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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo Dec. 2017
TEMAS LIVRES
A propósito da mudança catastrófica de Bion e do conflito estético de Meltzer: uma ilustração clínica
On Bion's catastrophic change and on Meltzer's aesthetic conflict
Sobre los conceptos de cambio catastrófico de Bion y de conflicto estético de Meltzer
À propos du changement catastrophique de Bion et du conflit esthétique de Meltzer
Marisa Pelella Mélega
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São Paulo. pmelega@uol.com.br
RESUMO
A autora aborda neste artigo dois conceitos fundamentais do modelo bioniano-meltzeriano da mente: "o conflito estético" de Meltzer e a "mudança catastrófica" de Bion. A seguir são aplicados num caso clínico. São conceitos fundamentais, pois estruturam todo o processo de "aprender da experiência", todo o processo do desenvolvimento da mente simbólica, com suas implicações éticas, emotivas e cognitivas. O "conflito estético" comporta a visão do crescimento mental como uma função estética, fundada na reciprocidade entre mente-bebê interna e seus objetos internos, com base na efetiva resposta do bebê à mãe-enquanto-mundo. A experiência complexa da beleza do mundo, com o desejo de conhecê-la, põe em movimento a atividade de formação simbólica, uma função do "nível estético" da mente.
Palavras-chave: Bion, Meltzer, mudança catastrófica, conflito estético
ABSTRACT
The author discusses two basic concepts of the Bionian-Meltzerian model of mind: Meltzer's "aesthetic conflict", and Bion's "catastrophic change". These models are applied to a clinical case. They are considered fundamental concepts because they structure the whole process of "learning from experience", the whole process of developing the symbolic mind, besides its ethic, emotional, and cognitive effects. The aesthetic conflict involves seeing the process of mental development as an aesthetic function, which is founded on the reciprocity between the internal baby's mind and its internal objects. It is based on the baby's effective answer to the "mother-as-world". The complex experience of the world's beauty, with the desire to know it, activates the symbolic construction, which represents a mind's function at the "aesthetic level".
Keywords: Bion, Meltzer, catastrophic change, aesthetic conflict
RESUMEN
En el presente trabajo, la autora aborda dos conceptos fundamentales del modelo bioniano-meltzeriano de la mente: el "conflicto estético" de Meltzer y "cambio catastrófico" de Bion. A continuación, los aplica a un caso clínico. Son conceptos fundamentales porque estructuran el proceso de "aprendiendo de la experiencia", todo el proceso de desarrollo de la mente simbólica con sus implicaciones éticas, emotivas y cognitivas. El "conflicto estético" abarca la visión del crecimiento mental como una función estética, fundada en la reciprocidad entre mente-bebé interna y sus objetos internos, a partir de una efectiva respuesta del bebé a la madre-en cuanto-mundo. La compleja experiencia de la belleza del mundo junto al deseo de conocerla pone en movimiento la actividad de formación simbólica, una función del "nivel estético" de la mente.
Palabras clave: Bion, Meltzer, cambio catastrófico, conflicto estético
RÉSUMÉ
Dans cet article l'auteur discute deux concepts fondamentaux du modèle bionien-meltzerien de l'esprit: "le conflit esthétique" chez Meltzer et le "changement catastrophique" chez Bion. Ensuite, ces concepts sont appliqués à un cas clinique. Ce sont des concepts-clés car ils structurent l'ensemble du processus "d'apprentissage de l'expérience", le processus du développement de l'esprit symbolique, avec ses implications éthiques, émotives et cognitives. Le "conflit esthétique" comporte la vision de la croissance mentale comme une fonction esthétique, basée sur la réciprocité entre l'esprit-bébé interne et ses objets internes, laquelle se fonde sur la réponse efficace du bébé à la mère en tant que monde. L'expérience complexe de la beauté du monde, et le désir de la connaître, met en branle l'activité de construction symbolique, une fonction du "niveau esthétique" de l'esprit.
Mots-clés: Bion, Meltzer, changement catastrophique, conflit esthétique
Introdução
Vou abordar neste paper dois conceitos fundamentais, "o conflito estético" de Meltzer e a "mudança catastrófica" de Bion, e então aplicá-los a um caso clínico supervisionado por Meltzer.
Esses conceitos são fundamentais porque estruturam todo o processo de "aprender com a experiência" e todo o processo do desenvolvimento da mente simbólica, com suas implicações éticas, emocionais e cognitivas.
Para Bion não há dor sem imaginação, e na ausência de dor não há vida mental. Daí vem a necessidade de aprender a tolerar "a mudança catastrófica", que, para Bion, é uma experiência emocional vivida como break up (erupção), como break down (colapso), como breaktrough (intromissão) ou como break in (implosão). Então, de acordo com Bion e Meltzer, é fundamental que o psiquismo suporte a mudança catastrófica que está implícita no conceito kleiniano de "posição depressiva".
Meltzer elaborou o "conflito estético" (1988) com base em sua experiência na clínica e, particularmente, no trabalho com crianças autistas. Este trabalho lhe deu a "chave" para "ler" a falência da formação simbólica pela ausência do espaço interno, da tridimensionalidade. Os conhecimentos trazidos pela Observação Mãe-Bebê (E. Bick) e sua capacidade de apreciação estética da poesia completaram a elaboração que o levou ao conceito de conflito estético.
Meltzer, em Studi di metapsicologia allargata (1986/1987), afirma que o material psicanalítico e a observação de bebês mostram, como os poetas, que o "conflito estético" em presença do objeto é anterior aos conflitos de separação, privação, frustração a que tanta atenção foi dedicada.
O "conflito estético" considera a visão do crescimento mental como uma função estética, fundada na reciprocidade entre a mente-bebê e seus objetos internos, com base na efetiva resposta do bebê à mãe-enquanto-mundo.
A experiência complexa da beleza do mundo, junto ao desejo de conhecê-la, põe em movimento a atividade de formação simbólica, uma função do "nível estético" da mente.
O seio, como objeto parcial combinado, foi descoberto por Klein. De acordo com Meltzer, Klein mostrou certa ambivalência ao desenvolver este conceito, talvez por ser uma ideia nova. O "objeto total combinado", os pais internos homem e mulher em conjunção, é fonte de confiança e desconfiança, devido ao interior desconhecido e não cognoscível da mãe.
A urgência em conhecer e a possibilidade de pôr em movimento a formação simbólica dependem da estabilidade da posição depressiva com capacidade de suportar a inveja e a destrutividade.
Para Bion e Meltzer, é salutar a urgência epistemofílica, a investigação. Eles consideram que os caminhos científico e artístico levam ao conhecer: o científico explorando o interior do objeto pela imaginação e o artístico aguardando a voz que fala vinda do interior do objeto. Ambos se distinguem da identificação intrusiva que busca controle do interior do objeto.
Bion nos alerta de que, para conservar a vitalidade das emoções turbulentas, evitando automutilação, é necessária a tolerância que Keats chamou de "capacidade negativa".
É essa a ligação entre conflito estético e mudança catastrófica, acontecimentos que despertam emoções contrárias de amor e ódio e que devem ser superadas para a conquista do caminho para o conhecimento. É necessário enfrentar a experiência em vez de retirar-se dela. É preciso ter condições de elaborar a experiência emocional e simbolizá-la.
O companheiro metafisico do conflito estético (Meltzer & William, 1981/1988) é, para Meltzer, o claustrum (Meltzer, 1992/1993). Retirar-se do conflito estético para se defender das emoções ou buscar conhecer por identificação projetiva intrusiva são caminhos para a entrada no claustrum, para a entrada no objeto interno.
Ilustração clínica
Marie, 32 anos, conta na primeira entrevista que sofre há 2 anos de "ataques de pânico". Só sai de casa acompanhada e de carro, mesmo para percursos breves. Preocupa-se excessivamente com sua saúde - um sintoma qualquer pode ser um câncer, ou aids; sente-se constantemente ameaçada de morte, defende-se fechando-se em casa e praticando rituais.
Conta em seguida um episódio da primeira infância. Seus pais, ela e a irmã passaram seis meses na Europa quando o pai obteve uma bolsa de estudos. Nessa ocasião os pais tiveram que passar quinze dias na Alemanha, e deixaram Marie, então com 2 anos e meio, e a irmã com 1 ano e meio numa instituição de freiras francesas na Suíça. Isso foi muito traumático para Marie. Ela conclui a entrevista dizendo que a análise é sua última esperança, embora tenha dúvidas quanto à sua eficácia. Diz, também, que já tinha feito uma psicoterapia, uma vez por semana, durante oito anos.
Marie descreve seus estados de pânico e suas preocupações obsessivas. Demonstra grande capacidade verbal, sabe tudo sobre seus sintomas, mas não consegue mudar nada.
Aos poucos fui percebendo que o que parecia um comportamento de colaboração com o nosso trabalho era, na verdade, um modo de Marie manter-me distante, tratando-me como uma "entidade médica" que poderia "curá-la" se eu ficasse bem informada sobre o que ela vivia.
Não havia uma relação de intimidade entre nós duas.
Minhas intervenções transferenciais eram sentidas como inadequadas, e, às vezes, ela respondia com irritação, pois as via como indagatórias e intrusivas. Eram a prova de que eu não acreditava no que ela me dizia.
Durante uma supervisão com Meltzer (1991/1992), em Oxford, sobre Marie, ele expôs algumas hipóteses que depois publicou em seu livro Claustrum (1992/1993). Suas hipóteses possibilitaram que eu compreendesse o mundo de Marie e me deram instrumentos para continuar sua análise. Em seu livro Meltzer descreve a particular configuração que denominou claustrum. É uma configuração na qual há um processo de identificação projetiva intrusiva nos objetos do mundo interno do próprio indivíduo.
Meltzer comenta que o pânico de Marie é o passado presentificado, incapaz de ser digerido, incapaz de ser pensado. O que é fundamental a ser visto e a ser mostrado é que ela está num mundo fechado claustrofóbico. Ela vê o mundo externo como perigoso, mas na verdade aquilo que ela acha ser o mundo externo é um outro compartimento dela. Então, com pacientes assim, o analista precisa descrever o mundo em que eles vivem, tentando desvincular a parte sadia da personalidade da parte que está em identificação projetiva maciça, que, com a arrogância e a onipotência, dá uma aparência de pseudomaturidade.
Interpretar a transferência, quando é essa configuração que está presente, tem um efeito negativo porque parece ser um pedido insistente do analista para ter maior intimidade. Também porque o paciente está diante do "desconhecido", do inconsciente. A relação se torna uma análise quando é possível encontrar a "criança perdida" no paciente, e é isto que vai permitir uma relação de intimidade.
A sintomatologia claustrofóbica, também chamada de "síndrome do pânico", corresponde a uma personalidade pseudomadura, conceito que está em consonância com o de "falso self" de Winnicott.
Para Meltzer a fenomenologia do claustrum está ligada ao conflito estético não superado. O conflito estético surge no bebê inicialmente diante da beleza da mãe com seus seios, seus olhos, seu colo, sua voz, configurando uma "inundação sensorial", e com a impossibilidade inicial de "compreender" seu interior. Uma alteração e modulação da voz da mãe, um olhar que se afasta momentaneamente do bebê, gestos não dirigidos para ele causam "estranhezas": a mãe se torna desconhecida naquele instante; o bebê conhece seu exterior, mas desconhece seu interior. A presença de outros estados mentais da mãe faz com que o bebê fique sem saber. A beleza da presença da mãe fica obscurecida pela sua ausência mental. Espera-se que a mãe ofereça com sua reverie e sua função alfa (Bion) compreensão e significado para que tal mudança não seja catastrófica (Bion). Assim a "beleza cotidiana" na vida do bebê, segundo Meltzer, vai sendo conseguida quando, por meio da imaginação, o bebê busca conhecimento e compreensão.
Enquanto predomina a fantasia inconsciente de identificação projetiva no objeto interno, o self prisioneiro tem um comportamento essencialmente de denegrir, como podemos ver em um trecho de uma sessão de Marie após um ano de análise: "Ela diz que leu que 'as fobias não têm cura, só as medicações podem ajudar um pouco. A análise não as resolve, as fobias não diminuem', e ela não consegue sair de casa. Continua em prisão domiciliar".
É essencial, diz Meltzer, mostrar-lhe que ela está aprisionada dentro do objeto e que o analista pode entrar e sair porque não vive no mesmo mundo dela, vive no mundo externo. A transferência infantil surge e se manifesta nas ocasiões das separações, o que quer dizer que a "criança saiu do claustrum" e pode entrar em contato com o analista. Mas, diante do sofrimento, por não estar preparada para enfrentar experiências emocionais, "volta correndo" para dentro do objeto interno.
Esse movimento de "voltar correndo" para dentro do objeto pode ser visto após dezoito meses de análise. Marie passou a me escutar e a não atacar com veemência aquilo que eu lhe dizia. Diminuía a desconfiança no processo de análise. Numa sexta-feira pela manhã, ao final de uma semana analítica que transcorria de segunda a quinta-feira, recebi um telefonema pedindo-me uma sessão extra, pois ela não havia dormido, estava com pânico de morrer e havia vomitado.
Ofereço-lhe a sessão, e ela se tranquiliza.
Na sessão seguinte, na segunda-feira, ela me ataca porque não lhe dei o número do telefone de minha casa (que ela nem mesma pedira). Dizia que eu não queria ser incomodada durante o weekend e que não me importei em saber como ela estaria.
Na sessão seguinte (terça-feira) me comunica que se sente melhor aqui comigo, mais calma, informa que leu seu diário de quando tinha 13 anos e constatou que tinha fobias desde então. Podemos então conversar para compreender algo sobre suas "crises de pânico" e associá-las com o pânico que experimenta quando não se sente capaz de se manter em contato com suas experiências emocionais. Sente que é difícil elaborar não apenas a ausência, mas também a presença humana.
Continuação da análise
Sessão de 21/08/1990
M - Hoje tive angústia. Ontem, de repente, assistindo a TV, tive falta de ar, sem ter feito nenhum esforço e também um pouco de colite...
Falo sobre sua vida imaginativa, que ela não percebe, mas que, mesmo assim, age e tem efeitos até sobre o corpo. Ela conta um sonho, um pesadelo:
Estava na casa da avó (onde ela já morou uns oito meses quando voltou de viagem dos Estados Unidos com a família), tudo escuro, feio, e havia uma ameaça de invasão... Fora, na frente da casa, uns moleques de bicicleta... quis gritar para espantá-los, e a voz não saía. Estou ocupada em juntar meus pertences... parece que meu pai entra pelos fundos da casa... Não sei se havia uma empregada... E, lá pelas tantas, animais vão saindo pelos fundos, como patos, marrecos, eu continuo ameaçada.
Ela faz associações dizendo que está angustiada, talvez com a proximidade da separação, pois eu iria me afastar por 20 dias.
Digo-lhe que no sonho ela parece estar vivendo a aproximação da separação... parecendo ter que se mudar do lugar da análise para um lugar fechado, mas não seguro e escuro (a falta de ar de que se queixa), com seus pertences, que, no sonho, são um rádio, bolsa etc. Ela está juntando seus "pertences emocionais" que ficarão comigo quando nos separarmos.
Sente uma ameaça vinda do mundo externo (crianças de bicicleta = vida pessoal da analista?). O que fazer? Quem a afasta da sua análise? Mas ela não toca nesse assunto = Não "sai a voz" para falar do presente...
Distúrbio do pensamento
Outro aspecto de seu funcionamento que passou a emergir nas sessões era sua argumentação contínua, a deturpação do sentido, a ambiguidade da comunicação. A minha escuta e continência e a tentativa de levá-la a examinar o que dizia e sentia eram atacadas e transformadas em argumento sobre a "inutilidade de fazer análise, pois seu problema é constitucional, e tudo o que ela precisa é que gostem dela e que a reassegurem de que ela não tem nada"... (referindo-se a doenças físicas) "e que lhe deem certeza de que ela pode viver e que nada vai lhe acontecer". Assim, durante essas sessões, eu a via unindo momentos diversos, contextos diversos, deturpando o significado. Ela parecia "fugir de um significado como quem foge de um lugar para não ser apanhado". Eu sentia que precisava tomar todo o cuidado para falar, pois tudo poderia ser usado contra mim e transformado em acusação. Em várias ocasiões, por causa dessa rigidez, eu perdia qualquer esperança de que fosse possível analisá-la. A deturpação de sentido e a argumentação contínua podem ser vistas numa sessão do terceiro ano de análise que foi posteriormente supervisionada por Meltzer (1992/1993).
Sessão de 02/12/1992
Marie inicia a sessão dizendo que passou a semana chorando, que eu mudei meu consultório para novo endereço para me ver livre dela, que eu poderia ser processada por mudar de bairro, um lugar muito distante e que criou um transtorno. Agora não sabe como será possível ser trazida...
Digo-lhe que conseguimos horários mais favoráveis, que a irmã se dispõe a trazê-la, que todos colaboraram... Ao que ela responde:
M - É, mas o mal-estar de viajar até aqui ficou para mim.
Respondo que entendo o que sente, mas vejo que conseguiu vir e que agora estamos aqui trabalhando.
Passa a contar sua preocupação de estar com aids, porque apareceu uma afta na gengiva e ela leu que um contágio frequente é via dentista, e ela esteve no dentista no mês passado.
Diz também que vai chegar dezembro e que todos, incluindo a analista, estarão de férias. Ela terá que ir à praia com os pais passar os feriados, o que é um martírio, mas que nesse ano terá de ir, porque no ano passado os pais não foram por causa dela.
Pergunto o que ela está fazendo para preparar-se para "tal guerra".
Marie diz que não está fazendo nada além de rezar para não morrer. Detesta tudo o que existe lá: areia, pernilongo, bagunça... Nada lhe dá prazer, nada lhe agrada. Se fosse como antigamente, quando ela era normal...
Pergunto o que lhe dava prazer e do que ela gostava antigamente.
Ela responde que não adianta perder tempo com isso.
A - Imagino que não será o mesmo tempo que perde pensando nas coisas que a desagradam.
Marie diz que isso não serve para nada, que é um exercício de hipóteses.
Digo que pensar no desagradável também é um exercício de hipóteses.
Ela responde que não, porque a existência da afta faz parte da realidade.
A - Mas da afta você vai para a aids numa velocidade...
Ela me interrompe para dizer que, nas condições atuais, caso não tivesse pânico...
M - Não adianta... Não sei do que eu gosto. Já me perdi, não sei mais como eu era, é um exercício que me faz sofrer muito, porque eu vou falar de coisas inatingíveis... Nunca mais vou voltar a ser quem eu era.
Eu lhe mostro que é mais difícil falar do que gostaria e de ter pensamentos bons, do que falar que acha estar com aids...
Ela diz "pensamentos bons, mas inatingíveis" e que bom seria se ela pudesse planejar e fazer, ou se eu lhe desse esperança...
M - Você não me diz que eu vou ficar curada da porcaria do pânico... então, o que adianta me perguntar o que eu gostaria de fazer... É a mesma coisa que você perguntar o que o Marcelo Rubens Paiva gostaria de fazer se andasse, e ele ia dizer que gostaria de jogar futebol, nadar...
A - Você pega esse exemplo da pessoa tetraplégica, fica trancada em casa com medo de sair e se sente como ele.
M - Ele não fica trancado, eu tenho até inveja, porque ele está lá no seu programa fazendo de tudo... só o fato de me comparar com ele não quer dizer que eu tenha de ma conformar com ser paralítica.
A - Aí está a deturpação! Foi você que trouxe a comparação...
M - Mas você aproveitou!
A - Eu aproveitei para mostrar que essa pessoa não pode mais jogar futebol, mas pode fazer outras coisas... e você não quis escutar assim... escutou-me acusando você.
M - Porque eu só queria que alguém me desse a certeza de que o meu caso não é como o dele...
A - Queria ter certeza! Nenhum ser humano tem certeza de nada. Por que será que você não pode ter dúvidas e funcionar assim mesmo?
Converso com ela falando sobre a "maneira de funcionar olhando só para uma parte do problema!" Digo que já conversamos sobre sua desesperança, sobre seu desejo de que eu faça milagres e sobre eu ter que defendê-la de todos os pensamentos ruins que sua mente constrói.
Digo também que ela espera que eu tenha uma verbalização contínua de pensamentos bons para neutralizar os ruins, que precisa saber se pode ficar boa, mas sente que eu não sei lhe dizer isso, e esta é a sua "ideia de cura".
Quando lhe mostro movimentos para a frente, de progresso, que ela se mostra mais permeável, que escuta mais, ela se assusta e responde que não há nada de novo, que sempre foi assim, e isto serve para me confundir e atacar nossa relação, que vejo que ela precisa correr e arrumar isso e aquilo antes que eu saia em férias. A fala supõe que se sente ajudada com a presença da análise.
M - Mas você nunca me dá certeza de que eu vou sarar completamente".
Comentário
Os transtornos do pensamento de Marie, suas argumentações falsas são mostradas pela analista, parecendo mais um debate, argumentos e contra-argumentos do que uma sessão de análise. Marie argumenta que, se eu lhe mostro que ela distorce a realidade, eu lhe tiro a confiança em si. Que, se eu gostasse dela, dissesse coisas boas para ela, a acalmasse de seus temores, ela poderia melhorar. Com essas observações, na verdade, ataco sua onipotência, e isto a deixa em crise consigo mesma, porque ela espera, ao contrário, que eu alimente sua onipotência para "se sentir melhor". Digo que acredito ajudá-la quando lhe mostro que ela falsifica a realidade.
Após a leitura dessa sessão (02/12/92), Meltzer comenta:
Ela produz um prazer negativo, de que suas fantasias não se realizam - é o exercício hipotético que ela faz, que ela produz em sua mente, e assim não ocorrem experiências com as quais poderia aprender. Ela faz uma história para prevenir experiências. Faz uma história particular sobre o que deve acontecer e continua com a história sobre o que teria acontecido, e o prazer da vida vem do que não aconteceu, o prazer vem do que deveria acontecer.
É uma parte da desordem do pensamento com argumentos circulares.
Quando se refere ao apresentador tetraplégico, ela diz não ter inveja de sua capacidade de superar seu handicap... Poderíamos pensar num processo de splitting da inveja, mas eu penso, diz Meltzer, que não é! Penso que é um argumento do por que ela não tem que ter inveja dele, de suas habilidades para superar seu handicap, um argumento do por que ela não tem inveja de superar seu handicap... É um pensamento circular e confuso.
Você, Marisa, está lidando com alguém que, mais que uma criança com distúrbios de crescimento... está lidando com alguém com distúrbios de pensamento... Ela é muito argumentativa...
Tecnicamente é difícil, mas é necessário trabalhar com argumentos a fim de lhe mostrar seu distúrbio de pensamento.
É uma tarefa realmente árdua e desagradável esta de trabalhar com pacientes com desordem de pensamento, por serem, em minha experiência, extremamente argumentativos e não poderem usar a linguagem para razões corretas.
Você, Marisa, não está lidando só com um "bebê estragado", mas está lidando também com uma menina que não pode usar a sua mente de um modo construtivo, particularmente porque ela tem gasto o seu tempo com este jeito negativo de entretenimento, este entreter-se com histórias catastróficas que nunca se realizam, isto dá grande prazer. É como quando você vai ver um filme, e daí o risco de você vivenciá-lo na verdade não existe.
Sessão de 07/12/1992
Vem trazida pela mãe, que permanece na sala de espera, o que não é usual.
Ao entrar, dá um pulo para "não tocar" a linha que une os dois pavimentos, um movimento que é frequente. Fala-me do enorme medo que sente e não sabe por quê. Chora dizendo que não sabe se tem medo de morrer ou de viver. Ontem ela tomou sol no terraço de sua casa e, quando foi tomar banho, foi "assaltada pelo pensamento de que as férias estão próximas"... A viagem para a praia...
Penso que Marie chegou ao ponto de não saber, enquanto antes sabia tudo, mas não mudava nada. Noto este progresso!
Meltzer descreve o fenômeno do claustrum como um movimento evolutivo no desenvolvimento, em torno dos 2 anos de idade, que vai sendo superado se houver condições, se a criança puder contar com a presença mental dos pais.
Marie conta uma experiência avassaladora por ter sido deixada pelos pais numa instituição por 15 dias. Pensou que eles não iriam voltar nunca mais. Possivelmente se defendeu dessa ausência enclausurando-se no objeto interno. Como lidar com tal mudança? A mudança deve ter sido catastrófica, e a partir de então Marie se retirou para o claustrum?
Ver os pais retornando provocou nela uma forte reação emocional, para a qual ela ainda não tinha um aparato mental para fazer a elaboração dessa forte experiência.
Proponho que possamos refletir sobre as questões que o caso de Marie tenha suscitado e, também, sobre as formulações de Meltzer referentes ao conceito de claustrum.
Referências
Bion, W. R. (1981). Il cambiamento catastrófico. In Seminari brasiliani. Turim: Loescher. (Trabalho original publicado em 1973-1974) [ Links ]
Bion, W. R. (1994). Emotional turbulence clinical seminars and other works. Londres: Karnac. (Trabalho original publicado em 1987) [ Links ]
Keats, J. (1984a). Lettere sulla poesia (N. Fusin, ed.). Milão: Feltrinelli. [ Links ]
Meltzer, D. (1987). Studi di metapsicologia allargata - Applicazioni cliniche del pensiero di Bion. Milão: Raffaello Cortina. (Trabalho original publicado em 1986) [ Links ]
Meltzer, D. (1993). Claustrum. Uno studio dei fenomeni claustrofobici. Milão: Raffaello Cortina. (Trabalho original publicado em 1992) [ Links ]
Meltzer, D. Comunicação pessoal em Oxford, 1991, e em Montevidéu, 1992. [ Links ]
Meltzer, D., & Williams M. M. (1988). La comprensione della bellezza. Turim: Loescher. (Trabalho original publicado em 1981) [ Links ]
William, M. H. (2012). Lo sviluppo estetico: lo spirito poetico della psicanalisi. Saggi su Bion, Meltzer, Keats. Roma: Borla. (Trabalho original publicado em 2010) [ Links ]
Recebido em: 15/8/2017
Aceito em: 7/9/2017