os pacientes borderline, de Marty e da escola de Paris sobre os pacientes psicossomáticos (Aisenstein, 2014), sobre as novas doenças da alma (Kristeva, 2002), sobre as perversões (McDougall, 1983), um conjunto de apresentações clínicas em que a dificuldade com a expressão verbal e a simbolização apresentam desafios ao trabalho analítico. Derivando suas observações teóricas e clínicas da tradição psicanalítica francesa, por um lado, e das contribuições de Bion e de Winnicott, por outro, André Green foi construindo uma majestosa obra psicanalítica, em que descreveu, entendeu e sugeriu abordagens possíveis para as estruturas não neuróticas (Green, 2002, 2010; Urribarri, 2013).
Todas essas contribuições sinalizam que a clínica contemporânea abriga um novo tipo de paciente, mas ao mesmo tempo sugerem mais questões do que respostas: são de fato novas patologias, ou são novas roupagens de estruturas descritas por Freud e seus contemporâneos? Em que medida as mudanças na cultura, que cada vez mais estimula o que tem sido descrito como modernidade líquida ou hipermodernidade, são responsáveis por essas novas apresentações ou patologias? Em que medida uma nova visão da abordagem psicanalítica tornou necessário buscar um acesso à parte psicótica da personalidade, ou uma maior capacidade da escuta analítica tornou-nos mais capazes de penetrar em territórios antes considerados inacessíveis ou não propícios ao método analítico?
Seja como for, constatam-se, por vários meios de abordagem possíveis, mudanças na prática analítica e nos tipos de pacientes que nos procuram (por exemplo, Eizirik et al., 1999).
Em que proporção isso ocorre? Observando minha própria prática, e comparando-a com a de colegas, continua, no entanto, predominando a presença de neuróticos ou com transtornos de personalidade, ao lado de um número relativamente pequeno de pacientes como os descritos pelos autores antes referidos; a diferença é que possivelmente antes os aceitaríamos para análise, ou não teríamos os recursos agora disponíveis para buscar um contato emocional com estes. Por outro lado, o que há também de novo é a presença de pacientes de meia idade ou velhos, e essa parece ser uma tendência crescente, tanto na literatura analítica (Junkers, 2006), como na prática corrente. Como descrevi há pouco (Eizirik, 2014), nas primeiras décadas, com a notável exceção do Pequeno Hans, todos os analistas e todos os pacientes eram adultos. Com o advento das contribuições de Melanie Klein e outras autoras e autores, a psicanálise descobriu a infância, e hoje dispomos de um conhecimento dessa área e a da adolescência plenamente desenvolvido. Parece que nas últimas duas décadas fizemos uma nova descoberta: existe a velhice, e a mente e o sofrimento psíquico dos velhos constituem uma nova área de estudo e abordagem psicanalítica. Em muitos institutos, além disso, têm sido incluídos seminários sobre a abordagem psicanalítica de casais, de famílias e de grupos.
Necessitamos aqui considerar outra variável, que me parece ser bastante negligenciada: o tema do ciclo vital dos pacientes e dos analistas e em que medida cada momento tem relação com alguns tipos de paciente, ou com uma disponibilidade de escuta maior ou menor para determinadas patologias. Tem sido descrito ou relatado que analistas em idade avançada apresentam mais dificuldades (inclusive físicas) para um trabalho analítico sistemático com crianças. Ou que analistas com maior experiência e que tenham aprendido mais com os fracassos do que com os sucessos terapêuticos (Baranger, 1993) possam ter maior disponibilidade emocional para a escuta de situações mais regressivas.
Há modificações no setting?
Mesmo sabendo que o setting tem muito mais a ver com um enquadre mental dentro do qual trabalhamos com o paciente, quero destacar que o método e a estrutura desenvolvidos por Freud como ideais para o trabalho analítico teriam que passar inevitavelmente por modificações, adaptações, atualizações.
As questões formais do setting, como as relativas ao contrato, ao pagamento das sessões, à frequência, às férias, ao uso do divã, não são, em si mesmas, o setting no que tem de mais central. Constituem salvaguardas, balizas, em suma, um enquadre dentro do qual procuramos reunir as melhores condições para um trabalho analítico que visa um contato emocional profundo e íntimo com o mundo interno do paciente, bem como do analista. Constituem o cenário em que construiremos campos analíticos específicos com cada paciente. Assim como cada consultório é único, em algum ou mais aspectos, embora todos tenham pelo menos uma poltrona e um divã, cada análise é única, embora todas tenham a ver com a busca do inconsciente (mesmo que saibamos que há diferentes versões dessa busca).
O risco, a meu ver, é a transformação de cada um desses elementos em uma espécie de fetiche, e infelizmente muitas polêmicas decorrem da escolha de um elemento isolado como foco de disputa e de amargas dissidências. A longa discussão e a aprovação dos três modelos de formação analítica (Eizirik, 2011) tinham como propósito o reconhecimento da diversidade de formações possíveis, e sempre foi enfatizado que a frequência é apenas um dos elementos dos modelos reconhecidos, que requerem para sua aplicação uma coerência entre seus objetivos e sua estrutura. No que se refere à prática analítica corrente, todos sabemos que cada vez mais os analistas estão atendendo pacientes em desde uma até quatro ou cinco sessões semanais, com predomínio, em muitos casos, de uma a duas sessões. Várias razões têm sido alegadas para esse declínio da frequência das sessões, entre elas, dificuldades econômicas, resistência, grandes distâncias em centros urbanos, dificuldade do analista em defender e proteger um setting adequado ao método, competição com outras abordagens que requerem menos sessões, a tendência atual em favor de menos contato e mais rapidez etc.
A questão básica é a seguinte: pode se chamar de análise um tratamento que tem menos de três sessões semanais? Mas por que três, e não quatro? Ou cinco? Ou seis, que era a frequência que Freud usava inicialmente? E quem definirá se esse nome pode ser usado? A ipa? Cada sociedade? Cada analista? O superego de cada analista?
Uma saída conveniente seria usar o nome de psicoterapia analítica para essas baixas frequências, e não se fala mais nisso. Mas temos que falar sobre isso, porque é uma questão que perturba muitos colegas e produz um sentimento de desconforto ou transgressão.
O que me parece pobre é usar apenas esse indicador para definir de que tratamento se fala. Necessitamos examinar se há um processo analítico instalado, se há uma neurose de transferência estabelecida, se há análise de sonhos, se está sendo trabalhado num campo analítico, se há atenção à contratransferência, se há mudanças psíquicas observadas, se o analista tem uma identidade analítica desenvolvida e estabelecida e experiência suficiente com o método usual para abordar situações de menor frequência; se as respostas a essas questões são positivas, não vejo por que não se falar de análise, independentemente da frequência. Afinal, nos corredores dos congressos, é disto que se fala muito, entre outros temas: a experiência de casos que vinham ou vêm quatro vezes, e neles pouco acontece, e de outros que vêm poucas vezes e uma análise se desenvolve. Isso posto, continuo convencido, pela já longa experiência clínica, que o método analítico se beneficia com uma alta frequência de sessões, mas que, ao mesmo tempo, podemos aceitar e conviver e analisar casos em que isso não é possível.
No que se refere aos demais elementos do setting, há pacientes que não conseguem usar o divã, por inúmeras razões (controle, ansiedades paranoides ou de englobamento etc.), por períodos ou às vezes nunca, e se analisam; e há os que se atiram no divã na primeira sessão e não conseguem ir além disso por muito tempo ou todo o tempo, tal a rigidez de sua estrutura mental; e há os que seguem um curso previsível de algum período face a face, depois o divã e realizam seu percurso analítico de modo satisfatório.
Quanto à cobrança das sessões, parece estar longe o tempo em que os pacientes eram responsáveis por suas sessões de forma compulsória; hoje examinamos cada situação, e tentamos avaliar o quanto de atuação, resistência e necessidade real estão presentes em cada uma delas, para seguir uma conduta que não seja rígida nem laissez faire, mas, dentro do possível, analítica. O mesmo vale no que se refere às férias, tanto do analista como do paciente.
Temos também a interessante e desafiadora questão da análise à distância, por meio do telefone, ou do Skype, ou de outras formas de comunicação virtual. Aliás, observa-se que os pacientes cada vez mais se comunicam com os analistas, e vice-versa, pelo msn ou pelo WhatsApp, em vez da hoje quase remota secretária eletrônica. E cada vez mais imagens, vídeos, gravações pelo iPhone ou pelo iPad são trazidos para dentro das sessões e fazem parte do setting contemporâneo. A literatura tem mostrado a efetividade dessas abordagens (por exemplo, Scharf, 2012), mas ao mesmo tempo precisamos continuar estudando suas vantagens e limitações. Uma medida que me parece importante, e diria até indispensável, é que deve haver, em cada análise, ao menos um período ou períodos de trabalho analítico presencial, que continua sendo a maneira pela qual o método foi desenvolvido e que permite as condições para um setting em toda a sua plenitude.
E como fica a mente do analista com todas essas questões?
Por um lado, é cada vez mais fácil ser analista em nossos dias, e por outro é cada vez mais difícil.
É mais fácil porque hoje trabalhamos melhor do que Freud, Ferenczi, Abraham, Klein, Bion, Winnicott, Lacan, Erikson, Kohut, Mahler, Laplanche, Green, Betty Joseph, porque temos todos eles em nossa retaguarda, ao lado de nossos analistas e supervisores, e essa experiência centenária nos permite transitar por caminhos e sendas, profundezas e atalhos, que nossos antecessores não conseguiam divisar com a clareza de nossos dias; mas nossos sucessores ainda trabalharão melhor que nós, pelas mesmas razões. Também temos hoje uma série de inovações em nossa comunidade psicanalítica, como as proporcionadas por programas como o capsa, que se originou do trabalho pioneiro e vigoroso de Haydee Faimberg, com seus grupos da escuta da escuta, que se multiplicaram nos vários working parties, que hoje são possivelmente a parte mais estimulante de cada congresso analítico.
Por outro lado, é mais difícil, em parte pelas mesmas razões anteriores: como acompanhar tantos desenvolvimentos? Tantas novas contribuições? Tantas formas de escutar? Tantas proposições? E como conviver dentro de cada instituição, com suas rivalidades, picuinhas, competições, invejas, ao lado dos inegáveis momentos de cooperação e trabalho criativo? E como acompanhar um mundo em constante transformação, que nos desafia tanto por sua complexidade como pela praticamente infinita oferta de ideias, livros, filmes, expressões da cultura, popular ou erudita, sobre as quais temos que ter um conhecimento mínimo, pois também fazem parte do mundo de nossos pacientes e de suas associações?
A mente do analista é cada vez mais considerada um elemento essencial da relação analítica. Numa estimulante síntese recente do trabalho analítico, Levine (2010) propõe que temos dois modelos em nossa atividade. O primeiro é o que ele chama de modelo arqueológico, que se presta mais a situações em que os elementos psíquicos adquiriram representação e foram mais ou menos simbolicamente investidos e ligados associativamente um ao outro. Esse modelo é o mais adequado à análise de pacientes neuróticos, mas demonstrou ser problemático para os demais pacientes, para os quais propõe denominar modelo transformacional como o mais adequado. Este se centra no funcionamento da mente do analista como parte da díade e na criação e reforço dos elementos psíquicos em vez ou além de seu desvelamento. O modelo transformacional enfatiza que a psicanálise é uma atividade a dois, e que se destina à criação de símbolos, pensamentos, sentimentos e do próprio inconsciente, mais que na análise de defesas ou na descoberta de significados ocultos; em suma, no trabalho analítico, processa-se uma operação dupla: dar um continente ao seu conteúdo e um conteúdo ao seu continente. Aqui se ouvem as vozes de Green, de Ferro, de Ogden, mas também dos Baranger.
O desafio contemporâneo ao trabalho analítico é poder transitar entre o modelo arqueológico e o transformacional, entre estados de compreensão e não compreensão, e de tolerar as inevitáveis oscilações em nosso próprio estado mental, o do paciente e o que conjuntamente construímos.
Talvez aí resida, além de todos os aspectos antes mencionados, a incomparável fascinação do trabalho analítico (Eizirik, 2015).
A construção do analista - aspectos gerais
O analista é construído ou se constrói? O analista é construído ou está em construção? Uma antiga poesia, que durante um período foi muito popular e muito declamada nas rodas estudantis, me vem à mente: o "Operário em construção", do saudoso Vinicius de Moraes (1960), em que ele descreve a progressiva tomada de consciência de um operário sobre sua condição. Há um diálogo em que o operário, tentado pelas artimanhas sedutoras do patrão, que não conseguira dobrá-lo pela violência, acaba por dizer-lhe: "não podes dar-me o que é meu!" A poesia termina assim: "E dentro da tarde mansa/ Agigantou-se a razão/ De um homem pobre e esquecido/ Razão porém que fizera/ Em operário construído/ O operário em construção" (pp. 253-254).
Com isso, quero dizer que não acredito muito na noção de uma construção do analista, mas, sim, em um processo dinâmico, interminável e sempre incompleto de um analista em construção. Ao contrário do que concluía o poeta, em seu tom naturalmente elegíaco, penso que no nosso caso não há um analista construído, mas que talvez o que vivamos seja uma oscilação entre estados mentais em que nos sentimos mais ou menos construídos ou em permanente construção (Eizirik, 2012).
Desde que, em 1920, a formação analítica começou formalmente, na Policlínica de Berlim, e com seus desenvolvimentos posteriores, é inegável que o tripé análise pessoal, supervisões e estudos teóricos e clínicos se mantém, e que, desde que a ipa, em 2006, finalmente entrou em contato mais direto com a realidade e aprovou os três modelos de formação, temos hoje mais tranquilidade para reconhecer que esses aspectos têm inúmeras variações e nuances que se modificam de um instituto a outro. Quando os comitês encarregados de estudar o que se passava nos diferentes institutos, examinaram com cuidado a situação e verificaram, por exemplo, que o modelo Eitingon, o mais tradicional e prevalente, apresentava inúmeras versões, apesar de seguir o famoso tripé. Como diria Freud sobre a técnica analítica, ela é como o xadrez, sabe-se como é a abertura e o fechamento, mas existem incontáveis variações no decorrer do jogo. De forma similar, visitando inúmeros consultórios analíticos, ao longo dos últimos anos fiz a instrutiva constatação de que todos tinham um divã e uma poltrona, além de outros móveis, mas cada um tinha alguma característica que o diferenciava dos demais; por exemplo, a relação entre a poltrona do analista e o divã varia enormemente, com inúmeras posições, desde aquela em que o analista fica completamente fora do campo visual do paciente até aquela em que fica quase ao lado, bastando um leve mover de cabeça do paciente para vê-lo; em suma, o que quero dizer é que os institutos oferecem as condições para que um analista se construa, mas se isso vai ocorrer ou não dependerá de inúmeras circunstâncias que escapam a qualquer tentativa de controle institucional.
A análise pessoal
Penso haver um consenso sobre o fato de que devemos manter um rigor nos nossos procedimentos de formação, bem como zelar pela coerência interna do modelo que adotamos, mas o analista se construirá ou não por razões que vão além de nossas melhores intenções. Costumo ler e ouvir, em diferentes latitudes, que o elemento central da formação é a análise pessoal do futuro analista, e, em linhas gerais, estou de acordo com essa assertiva; mas será que é sempre esse o caso? Aqui gostaria de destacar a complexa trama de fantasias inconscientes, de projeções e dissociações que se estabelecem, em quase todos os casos, entre o paciente, seu analista, seus supervisores, seus professores, seus colegas, as autoridades do instituto, a cultura institucional, a tradição de cada sociedade e suas inúmeras novelas familiares, tudo isso mesclado com as vivências de cada futuro analista com sua família, sua história, sua própria tradição e as fantasias de futuro que constrói em sua mente. Bolognini (2013) examinou com minúcias a série de situações pelas quais passa o analista em formação, ilustrando o que denomina as vivências da família fantasmática e institucional de cada um ao longo de seu percurso de aprendiz.
Nos melhores casos, a análise pessoal será um espaço em que essas tramas serão alvo de exame, dentro das possibilidades de cada analista, que também está envolvido nessa trama e dela participa, em fantasia ou na realidade; em muitas ocasiões, mesmo que a análise seja bem-sucedida, e que o analista tenha a humildade de reconhecer seu papel transicional na vida do paciente e não fique esperando sua gratidão eterna (sob a forma de citações de seu nome em trabalhos, encaminhamento de pacientes, idealização etc.), ainda assim essa elaboração terá que ser feita a posteriori pelo futuro analista, por meio de sua autoanálise, observação dos fatos da vida institucional, experiência analítica e trocas de experiências com colegas e amigos. Não são poucos os autores que destacam ser esta uma análise necessariamente contaminada, por todos os fatores externos a ela que estão sempre implicados. Observo, em minha experiência, e tive a oportunidade de ouvir experiências similares de outros colegas, que há, grosso modo, dois grandes grupos de pacientes analíticos que realizam sua formação. O primeiro grupo é constituído por aqueles pacientes que buscam análise por suas necessidades pessoais, seu sofrimento psíquico, e durante esta, num dado momento, ou após alguns anos de trabalho analítico, percebem surgir o desejo ou a motivação para realizar sua formação analítica. Em geral, ou na maioria dos casos, a formação é apenas um período de sua análise, que continua após os procedimentos institucionais, até um término formal do processo analítico. Essas pessoas realizaram sua análise, e a formação foi algo incidental no curso desta. O segundo grupo é daquelas pessoas que buscam análise para fazer a formação, embora reconheçam a existência de dificuldades emocionais. Com alguma frequência, há certa pressa ou pressão nessa análise, e muitas vezes o paciente procura encerrá-la tão logo tenha atingido os requisitos institucionais. Há muitas racionalizações: o custo, as distâncias, as exigências familiares etc. Não tenho como fazer generalizações, mas minha observação mostra que no primeiro grupo de pessoas se encontram aqueles analistas que mais profundamente se identificam com a função analítica e com a identidade analítica.
Aqui entra uma questão que me parece estar esperando mais atenção: por que Freud teria tido a curiosa ideia de sugerir uma reanálise a cada cinco anos? Seria porque a análise daquele tempo era insuficiente ou muito rápida, ou por que captou, com sua argúcia usual, a natureza autolimitada de todas as análises e a poderosa presença das resistências ao inconsciente que fazem com que tenhamos a monótona tendência de reprimir, negar ou desmentir aqueles desagradáveis aspectos que nosso(s) analista(s) passou(aram) anos tentando fazer-nos enxergar? Pode ser que eu esteja cometendo uma injustiça, ou sendo desinformado, mas tenho a impressão de que a prevalência de reanálises em nosso meio não é das maiores; lanço como hipótese de trabalho a ideia de que é muito difícil manter nosso instrumento afinado e afiado se não temos a humildade de recorrer a periódicas purificações psicanalíticas, como as chamava Freud.
A instituição psicanalítica
Um elemento central que pode estimular ou não o processo de construção de uma identidade analítica é o clima institucional que predomina em cada sociedade ou instituto, bem como a forma pela qual é visualizada, em cada cultura psicanalítica, a trajetória de cada futuro analista. Em que medida o pensamento crítico e independente é estimulado ou acolhido? Em que medida os procedimentos e regras tornam-se uma espécie de fetiche que deve ser obedecido porque sim? Até que ponto os analistas em formação são estimulados e acolhidos a terem suas próprias associações? Com que frequência as diferenças teóricas são acolhidas e ouvidas com respeito e interesse? Em que medida os currículos são flexíveis e incluem seminários optativos, permitindo que cada estudante de psicanálise siga seus próprios interesses? Até que ponto o clima institucional estimula os futuros analistas a participarem de suas atividades e manifestarem-se verbalmente nas reuniões ou a ficarem num tímido ou temeroso silêncio, que só será quebrado muitos anos e incontáveis reuniões depois? Em que medida os temas relativos à formação analítica são discutidos contando com a participação daqueles que estão vivendo a experiência? Até que ponto nossas instituições revisam e modificam seus currículos, seus procedimentos e sua maneira de entender a formação analítica, à medida que o tempo passa e surgem novas ideias nacionais e internacionais sobre o tema e sobre o próprio processo de formação?
Todas essas questões e uma discussão detalhada de muitas delas têm sido objeto de sucessivos trabalhos de Kernberg. Um dos aspectos mais destacados por Kernberg (2000) é o que diz respeito à chamada análise didática e à concentração de poder num número restrito de analistas didatas, resultando num clima institucional muitas vezes opressivo e paranoide. De minha parte, tenho observado situações em que tal cenário de fato ocorre, e outras em que um número crescente de analistas que analisam futuros analistas oferece uma espécie de diluição do poder e facilita o diálogo e uma discussão mais livre e aberta. Mesmo em institutos que adotam o modelo Eitingon, tem havido modificações no sentido de possibilitar a todos os membros efetivos, sejam didatas ou não, analisar candidatos. Num trabalho recente, Garcia (2014) discute vários aspectos da transmissão institucionalizada da psicanálise. Sua tese central é a da singularidade da formação de cada analista e de que a função dos institutos deveria ser oferecer as melhores condições possíveis para que cada futuro analista realize sua própria formação, preservando o essencial da transmissão da psicanálise das resistências institucionais e culturais da atualidade e buscando se adequar aos novos formatos e demandas do presente, sem perder o que recebemos das primeiras gerações de analistas.
Sobre a supervisão analítica
A respeito da supervisão analítica, igualmente existe uma ampla literatura, e sabemos que sua relevância varia conforme o modelo adotado; de qualquer modo, essa é uma área inegavelmente de grande impacto na construção de um analista, pois é uma relação mais livre que a análise pessoal, que pode ser um foco de estímulo e de trabalho conjunto e mutuamente enriquecedor, ou um espaço para uma transmissão de uma forma de pensar ou analisar centrada na figura e na autoridade do supervisor; trata-se de uma relação delicada, em que a manutenção de certa distância e assimetria, ao lado de uma forma espontânea e natural de trabalhar, exige constante atenção do supervisor; assim como a relação analítica, é uma relação naturalmente ambivalente, mas tem o potencial de ser um espaço de estímulo à criatividade e ao estabelecimento de uma forma independente de ser analista. Entre tantas contribuições relevantes, penso que merece destaque particular um número recente do Psychoanalytic Inquiry, organizado por Imre Szecsody e Melvin Bornstein, tendo como tema Never Ever Stop Learning about Supervision. Os trabalhos apresentados nesse número da revista mostram os principais dilemas, complexidades e controvérsias atuais sobre a supervisão psicanalítica.
Percebo certa tensão entre dois grupos de trabalhos: o primeiro deles enfatiza a relevância de ter claros os objetivos de aprendizagem e vê a supervisão como parte de um treinamento no qual capacidades podem ser desenvolvidas e monitoradas; o segundo se baseia num processo de construção de capacidades internas, ou de expansão da mente, em que a relação emocional entre supervisor e supervisionando tem o papel central.
Embora entenda e reconheça a importância de estabelecer e tentar atingir certos objetivos através da formação e procurar realizar alguma forma de avaliação ao longo desse processo, vejo com alguma preocupação o risco de não se tomar suficientemente em conta a natureza única e peculiar dessa relação, que tem como objetivo ajudar cada analista em formação a adquirir alguma forma de identidade analítica. Tal identidade não pode ser medida em número de horas de análise ou de supervisão, mas, sim, na aceitação de que se trata de um processo de elaboração, cheio de flutuações, dúvidas, progressões, regressões e sucessivos estados mentais. Tal processo - que em alemão é chamado Bildung (construção), em inglês, training ou education, em francês, formation, e em português, formação - talvez mostre, nessa aparente menor diferença linguística, duas maneiras bastante opostas de conceber o que estou tentando caracterizar como a construção possível de um analista (Eizirik, 2014).
Tornar-se e manter-se analista
E sobre essa pessoa que um dia dirá a si mesma que se sente um analista?
Como nas áreas precedentes, há uma razoável bibliografia sobre esse complexo processo de tornar-se analista; considero particularmente úteis os textos em que analistas refletem sobre suas motivações e seu percurso pessoal nesse longo processo de aquisição de uma identidade analítica, embora ao mesmo tempo me pareça que a própria noção de uma identidade analítica pode encerrar um perigo, à medida que privilegia a ideia de que a identidade analítica é obtida ou estabelecida, e não que se trata de uma obra em construção ou de um processo em desenvolvimento; para citar apenas três exemplos, parece-me ilustrativo das vicissitudes desse processo o que se pode ler em "Um analista engajado" (1994), sobre o percurso pessoal e profissional de André Green, num número especial de Psychoanalytic Inquiry (2005), em que vários analistas latino-americanos refletem sobre suas trajetórias individuais, e no recente Comment on devient psychanalyste et comment on le reste (2010), de Daniel Widlocher.
O que se encontra nesses relatos, e o que incontáveis outros poderiam testemunhar, é que cada analista se construirá com base em uma série de motivações culturais, conscientes e inconscientes, identificações, experiências de vida, situações traumáticas, aspectos neuróticos dos mais variados matizes, buscas de reparação, ideais, e assim sucessivamente.
Penso que um elemento central em tornar-se analista e assim permanecer nos anos seguintes está ligado à experiência clínica e ao acúmulo de horas analíticas e à possibilidade de experimentar sucessos, fracassos e os resultados possíveis nos casos atendidos; poder compartilhar com um paciente suas mudanças psíquicas e a expansão de sua mente e de sua capacidade de sentir, amar e trabalhar ajuda a robustecer a crença (nos termos de Bion) em nosso método; tolerar os insucessos capacita-nos a sermos mais humildes quanto aos alcances e limitações desse método.
Meltzer (1967) ressalta com propriedade o misto de atividades atlética e artística que há no trabalho analítico e a importância essencial da simplicidade e da estabilidade na atividade clínica, algo que também uma vez ouvi de Bela Grunberger.
Talvez seja ainda mais difícil manter-se analista do que formar-se analista, em face das inúmeras tentações de relaxar no trabalho indispensável com o inconsciente dentro de um campo analítico que necessita ser mantido e protegido constantemente. Uma vez concluídos os passos formais dentro de um instituto, cada analista seguirá seu caminho e as inevitáveis vicissitudes de seu ciclo vital pessoal e profissional, enfrentando não só as dificuldades de um trabalho clínico exigente, como as circunstâncias de um meio que desafia a relevância e a validade da psicanálise. Manter-se analista significa poder tolerar ataques e desafios que vêm naturalmente do próprio trabalho com o sofrimento psíquico, bem como de uma realidade externa muitas vezes ambivalente. Manter-se analista significa poder transitar entre a tradição e a invenção, sem pretender negar as inevitáveis oscilações de estado mental nem as perdas e ganhos de cada etapa do ciclo vital. Como os analistas trabalham possivelmente por mais tempo que os demais profissionais, o processo do envelhecimento merece especial atenção, não só pelas limitações que pode trazer, como também pela maior acuidade clínica e pela maior coragem em enfrentar o trabalho analítico em contato próximo com níveis mais primitivos da mente. As instituições analíticas podem ter um papel relevante nesse processo, à medida que mantenham uma programação que se poderia chamar de formação analítica continuada, estimulante e inclusiva. Em que pesem as inevitáveis desilusões de muitos analistas com suas instituições locais, nacionais e internacionais, ainda assim observo que certo sentimento de nós, certa sensação de pertencimento, certo orgulho de conquistas que podem ser obtidas pelo trabalho conjunto são elementos que podem ter uma função de continente para os diversos tipos de ansiedade já mencionados.
Existiria alguma forma de caracterizar como se sente um analista em seu trabalho? Em suas oscilações entre tradição e invenção? Em seus sucessivos estados mentais? Entre seus momentos de compreensão e não compreensão, como diria Betty Joseph? Entre sentir-se construído ou em construção? Entre tantas possibilidades, à medida que escrevia este texto, me veio à mente um momento longínquo do passado em que, na voz de Paulo Autran, ouvi estas palavras de Louis Javet e Jean-Louis Barrault, coletadas por Millôr Fernandes e Flávio Rangel para a peça Liberdade, liberdade, e que talvez captem com mais argúcia que as descrições analíticas, em que consiste a identificação com um ofício: "Sou apenas um homem de teatro. Sempre fui e sempre serei um homem de teatro. Quem é capaz de dedicar toda a vida à humanidade e à paixão existentes nestes metros de tablado, este é um homem de teatro".
Referências
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Recebido em: 10/3/2015
Aceito em: 18/3/2015