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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo Jan./June 2022

 

CARTA-CONVITE

 

Hiperconectividade e exaustão

 

 

Berta Hoffmann AzevedoI; Ricardo Trapé TrincaII; Abigail BetbedéIII; Cibele Amaro Pires RaysIII; Claudia Amaral Mello SuannesIII; Denise Salomão GoldfajnIII; Gizela TurkiewiczIII; Helena Cunha Di CieroIII; Ludmila Y. Mafra FrateschiIII; Luiz Moreno Guimarães ReinoIII

IEditora
IIEditor associado
IIIEquipe editorial

 

 

O homem esposou a máquina
e gerou um híbrido estranho:
um cronômetro no peito
e um dínamo no crânio.

(Helena Kolody, Maquinomem)

A etimologia de exaustão remete ao verbo latino exhaurïre: ex-haurir (Ernout; Meillet, 2001, p. 209). Haurir significa tirar, esvaziar, consumir, esgotar, e o prefixo ex- reduplica esse sentido. De tal forma, que exaustão é o efeito de esvaziar(-se) completamente, consumir(-se) totalmente, secar(-se) até a última gota.

Para o filósofo Byung-Chul Han, a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar de Foucault, mas a do desempenho. O sujeito do desempenho, diz ele, está livre da instância externa de domínio que o obriga a trabalhar ou que o pode explorar, é senhor e soberano de si mesmo, em uma condição na qual liberdade e coerção coincidem. Assim, esse sujeito se entrega à "liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho" (Han, 2010/2021, pp. 29 e ss.).

Nas sociedades antigas, havia uma distinção demarcada: o mestre e o escravo; o senhor e o servo; o capitalista e o assalariado. Ao surgir, o sujeito do desempenho complica essas diferenciações; agora já não se sabe mais quem é quem. Pergunta Baudrillard (2002, p. 61): "Ora, o que é o escravo sem mestre? É aquele que devorou seu mestre e o interiorizou, a ponto de se tornar o seu próprio mestre". Essa incorporação, porém, não o transformou em um simples senhor, e sim em um servo de si mesmo.

Como contraponto, o desempenho ativa o cansaço e o esgotamento excessivos. O cansaço do desempenho não é um cansaço da potência positiva; é algo que exaure, que incapacita de fazer qualquer coisa, até mesmo de descansar, e, nesta medida, elimina a possibilidade de restabelecimento do lúdico e da cura.

Exaustão e cansaço estão atrelados ao entendimento do homem como uma máquina de desempenho, e a sociedade do cansaço, enquanto uma sociedade ativa, desdobra-se lentamente "numa sociedade do doping" (Han, 2010/2021, p. 69). Doping e cansaço, desempenho e esgotamento, hiperconectividade e exaustão são como uma rua de mão dupla, não importa qual vem primeiro, e sim que um leva ao outro. E, se a exaustão pode ser definida como um cansaço sem descanso, o doping é um "desempenho sem desempenho". De igual modo, os medicamentos soníferos induzem um sono sem sonho, enquanto as drogas para impotência produzem uma ereção sem desejo. Sonho e desejo são capazes de brotar apenas quando escondidos nas dobras do negativo, como nos mostra a psicanálise. Negatividade que, para o filósofo cujo pensamento estamos acompanhando, tende a se encontrar empobrecida em nosso mundo dominado por um excesso de positividade.

A revolução digital e sua aguda hiperconexão levam ao estabelecimento de uma particular relação espaçotemporal. Os tempos, assim como as formas de presença, ganham características capazes de despertar transformações na forma de viver e de sofrer que merecem ser pensadas. No ritmo frenético de um mundo que interpreta como liberdade a autocoerção por performance o narcisismo é sobre-exigido, e os sofrimentos narcísicos merecem ser considerados no entrecruzamento do psíquico com o histórico-social.

Os analistas, que até um certo momento podiam manter-se relativamente alheios às inovações tecnológicas em seu dia a dia de trabalho, a partir da pandemia de Covid-19 foram transportados a um Admirável mundo novo prenhe de possibilidades e desafios. Os pacientes millennials já chegavam aos consultórios nos últimos anos e agora chegam às formações psicanalíticas, trazendo a inevitável constatação de que o psicanalista não existe fora da cultura, ele participa dela, a constrói e é construído por ela, e pode pensá-la.

Ao escolher "Hiperconectividade e exaustão" como tema do próximo número do JP, trazemos para o primeiro plano o momento que vivemos e as suas incidências nas nossas vidas. Do lado da hiperconectividade, temos toda uma gama de fenômenos: a infiltração do virtual, o borramento das fronteiras público-privadas, as novas formas de relações amorosas e de trabalho, que prejudicam movimentos de fruição, de recolhimento e de contemplação. De outro lado, os efeitos psíquicos e sociais da exaustão e da impossibilidade de encontrar um estado de repouso. De que maneira as relações, as formações, os psiquismos são alterados pela nova realidade? Que impactos intrapsíquicos e intersubjetivos podem ser pensados na produção subjetiva do nosso tempo?

O isolamento social da pandemia (relativizado pelo potencial tecnológico) trouxe, ademais, aos institutos de psicanálise a experiência da virtualização da formação - das análises, supervisões e seminários -, tema tabu sob outras circunstâncias, no geral apenas tolerado em países carentes de institutos de psicanálise próprios. Hoje, uma vez experimentada, tal virtualidade pode ser avaliada e pensada com base no vivido e para além de preconceitos. O que guardamos dessa experiência? Trata-se de um parêntese aberto à espera de se fechar, ou nos deixa heranças para construir novos rumos da psicanálise?

É justamente essa báscula entre transformações culturais, produção de subjetividade e formação psicanalítica que propomos como objeto de investigação. Convidamos os autores a escreverem suas reflexões em torno do tema "Hiperconectividade e exaustão", em artigos a serem encaminhados para avaliação até a data-limite de 14/02/2022. Lembramos que também serão aceitos artigos não temáticos e que as normas para publicação encontram-se ao final de cada número do Jornal ou em normas-portugues.pdf (sbpsp.org.br).

 

Referências

Baudrillard, J. (2002). A troca impossível. Nova Fronteira.         [ Links ]

Ernout, A.; Meillet, A. (2001). Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des mots. Klincksieck.         [ Links ]

Han, B.-C. (2021). Sociedade do cansaço. Vozes. (Trabalho original publicado em 2010)        [ Links ]

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