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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo Jan./June 2020

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Trechos das entrevistas de Myrna Pia Favilli e Amélia Thereza de Moura Vasconcellos

 

 

Trecho de entrevista realizada com Myrna Pia Favilli1

(Analista didata da SBPSP)

Entrevistadora - Myrna, poderia começar nos contando qual foi seu primeiro contato com a psicanálise?

Myrna - A Sociedade é minha segunda casa, a primeira foi a Faculdade de Filosofia da Rua Maria Antonia. A minha história, para fazer um resumo, começa na Associação de Candidatos. Quando eu entrei, a presidente era Amélia Vasconcellos, depois foi o Fabio Herrmann e depois fui eu. No meu terceiro ano eu já estava como presidente da Associação de Candidatos.

São anos inesquecíveis. Eu gostaria que todos os membros filiados pudessem ter essa experiência de luta e trabalho. Naquele tempo os membros filiados, que se chamavam "candidatos", não podiam nem frequentar as reuniões científicas, não era permitido. Fomos então fazer a nossa luta, os nossos trabalhos, a nossa condição de poder existir e ter voz. Ter uma palavra. Considero que foi uma luta heroica.

Entrevistadora - Como foi o ingresso na Sociedade?

Myrna - Primeiro precisei organizar minha vida financeira, porque, como todos sabem, entrar na Sociedade é um ato de devoção. Você precisa ter uma renúncia, inúmeras renúncias, caso você viva do seu trabalho. Se você tiver outras formas de rendimento, é outra história. Minha história foi achar um trabalho que me garantisse a formação. Trabalhava em uma instituição de saúde e também tinha o consultório, sempre com aquele espírito de quem vive do seu trabalho, se não der, eu vou ter que parar. Durante todo esse percurso meus analistas e supervisores conversaram sobre a questão financeira. Nunca se ficou preso na parte econômica, então eu agradeço a eles, que contribuíram com a minha formação.

Entrevistadora - Você esteve na Associação dos Membros Filiados em 1973 como secretária, em 1974, como vice-presidente e, em 1975, como presidente. O que ficou desse tempo de sua formação?

Myrna - O que ficou foi a necessidade de voz dos membros filiados. Naquele tempo nós tínhamos uma efervescência muito grande na Associação de Candidatos. Foi na Associação de Candidatos que surgiu o curso de crianças e adolescentes, pois não tinha no currículo. Nós é que fizemos. Primeiro com a Amélia Vasconcellos, depois com o Fabio Herrmann. Começamos a trazer professores. Da Argentina já tínhamos o Kalina, o Knobel, depois os professores uruguaios, os Prego y Silva, e fomos organizando o currículo do nosso curso de crianças e adolescentes com a colaboração da dra. Virginia e do professor Philips. Eles faziam as nossas supervisões. Foi se transformando num pedido de legalização do curso. Pedimos para o Instituto que encampasse esse curso. Era um caminho complicado. Me parece que foi na gestão do Galvão que o curso de crianças e adolescentes foi oficializado. Veja o trabalho da Associação dos Candidatos! Nós tínhamos um currículo mais fixo, ajudamos a mexer no currículo. Nós inventamos de trazer o Green para a Sociedade e o convidamos. Ele estava publicando um livro, isso era 1974, 1975. Ser convidado por uma Associação de Candidatos não era uma coisa comum, tanto que, quando ele veio, eu tive a impressão de que ele pensava encontrar os didatas.

Entrevistadora - Quais são as próximas lutas heroicas dos membros filiados?

Myrna - Tem muita luta heroica ainda a ser feita. É importante manter esse espírito de que dá para se fazer coisas novas, mesmo dentro desses temas que, no máximo, nós inauguramos. Depois de cinquenta anos... podem ser repensados. Sempre vêm ideias novas.

 

Entrevista de Amélia Thereza de Moura Vasconcellos2

(Presidente da Associação de Candidatos em 1973/1974 e 1974/1975)

Entrevistadora - Gostaríamos de conhecer um pouco mais sobre a história da Associação dos Membros Filiados (AMF).

Amélia - Não era AMF, chamava-se Associação dos Candidatos. Naquela época tudo era proibido aos candidatos, tudo vinha de cima para baixo. Não tínhamos muita liberdade. Não tínhamos voz. Por exemplo, não podíamos ir a congressos, como ouvintes apenas, sem a autorização do corpo diretivo.

Entrevistadora - Então tinham pouca participação na vida institucional da SBPSP?

Amélia - Os assuntos institucionais que nos atingiam só podiam ser tratados como conteúdo de análise com nossos analistas, ponto final. Havia um representante dos alunos, mas era nomeado pela diretora do Instituto, a Virginia L. Bicudo.

Entrevistadora - Quem era esse representante?

Amélia - Era o Antonio Luiz Serpa Pessanha.

Entrevistadora - E como foi então que vocês criaram a Associação de Candidatos?

Amélia - Começou em um grupo de estudos. Havia um analista da Sociedade de Psicanálise de Porto Alegre, João Mariante, que estava em São Paulo dando um curso de Psicopatologia, e nós, candidatos, fomos todos fazer. Lá começamos a conversar sobre a necessidade de uma associação nossa. Foi assim que começou. Nosso grupo era formado pelo Wilhelm Kenzler, o Antonio Carlos Eva, o Lourival Campos Novo, o Aloisio Serpa e o Antonio Carlos Pacheco e Silva Filho, o Pachequinho, filho do Pachecão, professor de Psiquiatria. Era um grupinho grande até, pensando que na minha turma entraram só cinco. Não era fácil entrar na Sociedade. Passávamos por três entrevistas e pelo teste de Rorschach.

Entrevistadora - E depois conseguiram criar mesmo uma associação e oficializá-la.

Amélia - Sim. Fizemos uma reunião, elegemos como primeiro presidente o Wilhelm Kenzler. Ele havia trabalhado muito para conseguir que a Sociedade aceitasse a existência de uma associação para os que estavam em formação. Não era fácil, o ambiente era muito autoritário, mas no fim conseguimos oficializá-la. Foi a primeira associação de candidatos que existiu no mundo. Em seguida veio a do Rio de Janeiro, depois foram surgindo outras associações pelo mundo. A primeira na Europa foi a húngara. Lembro que no pré-congresso de Kopenhagen em 1969, quando a nossa associação ainda não existia, em um almoço conversamos sobre esse projeto com um grupo de húngaros. Acho que aí semeamos essa ideia lá. A Sociedade da Hungria foi a primeira na Europa a ter uma associação de candidatos. A ipso veio muito depois.

Entrevistadora - Como foi para se firmarem?

Amélia - Fomos fazendo nossas reinvindicações e ganhando espaço. Tivemos uma série de conquistas difíceis para aquela época. Uma das primeiras foi sobre a seguinte situação: os candidatos precisavam atender, para as supervisões oficiais, um homem e uma mulher. A Sociedade encaminhava esses pacientes especificamente e exigia metade do que eles nos pagavam. O que sobrava não era suficiente nem para pagar essa supervisão. Tirávamos o restante do próprio bolso. A Associação de Candidatos conseguiu acabar com a exigência deste pagamento. Foi uma das nossas primeiras e mais importantes reivindicações, mas demorou. Só conseguimos no meu segundo mandato, com muito trabalho do Wilhelm Kenzler. Enfim, a Associação foi se estabelecendo. Em um dado momento criamos cursos para pessoas que não faziam a formação, mas trabalhavam com a teoria psicanalítica em seus consultórios. Estes cursos eram muito procurados, e a Associação de Candidatos ganhou um bom dinheiro. A sociedade do Rio de Janeiro trouxe a Arminda Aberastury e o Eduardo Kalina, ambos da Sociedade de Psicanálise da Argentina, para darem cursos sobre infância e adolescência, respectivamente. Começamos a trazê-los também. Eles iam ao Rio e depois paravam em São Paulo. Tínhamos pouco desse conhecimento aqui. Mais tarde a Arminda Aberastury convidou o Mauricio Knobel, também da Sociedade de Psicanálise Argentina, para dar cursos sobre atendimento familiar. Posteriormente foi convidado pela Unicamp. Nessa época pediu filiação à SBPSP, mas não foi aceito. Muita gente que contribuiu para o desenvolvimento da psicanálise, e se tornou depois referência, foi trazida pioneiramente ao Brasil pela Associação de Candidatos: Isidoro Berenstein, Raquel Soifer, André Green.

Em relação a esses cursos há uma história interessante. Certa vez me chamaram para uma reunião só com didatas. Disseram que a Sociedade estava sendo visada pelos militares, pois os cursos da Associação eram subversivos, deveriam ser encerrados imediatamente. Deixei à disposição deles todas as aulas, que eram gravadas por mim. Eles se deram conta de que não havia nada de subversivo, só falávamos de psicanálise. Bom, eram os tempos da ditadura. O que ajudou também foi que o Fabio Herrmann tinha um amigo cujo irmão era do DOPS e lhe informou que os militares nem tinham conhecimento da existência da SBPSP. Depois desse episódio, a SBPSP exigiu que só participaria dos cursos quem estivesse em análise, e houve um controle. A cada aula eu precisava fazer uma relação com os nomes dos participantes e sua análise em andamento. Grande parte dessas pessoas fez depois a formação na Sociedade de São Paulo. Outra coisa que pleiteamos também foi uma melhor formação de análise de crianças e a liberação para que quem tivesse experiência com crianças pudesse dar supervisão, pois só podia ser supervisor quem estava oficialmente elencado no grupo de supervisores da SBPSP. Também passamos a escolher nossos representantes através de voto. O comecinho da Associação foi assim, meio na marra, mas conseguimos reivindicar.

 

 

1 Realizada em 28 de setembro de 2019.
2 Realizada em 8 de novembro de 2019.

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