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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo Dec. 2015

 

TEMA: ANÁLISE DE GRUPO E GRUPOS EM ANÁLISE

 

Sobre o conceito de intertransferência (ou a contribuição de René Kaës para a problemática da contratransferência no trabalho em equipe)1

 

On the concept of inter-transference (or Rene Kaës's contribution to the problematic of countertransference in team work)

 

Sobre el concepto de intertransferencia (o la contribución de René Kaës para la problemática de la contratransferencia en el trabajo de equipo)

 

 

Pablo Castanho

Professor doutor do Departamento de Psicologia Clínica (PSC) do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de São Paulo (USP). pablo.castanho@usp.br

 

 


RESUMO

Ao trabalhar-se com grupos, é muito frequente trabalhar-se em grupo. O conceito de intertransferência de René Kaës constitui uma rara contribuição para entendermos psicanaliticamente o trabalho em equipe interpretante. Neste artigo, apresentamos os conceitos de "intertransferência" e "análise da intertransferência" (ait), contrastando os diferentes textos do autor sobre o assunto entre 1976 e 2004. O conceito de 'intertransferência' aborda a especificidade da problemática da contratransferência quando trabalhamos em equipe. A AIT pressupõe o trabalho da equipe interpretante de associar suas experiências uns com os outros, com suas instituições de pertencimento e com o grupo atendido. Identificamos e comentamos algumas diferenças entre os textos analisados.

Palavras-chave: psicanálise de grupo, transferência, contratransferência, coterapia, "Kaës, René, 1936"


ABSTRACT

When one works with groups, working in a group (of analysts) is something that happens very frequently. René Kaës's concept of intertransference constitutes a rare contribution to our psychoanalytic understanding of working in a interpreting team. In this article, we present the concepts of inter-transference and inter-transferential analysis (ita) by comparing different works about this subject that were written by that author from 1976 to 2004. The concept of inter-transference approaches the specificity of the problematic of countertransference that is observed when we work in a team. The ita implies a work of the interpreting team in associating their experiences with each other, with their institutions of belonging, and with the attended group. We identify and comment some differences among the examined papers.

Keywords: group psychoanalysis, transference, countertransference, co-therapy, "Kaës, René, 1936"


RESUMEN

Trabajar con grupos muy frecuentemente es trabajar en grupo. El concepto de intertransferencia de René Kaës constituye una rara contribución para pensar psicoanalíticamente el trabajo en equipo interpretante. En este artículo, presentaremos los conceptos de intertransferencia y análisis de la intertransferencia (ait) realizando un contraste entre los diferentes textos escritos por el autor entre 1972 y 2004. El concepto de intertransferencia aborda la especificidad de la problemática de la contratransferencia cuando trabajamos en equipo. El AIT presupone el trabajo del equipo interpretante de asociar sobre sus experiencias unos con otros, con sus instituciones de pertenencia y con el grupo atendido. Identificamos y comentamos algunas diferencias entre los textos analizados.

Palabras-clave: Psicoanálisis de grupo, transferencia, contratransferencia, co-terapia, "Kaës, René, 1936"


 

 

Trabalhar com grupos é também, muito frequentemente, trabalhar em grupo. "Coterapia", "equipe interpretante", "analista e observador participante" etc., são variadas as expressões que designam essa situação na qual colegas trabalham em conjunto com um grupo, família, casal ou instituição. Notemos que o trabalho conjunto diante de pacientes comuns é uma situação bastante distante da cura de tipo psicanalítico. Ela introduz, portanto, questões específicas aos analistas. A complexidade se intensifica ainda mais ao constatarmos que, sob o terreno do trabalho com grupos, casais e famílias em instituições, encontraremos hoje, na linha de frente, psicanalistas trabalhando com profissionais de perfis de formação bastante distintos. Apesar de ser lugar-comum no trabalho vincular, o trabalho em equipe interpretante tem sido pouco estudado. Uma honrosa exceção é o desenvolvimento dos conceitos de Intertransferência e de Análise da Intertransferência (AIT) de René Kaës, que abordaremos neste artigo.

Em 1973, encontramos o primeiro uso publicado do termo intertransfe rência por Kaës. O termo aparece uma única vez, em nota de rodapé,2 mas entendemos que a noção se estende pelo pano de fundo da longa e detalhada análise dos eventos ocorridos em um seminário de formação. De fato, este seminário será retomado em textos posteriores e será um dos dois exemplos clínicos sobre os quais o autor sistematizará o conceito de intertransferência (o outro exemplo é detalhado em Kaës e Anzieu, 1976). Constatamos assim, em retrospecto, que o texto de 1973, já reúne elementos norteadores importantes do trabalho de conceituação que será seguido nos anos posteriores.

Até a data de redação deste artigo, Kaës havia publicado quatro textos específicos sobre o tema em língua francesa.3 Encontramos dois deles em 1976, o primeiro (1976a) apresenta de modo bastante detalhado, extenso e abrangente a problemática da intertransferência, o segundo (1976b) foca em relacionar a análise da intertransferência à função alpha bioniana. Em 1982, o autor retoma, atualiza e expande o primeiro texto de 1976 (1976a), incorporando ao quadro geral de sua sistematização, também as ideias de 1976b. Em 2004, de modo menos sistemático, o tema é recuperado e integrado à suas reflexões mais atuais.4 Estes quatro textos são a base da apresentação dos conceitos que fazemos neste artigo. Consideramos ainda relevantes ao nosso propósito as menções à análise intertransferencial em 1973, que vimos de abordar, e a presença dos conceitos em um texto de 1990, que será mencionado mais adiante.

Em 1973, o mote para o pensamento sobre a intertransferência era o reconhecimento de que a instituição promotora do seminário deveria ser pensada na relação com o próprio processo dos grupos que ela instituía. Nas apresentações posteriores do conceito, a problemática da intertransferência é mais claramente apresentada como conceito do campo da teoria da técnica quando dois ou mais analistas intervêm conjuntamente. Tal enfoque irá coexistir com o reconhecimento da dimensão institucional dos fenômenos envolvidos, possibilitando importantes extensões do conceito. Nesse percurso, se em 1976a Kaës relaciona vários processos e formações psíquicas à intertransferência, o texto de 1982 avança em uma distinção mais nítida na identificação do cerne do conceito:

Na situação psicanalítica de grupo, e para cada analista trabalhando em equipe, a intertransferência de um analista é composta de sua contratransferência em situação de grupo [que possui as mesmas características da contratransferência na clínica individual] e de sua transferência sobre seu ou seus colegas, sobre a própria equipe, sobre a instituição instituinte.5 (Kaës, 1982, p. 155, tradução do autor)

Nessa leitura, a contratransferência quando trabalhamos em equipe é abordada levando-se em conta as transferências estabelecidas entre os membros da equipe interpretante. Trata-se de transferências internas à equipe e que se organizam sob o impacto do que se passa no grupo atendido. Assim, se na cura tipo "a contratransferência é a reação do psicanalista à transferência do analisando"6 (Kaës, 1990, p. 8, tradução do autor), em situação de equipe interpretante a reação às transferências dos participantes do grupo pode ser vista também no que se passa no vínculo entre os membros da equipe interpretante.

Notemos que, ao falarmos de reação do(s) analista(s), nos referimos a aspectos tanto do(s) analisando(s) quanto do(s) próprio(s) analista(s). Estamos aqui no terreno da tradição psicanalítica que compreende a contratransferência no duplo registro da resistência do analista e como forma de comunicação com o paciente. O risco e o potencial da contratransferência são perceptíveis na passagem: "a contratransferência é, como a transferência, tanto mais poderosa quanto mais inconsciente for. A análise da contratransferência é de fato [como os sonhos], a via régia do conhecimento do inconsciente."7 (Kaës, 1982, p. 151, tradução do autor)

A mesma lógica se aplica à intertransferência: limitação do trabalho e via de acesso ao inconsciente. Abordemos o primeiro ponto. Kaës segue Béjarano (1973), conferindo à resistência um valor decisivo na abordagem do campo transfero-contratransferencial no grupo. Sua especificidade no campo da intertransferência diz respeito à problemática do negativo no campo vincular tão bem abordada pelo autor pelo conceito de alianças inconscientes (Kaës, 2009). A dimensão vincular da resistência já fora, de algum modo, nomeada em 1982 quando Kaës se refere a uma resistência de e à intertransferência (p. 155). Em 2004, o problema da resistência ganha relevo quando Kaës diz que a intertransferência é "um efeito da resistência de psicanalistas quando trabalham em conjunto"8 (2004, p. 5). No mesmo ano, a dimensão específica - pois vincular - da resistência no campo intertransferencial será apresentada claramente em termos do conceito de alianças inconscientes:

Eu descobria simultaneamente que na experiência dos psicanalistas trabalhando em conjunto em grupos de fala livre ou de psicodrama de grupo, o objeto central da resistência intertransferencial é constituído pelos entrejogos das alianças inconscientes e, mais particularmente, pelos entrejogos dos pactos denegativos.9 (Kaës, 2004, p. 7, tradução do autor)

Lembremos que o conceito de pacto denegativo nos remete à possibilidade de obtenção de um plus defensivo para a sustentação intrapsíquica dos mecanismos de defesa. Destaquemos aqui esta lógica, já indicada por Freud em "Mal-estar na civilização" (Freud 1921/2010) e "O futuro de uma ilusão" (1926/2014), de como nos associamos aos outros para sustentar crenças que nos aproximem do prazer e nos afastem do desprazer. No terreno da prática em coterapia, é fácil reconhecer quão tentador pode ser buscar nos colegas a confirmação para o bem fundado das próprias interpretações e da sua própria atuação de modo geral. Seduzidos por este canto, os membros da equipe interpretante podem, com facilidade, aderir, de modo mais ou menos consciente, à imagem idealizada do grupo, da equipe e de suas atuações que ofereça alguma proteção às dores inerentes de nosso ofício. No campo defensivo, Kaës sublinhará como em equipe podemos mais facilmente nos proteger das ansiedades do encontro com a multiplicidade do grupo e destacará a idealização como coprodução defensiva da equipe interpretante (Kaës, 1976a e 1982).

Finalmente, se as alianças inconscientes podem tornar o terreno mais protegido para a equipe interpretante, elas não só limitam sua potência, mas organizam a transmissão do negativo ao grupo:

O que é recalcado ou denegado nos psicanalistas se transmite e se representa no grupo e o organiza de modo simétrico. Aquilo que não é analisado permanecendo recalcado ou denegado torna-se o objeto de uma aliança inconsciente que assegura aos sujeitos de um vínculo não saber nada de seus próprios desejos.10 (Kaës, 2004, p. 7, tradução do autor)

Ao pensarmos a intertransferência por esta importante via, somos herdeiros da compreensão da contratransferência como elemento de resistência do analista. Conquanto fundamental, este ponto de vista deve ser contrabalançado pela perspectiva de que o fenômeno da intertransferência, tal como o da contratransferência, também está a serviço do trabalho analítico, como "uma das vias maiores do conhecimento e do descolamento [dégagement] do conjunto de resistências que encontramos nos grupos11 (Kaës, 2004, p. 5, tradução do autor).

O sugestivo título de um artigo de 1990, "A contratransferência e(é) a interpretação",12 indica o lugar central que Kaës confere à contratransferência para o trabalho interpretativo. Uma das formas pelas quais o autor aborda a problemática da intertransferência como comunicação é recorrendo a Bion. Em 1976b, o autor se debruça sobre o tema que será também retomado no texto de 1982. Para ele, os participantes do grupo projetariam elementos beta na equipe interpretante. Estes elementos comporiam parte importante da intertransferência da equipe, e demandariam a função alpha dos analistas.

Notemos que ao falar do fenômeno da transferência nos grupos, Kaës defende que há difração (Kaës, 1993) da transferência nos diversos objetos transferenciais do grupo. Ao mesmo tempo em que subscreve a visão de Béjarano (1973) sobre os diferentes objetos transferenciais no grupo, adiciona a ideia de que o(s) analista(s) ocupam a posição de "fundadores imaginários do grupo" (Kaës, 2007). Ora, entendemos que isso significa que a transferência com estes "fundadores imaginários" seja difratada quando trabalhamos com equipes interpretantes, cabendo diferentes atributos desta(s) transferência(s) para cada analista. As transferências com cada analista podem ser bem distintas e, portanto, distintas também suas reações contratransferenciais, com os mesmos membros de um determinado grupo, com o grupo e seus subgrupos. Vislumbramos assim a necessidade de reagrupar, de algum modo, a vivência contratransferencial dos analistas, como que em um processo inverso ao da difração que as originou. Trata-se de reagrupar as diversas reações na equipe interpretante às transferências que recebeu como modo de acesso ao que o grupo, seus integrantes e subgrupos lhes comunica. Parte significativa destas "reações" ocorre "entre" um ou mais analistas, no vínculo que os liga uns aos outros.

Por isso, entendemos que elementos da realidade psíquica singular, comum e partilhada do grupo, subgrupos e seus integrantes são transferidos para a dupla e equipe interpretante que podem atuá-los em suas relações. Desse modo, a raiva, ódio, rivalidade, amor, ou qualquer outro sentimento que os membros de uma equipe interpretante possam experimentar uns em relação aos outros, devem ser interrogados naquilo que porta marca do grupo atendido. O risco de atuar tais sentimentos está sempre posto no horizonte do trabalho em equipe, e por isso mesmo vale a advertência de buscar examinar tais sentimentos.

Notemos que se esta reflexão se apresenta precisamente para que possamos pensar a especificidade do trabalho conjunto de psicanalistas em situação de grupo, Kaës entenderá que os mesmos processos se passam em supervisões ou discussões de caso, mesmo quando têm por objeto atendimentos realizados por um analista sozinho diante de (um) paciente(s). Ora, o deslocamento da realidade psíquica oriunda de casos atendidos para os espaços de supervisão tem suscitado numerosos e importantes estudos na tradição inglesa sob o nome de Paralel Process desde os anos 1950 (Morrisey & Tribe, 2001). Poderíamos aproximar esta problemática também das formulações de Vidal sobre a "câmara de ecos", não só nos grupos de supervisão, mas também naqueles que discutem casos sem a existência de uma figura formal de supervisor (Vidal, 2006 e 2007). Abordar estes fenômenos pela óptica da intertransferência pode enriquecer nossa contribuição destes fenômenos.

 

A análise da intertransferência (AIT)

Seja como reflexo ou como origem de algo que ocorre no grupo atendido, a problemática da intertransferência exige uma trabalho específico nomeado por Kaës Análise da Intertransferência (AIT). Em 1982, o autor afirma que "A AIT terá por objeto a análise da contratransferência dos interpretantes quando eles trabalham em equipe de dois ou mais analistas"13 (p. 109, itálicos no original, tradução do autor). Em 2004, precisa que a AIT:

é a expressão própria aos analistas do trabalho da intersubjetividade, a elaboração da resistência ao trabalho psíquico de mais-de-um-outro em cada um dos sujeitos do inconsciente que eles põem em jogo em seus vínculos de trabalho. A análise intertransferencial é o objeto, o método e o momento específico desse trabalho para os analistas em situação de grupo.14 (Kaës, 2004, p. 14, tradução do autor)

Como elaboração da resistência, a AIT é vista como condição de possibilidade do trabalho interpretativo da dupla ou equipe de analistas, salientando-se o papel essencial de que sejam analisadas as formações narcísicas e ideais comuns surgidas na dupla, equipe e mesmo nas instituições que contêm os grupos e às quais pertencem os analistas. Isto inclui a análise da ideologia, das utopias e mitologias que emergem do vínculo dos analistas e de suas instituições.

A referência à dimensão institucional na AIT é bastante relevante desde o início da construção do tema na referência aos seminários de formação em 1973. Como está claro no parágrafo anterior, a instituição é vista como locus de processos e formações psíquicas que devem se tornar objeto da análise intertransferencial. Além disto, se em 1976a Kaës afirma que só uma equipe interpretante poderia ser capaz de fazer a análise de um grupo, em 1982 revisa esta ideia indicando que a AIT pode ocorrer na equipe de pertencimento do analista, ainda que ele intervenha sozinho em um grupo. Neste sentido, reuniões de discussão de caso em instituições e assemelhadas podem ser vistas como momentos de análise intertransferencial para um analista intervindo sozinho em um grupo.

Aproximando-nos mais da descrição da AIT como técnica, notamos que ela é proposta como um método no qual os psicanalistas da dupla ou equipe associam e compartilham entre si e com seus grupos de pertencimento, suas experiências com o grupo atendido, seu próprio desejo instituinte (de criação do grupo atendido) etc. Como diz Kaës: "a análise intertransferencial visa restaurar a capacidade alpha dos analistas mantendo a situação analítica em cada um dos intérpretes: e para chegar neste ponto, a única via é assegurar a fluidez e as trocas de pensamentos e de afetos em cada um dos analistas entre eles"15 (Kaës, 1976b, p. 347, tradução do autor).

No espaço da AIT os psicanalistas devem poder pensar e fantasiar sobre o grupo atendido e sobre seus próprios vínculos, mas devem manter sempre a consciência do âmbito em que esse processo se dá. Neste sentido, Kaës adverte:

Chamo a atenção para o fato de que a análise intertransferencial não é uma inter-análise dos analistas. O trabalho que eles efetuam não se produz em uma espécie de "divã em gangorra", que poria tanto um como o outro na posição de analista. Fora destes limites, o risco é perverter a análise intertransferencial.16 (Kaës, 2004, p. 14, tradução do autor)

O trabalho de atravessamento de resistências, presente na ait, implica diretamente o confronto com o desprazer, o que ocorre em qualquer processo interpretativo, mas por isto mesmo, como apontado por Anzieu (1970/2009), este trabalho interpretativo só é possível mediante uma contrapartida de prazer na qual o prazer ligado à própria atividade de pensamento é elemento fundamental. No caso da ait, "A existência da equipe implica que os membros encontrem nela uma satisfação pulsional, notadamente libidinal e epistemofílica" (Kaës, 1982, p. 148, tradução do autor).17 Mas este prazer que pode e precisa ser encontrado na relação também corre o risco de capturar: "Ao mesmo tempo, a equipe interpretante só pode cumprir sua função se conseguir se separar do puro prazer"18 (pp. 148-149, tradução do autor). Em 1976a e 1982 esta problemática é discutida em termos do processo de escolha mútua das duplas ou equipes de trabalho em situação liberal. Em 2004, Kaës afirma a importância da AIT justamente quando em contexto institucional os psicanalistas "não possuem necessariamente e completamente a possibilidade de escolher seus coanalistas"19 (Kaës, 2004, p. 13, tradução do autor). O contraste entre os primeiros textos com o texto de 2004 evidencia a inevitável realização de um trabalho psíquico para que o vínculo necessário à AIT possa existir.

Não cremos acidental que Kaës enfatize tanto as armadilhas da idealização de um ou mais analistas dentro da equipe (e do grupo atendido) em seus textos anteriores a 2004. Parece-nos que a experiência da escolha dos coanalistas sobre a qual Kaës se debruça nestes textos é particularmente favorável à formação destes obstáculos. Por isso, a "livre" escolha de com quem trabalharemos juntos nem sempre é o caminho mais promissor para que a AIT possa ser instaurada. Cremos que os percalços, dificuldades e desafios da AIT quando nossa liberdade de escolha é limitada ainda foram muito pouco estudados. De todo modo, nossa experiência, seja como profissional da linha de frente, seja como supervisor de equipes, é que, por vezes, nos surpreendemos sobre a instalação ou não da AIT em uma equipe interpretante. Tantas vezes ela é possível ali onde de início não se acreditava ser. Testemunhamos alguns casos nos quais um psicanalista é posto em posição de trabalhar com pessoas sem formação e mesmo sem interesse em psicanálise e que lograram estabelecer um vínculo no qual a AIT foi possível. Tampouco uma animosidade inicial entre os coanalistas costuma ser um obstáculo intransponível no processo. Por outro lado, não são raros os casos em que psicanalistas de diferentes orientações ou de um mesmo grupo teórico encontram enormes dificuldades ou naufragam no projeto de trabalho comum. De fato, em nossa experiência, parece-nos que a AIT depende menos de diferenças de formação e orientações teóricas em si mesmas, do que das transferências que estes profissionais nutrem e sustentam com suas instituições formadoras e de pertencimento e dos lugares relativos (uns aos outros) que nelas ocupam.

 

Referências

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Recebido em: 1/6/2015
Aceito em: 9/6/2015

 

 

1 Agradeço a Olga Ruiz Correa pela leitura e comentários de versão anterior deste material. Versões preliminares, editadas e adaptadas deste texto foram apresentadas no seminário clínico "Psicoterapia de grupo na clínica do abuso/dependência de álcool e drogas", ocorrido em 27 de novembro de 2014 no Sedes Sapientae, e no x Congresso Brasileiro de Psicanálise das Configurações Vinculares, em Serra Negra em 22 de maio 2015, promovido pelo Nesme.
2 Na construção "análise intertransferencial" (analyse intertransferentielle), em nota de rodapé da página 14 de um capítulo intitulado "Os seminários analíticos de 'formação': uma situação social-limite" (Les séminaires "analytiques" de formation: une situation sociale-limite de l'instituition).
3 Temos conhecimento de apenas um texto sobre o tema em outro idioma. Na bibliografia cronológica das obras de René Kaës publicada em Pichon, Vermonel e Kaës (2010, p. 260), encontramos a referência: Kaës, R. (1996). Intertransferencia y análises inter-transferencial. Tramas, Revista de la Asociación de Psicoanálisis de las configuraciones vinculares, ii, 2, 97-110. Infelizmente não localizamos essa referência.
4 Para que o leitor tenha uma ideia do diferente nível de detalhamento de cada uma dessas produções, notemos que o primeiro texto de 1976 (Kaës, 1976a) possui 52 páginas, o segundo (Kaës, 1976b), nove páginas. O texto de 1984 é composto de 75 páginas, e o de 2004, por onze páginas.
5 Dans la situation psychanalytique groupale, et pour chaque analyste travaillant en équipe, l'intertransfert d'un analyste est composé de son contre-transfert en situation de groupe... et de son transfert sur son ou ses partenaires, sur l'équipe elle-même, sur l'institution instituant.
6 le contre-transfert est la réaction du psychanalyste au transfert de l'analysant ...
7 le contretransfert est, comme le transfert, un vecteur de la résistance, d'autant plus puissant qu'il est plus inconscient. L'analyse du contre-transfert est en fait, ..., la voie royale vers la connaissance de l'inconscient ...
8 un effet de la résistance des psychanalystes en tant qu'ils travaillent ensemble.
9 Je découvrais simultanément que, dans l'expérience des psychanalystes travaillant ensemble dans des groupes de libre parole ou de psychodrame de groupe, l'objet central de la résistance intertransférentielle est constitué par les enjeux des alliances inconscientes, et plus particulièrement par les enjeux des pactes dénégatifs.
10 ce qui est refoulé et/ou dénié chez les psychanalystes se transmet et se représente dans le groupe des participants et l'organise symétriquement; ce qui n'est pas analysé et demeure refoulé, ou dénié fait l'objet d'une alliance inconsciente pour que les sujets d'un lien soient assurés de ne rien savoir de leurs propres désirs.
11 une des voies majeures de la connaissance et du dégagement de l'ensemble des résistances qui sont mise en place dans les groupes.
12 Le contre-transfert e(s)t l'interprétation.
13 l 'ait aura pour objet l'analyse du contre-transfert des interprétants lorsqu'ils travaillent en équipe de deux ou plusieurs analystes.
14 est l'expression propre aux analystes du travail de l'intersubjectivité, l'élaboration de la résistance au travail psychique de plus-d'un-autre en chacun des sujets de l'inconscient qu'ils mettent en jeu dans leurs liens de travail. L'analyse intertransférentielle est l'objet, la méthode et le moment spécifique de ce travail pour les psychanalystes en situation de groupe.
15 l'analyse intertransférentielle vise à restaurer la capacité alpha des analystes en maintenant la situation analytique chez chacun des interprètes; et pour y parvenir il n'y a pas d'autre voie que celle qui assure la fluidité et l'échange des pensées et des affects chez chacun des analystes entre eux.
16 J'attire ici l'attention sur le fait que l'analyse intertransférentielle n'est pas une inter-analyse des analystes. Le travail qu'ils effectuent ne se produit pas dans une sorte de 'divan à bascule' qui placerait tantôt l'un, tantôt l'autre dans la position de l'analyste. Hors de ces limites, le risque serait de pervertir l'analyse intertransférentielle.
17 L'existence de l'équipe implique que ses membres y trouvent une satisfaction pulsionnelle, notamment libidinale et épistémophilique.
18 Cependant l''equipe interpretant ne peut accomplir sa fonction que si elle parvient à se dégager du seul plaisir.
19 n'ont pas nécessairement et complètement le choix du travail avec leurs co-analystes.

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