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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.91 São Paulo Dec. 2016

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Das estranhezas do cafuné

 

 

Luísa Valentini

Antropóloga. Autora de Um laboratório de antropologia: o encontro entre Mário de Andrade, Dina Dreyfus e Claude Lévi-Strauss (1935-1938) (FAPESP/Alameda, 2013), São Paulo. luisa.valentini@gmail.com 1

 

 

Quem lê em 2017 o ensaio "Psicanálise do cafuné" atravessa um caminho intenso de familiaridades, estranhamentos e inquietações que, quase oitenta anos após a redação original, se mantêm oportunos tanto para as ciências sociais quanto para a psicanálise. Sua republicação no Jornal de Psicanálise nos oferece, assim, um ponto de contato por onde podemos ver se formarem as faíscas desta espécie de eletricidade estática produzida em encontros diferenciais.

O texto de Roger Bastide se constrói, a título de exploração metodológica, numa conjunção corajosa de encontros tensos. O recorte por ele proposto põe em circuito, entre outras polaridades, as dos afetos e erotismos europeus e tropicais, de metrópole e ex-colônia, e do pensamento do século XX com a memória da escravidão. No próprio instrumental do autor e no contexto de escrita deste ensaio, é possível distinguir ainda o manejo de outros pares assimétricos: não só da psicanálise com as ciências sociais; mas também de ambas, gestadas numa Europa industrializada e burguesa, com o Brasil, sua diversidade e seus impasses; e, por que não, do homem observador com as mulheres cujos afetos, embora já distantes no tempo, o mobilizam de modo sensível.

Os leitores do texto não terão dificuldade de perceber nele ainda mais cintilações e trocas, cuja listagem seria um exercício fútil diante da sua potência. Vale, contudo, passearmos um pouco pelas inquietações de estranhamento e de familiaridade produzidas em nosso próprio encontro com a cena aí armada, pois elas se situam em lugares inesperados e, por isso mesmo, reveladores.

O cafuné esmiuçado por Bastide não é bem aquele que experimentamos hoje e trocamos regular e prazerosamente entre familiares, amigos e namorados. O cafuné de Bastide é, antes de tudo, um cafuné estranho. Trata-se de um cafuné histórico e sociológico, tanto pelo seu contexto bem demarcado, o das fazendas do Brasil colonial, quanto pela sua construção como objeto, quase desprovida de densidade sensorial. Quem já recebeu, recebe e faz cafunés contemporâneos chega a se indagar indiscretamente do contato do próprio Bastide com esse carinho, o prazer do toque no couro cabeludo e do entregar-se ao colo e às mãos de alguém. O distanciamento sociológico e a estratégia de se tratar o cabelo e a cabeça como símbolos fálicos, a remissão à funcionalidade prática de catação de piolhos - que é hoje, para nós mesmos, uma experiência distante - parecem um acesso muito mediado a uma experiência que nos é muito direta, cotidiana e de tradução simbólica quase desnecessária. O termo cafuné, desse ponto de vista, se revela aliás muito preciso justamente por ser hoje uma espécie de intraduzível autossignificante.

Este estranhamento na leitura diz, em alguma medida, da experiência de desconforto do sujeito sob interpretação, já que o deslindar de sentidos próprio das humanidades ocidentais se vale inevitavelmente do estabelecimento de conexões desconfortáveis para o sujeito da investigação, sendo orientadas por critérios que lhes são muitas vezes alheios. Certo sentimento inicial de desconfiança - mas, afinal, o que é que este francês pensa que sabe de cafuné? - pode ser de violação do espaço íntimo, declinando em afeto a tensão entre o exercício da voz local e o ser esmiuçado por um estrangeiro que atravessa o projeto universitário brasileiro que traz Bastide ao Brasil. Mas, para nossa surpresa, e como em todo pulo-do-gato interpretativo, é exatamente esse desconforto produzido na leitura que constitui o lugar da familiaridade de se descobrir dito por um outro, em cuja vibração tensa se espera acionar uma transformação. Esta fagulha no encontro com o texto pode se desdobrar em três vertentes produtivas como lições para um exercício de trabalho interpretativo no Brasil, seja ele psicanalítico, seja sociológico ou antropológico, e, com isso, levar o exercício de Bastide para outras direções.

A primeira delas é a mais óbvia, mas também mais pervasiva e difícil de enfrentar: o grande elefante branco de que as modelagens possíveis do gozo no Brasil se enredam de modo inescapável às restritas configurações oferecidas pela nossa estratificação social e pelas relações de exploração que nos produzem como pessoas. Em outras palavras, se queremos - sobretudo desde uma perspectiva de classe média urbana - pensar o cafuné como gesto de carinho familiar e doméstico, preservado da violência das relações de exploração do trabalho, ainda há e ainda haverá, nos nossos encontros afetivos e nas nossas oportunidades de autoindulgência, aquele cheiro de perversão mal encoberto pelo tempero de afeto tematizado por Gilberto Freyre e que tanto inspira o ensaio de Bastide.

O segundo é o desconforto próprio das relações de saber-poder, isto é, o desconforto com a produção da posição de Bastide como analista destas mulheres todas de quem ele fala. O fato de o autor se querer e se fazer aberto às dores e limitações postas às mulheres das fazendas da cana, sua competência metodológica e a delicadeza de seu olhar aparecem como táticas úteis para quem por ofício se situa nessa posição problemática, mas vale aprender também com as perguntas que se referem ao pano de fundo desse bordado e que não deixarão de nos rondar em nossa própria prática. Cada uma destas mulheres não será diferente das outras em seus afetos e táticas de convivência? Será possível atribuir uma ideia de recalque desde olhares tão mediados como os dos viajantes, da Inquisição? Onde os outros espaços íntimos que lhes eram disponíveis, nos quais isto terá sido talvez de outros modos desenrolado e tematizado? E como desconsiderar os movimentos, afetos e dores das outras mulheres fundamentais à cena - as africanas escravizadas que massageiam as cabeças das brancas?

Detectam-se aqui também, em avesso e direito, diferentes modalidades de um problema mais geral, que diz respeito à escala das redes em que se conformam certos efeitos de vínculo e corte que, por contraste, delineiam as imagens da pessoa, da família, do grupo social. O que nos encaminha a um terceiro desconforto - e este mais propriamente antropológico - que diz respeito às modelagens possíveis destas cenas afetivas e corporais. O que as noções de inconsciente e de recalque podem nos dizer ainda hoje? Serão elas produtivas para além do encantamento da explicação, da revelação, da demonstração de competência do analista? De que outros recursos dispomos para falar dos muitos fundos e endurecimentos que cercam a figuração da pessoa, de suas trajetórias, suas vontades, seus alívios?

Diz da qualidade da descrição do próprio Bastide o podermos nos fazer estas perguntas, e tanto melhor se aproveitarmos esse circuito elétrico de ditos e não ditos que ele compõe para encetarmos novos modos de dividir velhos problemas.

 

 

Recebido em: 13/12/2016
Aceito em: 20/12/201
6

ERRATA
1. JORNAL de PSICANÁLISE 49 (91), 181-183. 2016
Na página 183, no artigo "Das estranhezas do cafuné", de Luísa Valentini onde se lê:

luiza.valentini@gmail.com
leia-se:
luisa.valentini@gmail.com

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