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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo Dec. 2015
TEMA: ANÁLISE DE GRUPO E GRUPOS EM ANÁLISE
A situação transferencial em grupanálise
The transference situation in group analysis
La situación transferencial en el análisis de grupo
Luiz Miller de Paiva
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. clinicamillerpaiva@gmail.com
RESUMO
O autor apresenta a técnica de grupanálise sob diferentes vertentes. O grupo inicia a terapia idealizando o analista como um super-homem, mágico, "sujeito do suposto saber", mas o analista sabe que, atrás dessa máscara, existem fantasias terríveis de "assassinato do Pai", constituindo a calamidade edípica.
Palavras-chave: transferencial, psicanálise de grupo, psicanálise, grupanálise
ABSTRACT
The author presents group analysis technique under different aspects. The group starts the therapy with an idealization of the analyst; he is seen as a superman, magician, "the subject supposed-to-know" (who has the supposed knowledge). However, behind that mask, the analyst knows there are terrible fantasies of "father's murder", which constitute the Oedipal calamity.
Keywords: transference, group psychoanalysis, psychoanalysis
RESUMEN
El autor presenta la técnica de análisis de grupo a partir de diversos vértices. Afirma que el grupo comienza la terapia idealizando al analista como un súper-hombre mágico, el "sujeto supuesto saber", pero el analista sabe que por detrás de esa máscara existen terribles fantasías sobre el "asesinato del Padre", lo que constituye la calamidad edípica.
Palabras clave: transferencia, psicoanálisis de grupo, psicoanálisis, grupoanálisis
Introdução
Picasso, após ter terminado o retrato de Gertrudes Stein, recebeu desta, de maneira desgostosa, o comentário: "Não está parecido comigo". Picasso retrucou: "Ficará um dia". Bion disse que Picasso era capaz de captar características da pessoa que estão ocultas para os olhos da maioria. Assim, também, em grupanálise, o analista deve saber enxergar aquilo que está oculto; falando de outro modo, de maneira "gestáltica".
O analisando, por sua vez, sente o grupo como um indivíduo fragmentado, contendo outro indivíduo oculto, à espera. Esse indivíduo oculto é aquilo que seria o líder do grupo. Bion (1981) comparou o papel do líder ao da esfinge. Sensação idêntica está ligada às fantasias precoces infantis sobre o conteúdo do corpo da mãe; por esse motivo, é importante investigar, estimular e ativar as fantasias de nível esquizoparanoide,
Iremos, em seguida, apresentar alguns modos de compreender a situação transferencial em grupanálise: perversão na transferência, transferência positiva e negativa, transferência como atitude defensiva, transferência como repetição e resistência, transferência como teoria da motivação, transferência e reversão da perspectiva e a transferência e a identificação projetiva.
Quando falamos perversão na transferência, dizemos que existe ataque às interpretações. Se o analista interpreta com mais vigor e severidade, satisfaz o masoquismo do grupo, que põe à prova a tolerância do analista e perverte a situação analítica por meio da defesa, isto é, na maneira de descarregar seus impulsos tanáticos. O grupo transforma-se em escoptofílico. A análise se desenrola em um marco de esterilidade. O perverso não sente o chamado do instinto, só usa o intelecto e, quando o sente (seu instinto), é através de inveja e culpa; não o sente como desejo, mas sim como ideologia. A polêmica, nesses casos, lhe é vital.
Perversão, neste sentido, não é defesa contra psicose - é a própria psicose. A realidade torna-se enlouquecedora para quem vive em um mundo de alucinações negativas. Alguns perversos no grupo apresentam afânise (inveja precoce) e sentem-se humilhados pelo progresso do tratamento.
Consideramos como transferência positiva quando a meta de chegada for construtiva. É a classificação de transferência em termos de efeitos. Lagache (1975) diferencia transferência de experiência. Transferência seria uma experiência do passado que está interferindo na compreensão do presente (presença do analista-mãe ou pai em situação edipiana) e experiência seria quando o passado serve para compreender a nova situação, e não para se confundir com ela.
Salientamos, com isso, a importância da regressão: transferência é passado e presente ao mesmo tempo, no tempo presente.
Os pacientes desenvolvem atitudes beligerantes contra o analista para se protegerem de sentimentos expressivos das dolorosas consequências dos desejos infantis sexuais e agressivos.
Uma paciente de grupanálise desejava ter relações sexuais com o analista para então, ao repetir esse desejo, não recordar seu desejo incestuoso, mas sim para repetir, mesmo em lugar de recordar, certas situações de sua infância nas quais se sentia marginalizada, excluída do triângulo amoroso; ela desejava ser agora a primeira a pertencer a esse triângulo, por intermédio da figura do analista. O resistido foi a vivência da cena primária, com angústias paranoides. O enamoramento pelo analista seria resistência a não recordar sua exclusão do triângulo dos pais.
Outro exemplo: a paciente transfere para o analista a imago materna a fim de se defender da figura paterna.
A compulsão de repetir, como manifestação instintiva, ganha um tratamento diferente quando Freud (1918/1948) descreve a função de desfazer experiências traumáticas (aliás, é necessário recordar que a tendência a repetir não é uma "compulsão", no sentido psiquiátrico do termo). Melanie Klein (1962) refere-se à compulsão de repetir como parte do esforço de resolver ansiedades maiores, substituindo-as por outras menos atemorizantes. Vejamos um exemplo: um paciente com sentimentos homossexuais muito recalcados, diante do analista-pai, defende-se com ódio, projeta-se e aparecem ideias paranoicas diante do analista, estas seriam a resistência de transferência, e os sentimentos homossexuais, o resistido. Para que esse paciente melhore, seria necessário que ele recordasse seus sentimentos homossexuais para com o pai e os repetisse com o analista.
Para alguns analistas, a transferência é resistência, predominantemente. O importante é utilizar a recordação da infância proibida, sendo que a transferência é um instrumento disso, embora o recordar possa encobrir o vivenciar (algumas vezes, as recordações servem para disfarçar os conflitos atuais com o analista) e sirva, também, para evitar o perigo de que se dissocie o passado do presente.
Segundo Racker (1960), a psicanálise se centra na neurose de transferência. A transferência é resistência e é o resistido, ou melhor, o analisando repete defesas infantis (que são resistências de transferência) para não tornar conscientes situações dolorosas e ansiosas da infância que estão sendo revividas na transferência.
Certas atitudes dos membros no grupo dificultam a neurose de transferência grupal. Segundo Ferreira (1980), a formação da neurose de transferência depende da atitude do analista (comportamento que imprime à matriz grupal), do tipo de paciente e dos objetivos do grupo.
Em grupanálise o paciente tem várias figuras transferenciais que agem de maneira cruzada; todavia, o analista continua sendo a figura mais importante - é a transferência múltipla, mas o grupo continua sendo visto como um todo. Podemos dizer, assim, que a neurose transferencial é individual, porém, cada membro estabelece sua neurose de transferência com o terapeuta, com os outros membros do grupo e com a matriz grupal.
Lagache (1975) explica a origem da transferência baseando-se na teoria da aprendizagem, através do efeito Zeigarnik. Este efeito é descrito pelo autor como a tendência a querer completar uma tarefa quando a pessoa é interrompida antes de conseguir finalizá-la. Ele afirma que se repete uma necessidade, e não que há uma necessidade primária de repetir; repete-se a necessidade de terminar a tarefa não cumprida.
Na repetição compulsiva transferencial no grupo está latente o desejo de completar algo que ficou incompleto, o incesto ou o parricídio; todavia esse desejo pode encontrar uma saída para o dilema: incesto "versus" angústia de castração. A saída estaria na aceitação pelo grupo das frustrações de seus desejos. O analista deve mostrar que as frustrações são fatos naturais. Todavia, se a transferência estiver a serviço do instinto de morte, então há necessidade do repetir compulsivo, sem presença de "insight", com o intuito de agredir o analista e se punir.
A transferência, por sua vez, pode causar um impasse analítico, quando não elaborada.
Em um trabalho anterior (Miller de Paiva, 1977), mostrei como o terapeuta deve estar atento às mensagens contraditórias do grupo, sendo necessário reverter a perspectiva para poder entender a dinâmica grupal e usar adequadamente a interpretação.
Podemos dizer que os pacientes nos oferecem a tese e, em contrapartida, lhes oferecemos uma antítese que os confronta com a verdade da qual eles estão fugindo, e os conduz a um novo descobrimento da verdade latente.
Identificação projetiva, Klein e Bion
A transferência no grupo pode também ser observada pela teoria da identificação projetiva. Klein (1962) afirma que à medida que a mãe passa a conter as partes más do self do bebê, ela não é sentida como um ser separado, mas como um self ruim. O mesmo ocorre na grupanálise: o ódio do grupo é dirigido ao terapeuta. Ogden (1979) diz que a identificação projetiva é um modo de comunicação pelo qual uma pessoa se faz entender, exercendo pressão sobre a outra pessoa, para que ela experimente um conjunto de sentimentos semelhantes aos seus e que os sentimentos projetados, depois de serem "psicologicamente processados" pelo recipiente, são reinternalizados pelo projetar.
A identificação projetiva tem a característica expulsiva de ser uma fantasia, a fantasia de livrar-se de pensamentos e sentimentos insuportáveis, e, para isso, o indivíduo tentaria dominar e controlar as outras pessoas de forma imaginária. Por outro lado, pode ser uma tentativa de comunicação. Se o analista mostrar essa situação, abrindo caminho ao diálogo, as experiências insuportáveis podem perder sua força tanática. Os membros do grupo podem apresentar características de onipotência e narcisismo com o propósito de evitar sentimentos intensos de raiva invejosa diante da capacidade do terapeuta.
Por vezes, os membros do grupo atribuem a si mesmos o que consideram valioso nas melhoras de atitude, reagem com sentimento de humilhação e reclamam que são levados a se sentirem pequenos; acabam por ridicularizar o terapeuta. Ao contrário, outras vezes usam o vigor do terapeuta como meio de sobrevivência.
Como os pacientes desejam que o terapeuta feche os olhos para o processo de evacuação mental e para negar os seus próprios problemas, reagem às interpretações com ressentimento violento, que é, como já mostramos, a per versão da transferência. O resultado é que se sentem mais rejeitados, incompreendidos, culpados, deprimidos, porque temem que suas repetidas projeções prejudiquem o terapeuta, com quem acabam identificando-se, isto é, sentem-se danificados por esse processo bumerangue de autopunição.
Rosenfeld (1987) pensa que nessa situação devemos salientar, o mais possível, a parte sadia do paciente, embora esta esteja perdida naquele momento. A capacidade de tolerar a agressividade do grupo dependerá muito do analista, pois, ficando firme e seguro, ele transmitirá ao grupo confiança no processo terapêutico, o que é de valor extraordinário, pois trata-se da transmissão de inconsciente para inconsciente. O analista transforma a projeção de maneira compreensiva e eficaz. Desse modo, o terapeuta torna-se o continente de fantasias projetadas. As simples repetições de situações infantis, sem vivências emocionais (insights), levam a uma constante repetição, pela mobilização de objetos internalizados cheios de fantasias tanáticas ou libídicas; porém, se esta for trabalhada na identificação projetiva e na contratransferência, haverá perlaboração, acabando em insight (ou pelos insights).
Não é fácil distinguir a transferência da identificação projetiva. O analista é, por vezes, o objeto da identificação projetiva e, em outras ocasiões, não o é (Bion, 1960). A neurose de transferência do grupo leva um ou mais membros a senti-lo como se fosse a grande mãe fálica ou uma figura combinada, que é sempre persecutória.
A identificação projetiva pode ser também uma comunicação do tipo evacuatória, isto é, de algo intolerável que se passa no grupo e que, para sua sobrevivência mental, precisaria evacuar. Bentivegna (1988) chama atenção para o tipo de interpretação, que é fornecida aos pacientes, pois certas interpretações, tais como "você está colocando as coisas ruins em mim", podem ser sentidas como acusatórias. Diz, portanto, que costuma interpretar mostrando que "o paciente está me comunicando o caminho que ele encontrou para salvaguardar-se". É a maneira pela qual também trabalhamos no grupo, no aqui e agora.
Interpretação comutativa de Cortesão
A transferência não é somente repetição compulsiva ou conflitos não resolvidos, mas também fantasias inconscientes operativas, pois, como diz Isaacs (1948), todos os impulsos, sentimentos ou modos de defesa são experimentados em fantasias que lhes conferem vida mental e representam os conteúdos particulares dos desejos. Não é só a capacidade de fantasiar que entra em jogo, mas também partes do corpo (self). Por conta da fantasia, o grupo considera suas próprias ideias, eventos, medo etc. como entidades personificadas, localizadas dentro de si mesmo, e os transfere para o analista, formando, por vezes, um sistema bumerangue de objetos bizarros, pois tem receio de que o analista os devolva com maior poder de maldição.
Proposta por Cortesão (1974 e 1979), a interpretação comutativa é descrita como a interpretação que comuta, isto é, que permuta, que troca uma posição ou ocorrência por outra. A interpretação comutativa é a interpretação de escolha que mais encoraja a evolução terapêutica no contexto do processo grupanalítico em que, ultimamente, reside toda a essência da análise na interpretação transferencial do grupo, facilitando o aparecimento e a manutenção do aparelho psíquico grupal.
Cortesão (1985) descreve o fenômeno da transferência grupal como latente e pulsátil, existindo em qualquer grupo.
Por latente, ele descreve o fenômeno transferencial que fica em estado latente, seguindo um curso indeterminado e permanecendo desligado. E por pulsátil, os fenômenos que podem ser trazidos à consciência, assinalados, considerados e interpretados. Então, eles ficariam ligados pela ação de uma interpretação. O autor dá especial importância à interpretação comutativa, aquela que atinge o superego do grupo, modificando-o e referindo-se ao aqui e agora, especialmente no sentido transferencial. A interpretação comutativa pode-se dar pelos próprios membros do grupo, como também pelo uso da psicoterapia de apoio ou sugestiva.
A maior parte dos analistas parece considerar todas as comunicações apresentadas pelo paciente como indício de transferência de relacionamento do início da infância e se abster, tanto quanto possível, de intervenções que não se referissem aos aspectos transferenciais do relacionamento entre o paciente e o analista. De acordo com Glover (1958), uma adequada concepção de transferência deve refletir a totalidade do desenvolvimento do indivíduo, que desloca para o analista não somente afeto e ideias, mas tudo o que uma vez aprendeu ou olvidou durante seu desenvolvimento mental. Greenson (1967) refere que a transferência é a vivência, no presente, de sentimentos, pulsões, atitudes, fantasias e defesas em relação a uma pessoa, que são inadequadas a essa pessoa e são uma repetição, um deslocamento de reação que se origina, com referência a pessoas significativas, no início da infância. Acentuo que, para ser transferência, deve ser uma repetição do passado e deve ser inadequada ao presente.
Os analistas que adotam esse ponto de vista consideram todas as associações do paciente como referentes, em essência, a algum pensamento ou sentimento a respeito do analista. Essa é também a opinião de Rosenfeld (1987); todavia Sandler et al. (1977) rejeitam a noção de que o material do paciente em análise possa ser visto como transferência e sugerem que, antes, deve-se examinar os diferentes aspectos do relacionamento em geral.
Transferência multidimensional e aparelho psíquico grupal
A construção de um grupo requer a elaboração de um aparelho psíquico grupal, surgido de conflitos antagônicos que pertencem a cada um dos participantes; ela resulta, como atividade de fantasia inconsciente, da luta contra o instinto de morte e da luta contra a angústia primária de sentir-se desprovido de uma fixação dentro de um conjunto coerente de relações.
No decurso do início dos grupos ocorrem movimentos de identificações projetivas e introjetivas, além de uma notável modificação de organizações psíquicas individuais e do aparelho psíquico grupal - trata-se da transferência multidimensional.
O aparelho psíquico grupal recebe, por identificação projetiva, as partes boas dos objetos internos dos participantes que, dessa forma, ficam resguardados de sua própria destrutividade; todavia, uma parte da agressividade, que permanece no interior de cada membro, pode-se pôr a serviço da luta contra o ataque dos maus objetos, assegurando assim a capacidade da função alfa, descrita por Bion (1960), e que aqui seria capacidade alfa da mãe (isto é, a tolerância da mãe diante das projeções destrutivas da criança em sua capacidade de conter, metabolizar e elaborar essas projeções dolorosas). Assim, os participantes poderiam elaborar, mediante uma reintrojeção das partes boas primitivamente depositadas por cada um no aparelho psíquico grupal, suas próprias funções alfa; em outros termos, teriam capacidade de sonhar, mentalizar, pensar em seus sentimentos de culpa. Caso contrário, uma forte agressividade, decorrente de situações sociais, torna difícil o estabelecimento da função alfa, o que pode provocar a destruição ou a desunião do grupo, no qual poderão predominar os elementos beta (Bion, 1960). Por vezes, esses elementos beta fazem com que o próprio grupo forme, por meio desse mecanismo, representantes da função alfa que, sob essas condições, funcionarão como líderes.
A transferência como fuga ao novo refere-se aos riscos inerentes à transformação de K em O (K - O) (O seria a realidade última, e K, o conhecimento). Essa transformação necessária, que decorre do trabalho interpretativo, ameaça o paciente quando este se vê na contingência de ser a doença, em lugar de saber a respeito dela. A transformação em O (realidade última) ameaça a megalomania, e só as interpretações, que promovem essa transformação, geram o amadurecimento mental. No vir a ser, na realidade última, inclui-se também o risco da mudança catastrófica. O é a realidade última, o novo, o desconhecido, o que ainda não evoluiu. A evolução para O (realidade última), através de K (conhecimento), é a que se capta na transferência.
Semelhante conceituação do fenômeno transferencial, dinamicamente referida e definida por fuga ao presente, ao novo, difere da noção clássica de transferência, que vai buscar no fenômeno da compulsão seu fator de propulsão.
Em 1963, Marty e M'Uzan (1966) descreveram o pensamento operativo, no qual haveria ausência de comprometimento afetivo (dificuldade em descrever seus estados emocionais), grande apego às coisas materiais, incapacidade para a criatividade (principalmente artística ou científica) e dificuldade para expressar a agressividade, motivo pelo qual esses indivíduos acabariam sempre somatizando.
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Recebido em: 30/5/2015
Aceito em: 9/6/2015