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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.95 São Paulo July/Dec. 2018

 

AULA INAUGURAL DO INSTITUTO DE PSICANÁLISE

 

Atitude analítica1

 

 

Maria Olympia de Azevedo Ferreira França

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo. mofranc@terra.com.br

 

 

Assim como ética e moral são temas relacionados, mas de âmbitos diferentes, percebo quando da reflexão sobre atitude analítica contida no Método da Psicanálise que é importante pensá-la sob dois registros diferenciados e concomitantes:

1. a atitude interna do analista, organizada e mantida pelos seus recursos mentais: caráter, inteligência, sensibilidade, afetividade, capacidade intuitiva, a arte da linguagem e sua cultura humanista.

2. a atitude externa do analista (postura, fisionomia, linguagem, tonalidade de voz, sala de consulta etc.) como expressão de sua estrutura e organização psíquicas balizadas pelo método e pela técnica psicanalítica aprendida. No decorrer do exercício da sua função, o analista irá selecionando os modos de ser mais sintônicos consigo, isto é, seu "jeitão de ser", favorecendo a autenticidade e a liberdade na escolha de seus comunicados ao paciente. Para tanto, será fundamental sua própria análise, a fim de elaborar e conhecer internamente o acervo de suas próprias experiências e concepções de vida. Esses são os alicerces de suas atitudes internas e externas no trabalho analítico, tendo como norte a postura de compaixão e de solidariedade em face do paciente, suas dores e suas alegrias. O conhecimento profundo de si possibilitará ao analista distinguir a "neutralidade" intrínseca ao método analítico daquela usada como defesa de suas dificuldades pessoais.

Quanto à neutralidade do analista, convém lembrar que por anos seguidos ela foi entendida e realizada como uma atitude quase desumana, desprovida de afeto e, assim, poderíamos dizer, mentirosa. A neutralidade pregada por Freud é aquela em que a atitude do analista não está diretamente balizada por concepções, sejam religiosas, sociais ou de vida, e não diz respeito à anulação de seu mundo mental. Conceber como neutralidade do analista a isenção de seu mundo interno em suas atitudes é dar a ele a qualidade de robô.

 

 

Ofício do psicanalista

Freud refere-se à atividade do psicanalista como um dos ofícios mais difíceis de serem exercidos, acrescentando a este a paternidade e o exercício de Juiz.

O ofício do psicanalista não consiste em uma técnica, como se poderia entender, mas é arte no sentido de Aristóteles. O resultado não é da ordem da certeza ou do necessário, mas da ordem do provável e do possível. Não opera com base em provas, mas com base em indícios, deduções, ideias intuitivas, tendo a marca da subjetividade de quem a opera, impossível de ser descartada. Muitas vezes a racionalidade pode também ser necessária como elemento integrador da captação sensorial e/ou da intuição do analista a fim de que o paciente possa usufruir de sua colaboração.

Diz Chesterton: "existe uma estrada que liga o olho ao coração que não passa pelo intelecto".

Considero imprescindível para uma fiel leitura das condições psíquicas do paciente, naquele "dia e lugar", que o analista dedique atenção ao todo do paciente: seu corpo e seu estado de alma, sua comunicação corporal, postura, expressão fisionômica, seus gestos (mecânicos ou não), sua tonalidade de voz, que muitas vezes transmitem aquilo que subjaz às comunicações verbais, completando o significado oculto delas.

Fui observando que o primeiro e talvez o principal sinal para me situar na leitura profunda do que o paciente diz para mim (ou para si) é a entonação ou a musicalidade de sua voz, já que esta precede o significado propriamente dito das palavras. São como o décor do palco que empresta colorido à cena. A decodificação dos significados do timbre na comunicação, que varia de paciente para paciente, vai sendo aperfeiçoada, pelo menos para mim, com o decorrer de nossa experiência.

Por que essa atenção primordial que empresto à tonalidade que acompanha as palavras, tanto as nossas como as do paciente? Acredito que nela se situe nossa intimidade mais profunda, ao mesmo tempo que denuncia nossa atitude de respeito ou não ao interlocutor. Assim, é importante saber captá-la e poder utilizá-la.

Citando Nietzsche: "Sem música a vida seria um erro".

Segundo ele, todas as artes são representativas, exceto a música. O teatro, a pintura, as esculturas representam e se utilizam de cenas e formas do cotidiano já existentes, enfim, de recursos externos que atravessam a subjetividade da inspiração, não permitindo uma comunicação totalmente livre da alma. Dessa especificidade da natureza da música nasce a valorização que atribuo ao timbre de voz que acompanha as verbalizações do paciente e ajuda na captação de seus significados mais profundos.

Sei que as ideias que expus podem dizer respeito somente a minha maneira de ser, mas prossigo nessas considerações. A atitude de uma "completa" atenção ao paciente, de seus gestos, palavras, tonalidade e cadência de sua voz muito favorecerá nossa neutralidade verbal, facilitando a captação de associações livres, tanto as nossas como as do paciente. Talvez seja isso o que Freud tenha nomeado de tela em branco. Convém lembrar que essa atitude "branca" está longe da dispensa de valores, sentimentos e concepções teóricas do analista. Não estou me referindo à "psicanálise selvagem".

Sem dúvida, a "técnica tradicional" inicialmente proposta pode ser mais segura, porém menos fértil. Refiro-me, por exemplo, à então chamada "atitude neutra do analista", que chegou a ferir seus próprios sentimentos relacionais. Diria que foram concepções de cunho profissionalizante e menos "humanas". Dessa qualidade de atitude severamente neutra do analista resultou o afastamento de muitas pessoas, para as quais a psicanálise teria muito a contribuir.

As duas concepções, uma mais "técnica" e outra mais flexível, relativas à atitude afetiva do analista trabalhando, levarão a direções diferentes: usar com liberdade a fertilidade criativa da mente ou ser simplesmente um "camaleão" do que aprendeu ser o certo.

Durante minhas reflexões sobre a atitude do analista como receptor e indutor da fertilidade mental de seu paciente, fui percebendo o quanto é essencial sua condição de compaixão ao sofrimento do paciente e sua fé na psicanálise exercida.

Na exposição destas ideias, acompanhei-me de Fernando Pessoa, em Mar Português:

"Tudo vale a pena, se a alma não é pequena."

 

 

Recebido em: 03/11/2018
Aceito em: 8/11/2018

 

 

1 Palestra proferida na aula inaugural do Instituto "Durval Marcondes", da SBPSP, no dia 4 de agosto de 2018.

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