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Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.27 no.83 São Paulo  2010

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Jogos regrados e educação: concepções de docentes do ensino fundamental

 

The rules games and education: teachers conceptions of primary education

 

 

Nelson Pedro-SilvaI; Manoela de Fátima Cabral SimiliII

ICurso de Psicologia, UNESP - Campus de Assis
IIMestre em Psicologia - UNESP - Campus de Assis

Correspondência

 

 


RESUMO

Os jogos regrados têm sido alvo de pesquisas, principalmente no tocante a sua influência no processo de ensino-aprendizagem. Em razão disso, realizamos pesquisa cujo objetivo, dentre outros, foi analisar a concepção docente sobre as contribuições do emprego dos jogos no processo educativo e no desenvolvimento psicológico. Para tanto, empregamos a teoria piagetiana acerca das relações entre a psicologia genética, os processos de ensino-aprendizagem e os jogos regrados. Os sujeitos foram docentes, escolhidos aleatoriamente, que lecionavam no Ensino Fundamental, de escolas municipais do interior de São Paulo. Para a coleta, utilizamos questionário e entrevista semi-estruturada. Quanto aos resultados, a) os professores mencionam os jogos regra dos como importante instrumento facilitador do processo de ensino-aprendizagem; b) não os relacionam ao desenvolvimento psicológico; e c) apesar de os considerarem positivos, a maioria deles não os emprega em aula, embora estudos demonstrem o seu valor para a concretização do processo educativo e do desenvolvimento psicológico.

Palavras-chave: Educação. Jogos e Brinquedos. Docentes. Psicologia educacional.


ABSTRACT

The rules games have been a target of researches, mainly related to its influence in the teaching-learning process. For that reason, this research was developed with the aim, among others, to analyze the academic conception about the contributions of the application of rules games in the education process and in the psychological development. For such, there was used the theory of Jean Piaget about the relations among the genetic psychology, the teaching and learning processes and the rules games. The participants were teachers, randomly chosen, teaching in the primary schooling of municipal colleges in the state of São Paulo. For the data collection, there were used a questionnaire and a half-structured interview. The results demonstrated that: a) Teachers consider the rules games as an important tool to help the teaching and learning processes; b) they do not associate them to the psychological development; c) although considering the games positive, most of them do not use them in class, even researches demonstrating its value to the educational process and psychological development.

Keywords: Education. Play and playthings. Faculty. Psychology, educational.


 

 

INTRODUÇÃO

Várias pesquisas sobre o papel dos jogos têm sido realizadas, mormente no tocante ao processo de ensino-aprendizagem1-5. O que se nota, a partir delas, é o imperativo de se analisar a relação que os educadores estabelecem com os jogos, pois, conforme a perspectiva piagetiana, eles são recursos que podem auxiliar o sujeito na construção de conhecimentos; concepção educativa cujo cerne é a premissa de que as pessoas não aprendem pela mera interiorização de informações, mas a partir das situações consideradas problemáticas para elas.

Observamos, porém, que na atuação profissional o docente amiúde só se preocupa com a transmissão dos conteúdos escolares, deixando em segundo plano as estratégias para a sua veiculação, como os jogos.

Diante disso, começamos a nos indagar sobre as concepções que docentes do Ensino Fundamental têm acerca dos jogos.

Outra razão que nos levou a executar o presente estudo decorreu de dados acerca do fracasso escolar no Brasil.

Segundo pesquisa coordenada pelo MEC, em 2008, cerca de 40% dos ingressantes não chegaram a concluir a 8ª série do Ensino Fundamental. Isso nos chamou a atenção, pois os dados de 2006 mostraram que 97% das crianças em idade escolar estavam frequentando a escola. Somam-se a isso, também outros estudos: em 2008, cerca de 50% dos alunos do Ensino Fundamental eram analfabetos funcionais e 1,7 milhões de jovens brasileiros entre 15 e 17 anos estavam fora da escola, para 20% dos alunos, por razões de ordem econômica, enquanto que, para 40% deles, por desinteresse e por terem a sensação de não aprenderem na escola nada de útil para suas vidas.

As razões explicativas desse quadro são várias. Alguns as atribuem à baixa qualidade do ensino, que, por sua vez, é determinada pela falta de estrutura escolar (por exemplo, prédios em estado precário), método pedagógico inadequado, baixa remuneração dos professores e pela política educacional que tende a transformar problemas político-pedagógicos em orgânicos ou decorrentes de diferenças de classes sociais6,7.

Não se pode deixar de verificar, porém, que várias políticas educacionais já foram implantadas, com o fim de melhorar o rendimento escolar, como a do ciclo básico em jornada única (1983/1984), a psicogênese de Emília Ferreiro (rotulada de "pedagogia construtivista", 1984/1985) o sistema de progressão continuada (1997), a municipalização do Ensino Fundamental (1996), a política de inclusão (2003) e, mais recentemente, as salas multifuncionais e o uso de dois docentes em cada sala de aula, no Estado de São Paulo.

Ressaltamos, também, os impactos decorrentes da implantação do ECA8. O seu cumprimento, mesmo que parcial, levou ao aumento de matrículas escolares e à efetiva frequência de crianças e de jovens, sobretudo no Ensino Fundamental, pois o Estado passou a ter a obrigatoriedade de assegurar ensino obrigatório e gratuito a todos os alunos em idade escolar. E os pais, por sua vez, passaram a ter o dever de matricular seus filhos. Dessa forma, a criança passou a ser assistida - pelo menos formalmente - por todas as esferas referentes à sua formação básica (família, escola e Estado), com vistas a se tornarem capazes, quando adultas, de cumprirem seus deveres e de usufruírem seus direitos.

Apesar dessas mudanças, é fato que, na prática, os resultados ficaram aquém do esperado. Por exemplo, vários docentes passaram a se queixar que se tornaram reféns, pois - a partir do ECA - o aluno passou a mandar na Escola. Como afirma La Taille9; passou-se a viver em uma sociedade puericêntrica, ou seja, filhos e alunos passaram a ser vistos como possuidores de direitos, e as demais pessoas, apenas de deveres.

Outro efeito inesperado foi a transformação da progressão continuada em promoção automática, levando frequentemente à diplomação do analfabetismo pleno e do funcional.

Concluímos, então, que os resultados das mudanças implantadas ficaram aquém do esperado. Porém, ocorreu o aumento de matrículas para quase 97% em 2003, a permanência de crianças das classes menos favorecidas na escola e o tratamento do educando como cidadão.

Outro aspecto referiu-se à formação de tais alunos, pois se nota mudança considerável nos índices de reprovação e evasão, se os compararmos com os da década de 1970. Em oito anos, a porcentagem de alunos que frequentavam as aulas passou de 88% para 97%, inclusão essa que ocorreu principalmente entre os sujeitos das camadas populares. Em se tratando do Ensino Médio, no período de 1996 a 2002, chegou-se a três milhões de matrículas. No Ensino Superior, em 2009, havia quatro milhões de matriculados, sendo que, em 1960, era de 95 mil.

Assim, se quase 50% das crianças fracassavam ou eram expulsas anualmente na década de 1960 e 1970, verificamos que hoje esse fenômeno não ultrapassa um terço desse percentual. Esses dados, por si só, justificam o esforço de toda a sociedade, sobretudo do Estado e do Ministério Público para manter as crianças na escola.

É certo que nem todos os estudantes aprenderão na íntegra os conteúdos dos currículos ideais, ingressando na 5ª série do Ensino Fundamental alfabetizados. Contudo, não é prerrogativa desse nível de ensino a presença de analfabetos funcionais. Segundo levantamento feito de maneira assistemática, encontramos tais alunos também em outros níveis de ensino e vêm aumentando rápida e substancialmente de ano para ano.

Pois bem, tal cenário só fez nossas indagações se tornarem mais incisivas, já que com todas as mudanças no plano macro educativo, ainda o analfabetismo se fazia presente nas escolas. Diante disso, passamos a nos perguntar: será que eles estão fazendo uso de estratégias diferentes das tradicionais, como jogos de regras, a fim de facilitarem e "motivarem" os alunos para o processo de ensino-aprendizagem?

Infelizmente, estudos científicos demonstram que os docentes pouco empregam os jogos de regras e de construção, como recurso pedagógico e de desenvolvimento psicológico.

Tal constatação decorreu de revisão de literatura realizada por nós, durante o período de 2005 a 2008, nas bases de dados eletrônicas DEDALUS, Athena e Acervus, por meio das palavras-chaves "concepção do professor", "jogos educativos", "psicologia genética" e "desenvolvimento psicológico".

Pereira10 e Lombardi11; por exemplo, concluíram que os jogos educativos constituem-se em recurso pedagógico na construção da lecto-escrita. Costa12; Amate13 e Baptista14 verificaram que os jogos eletrônicos a) são considerados lúdicos pelas crianças, b) influenciam nas atividades desempenhadas habitualmente por elas, c) auxiliam no desenvolvimento de habilidades, estratégias e atitudes cooperativas e d) podem ser empregados para avaliar crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem. Monteiro15 e Medeiros16 confirmaram que as atividades lúdicas possibilitam o desenvolvimento global dos alunos. Marquezini3; Afonso17 e Blanco18 concluíram que as docentes do Ensino Infantil avaliaram o brincar como necessário ao desenvolvimento psicológico, apesar de não terem ciência sobre a psicologia infantil.

Em síntese, tais estudos nos levaram a inferir que há uma lacuna a preencher sobre a concepção de professores que ministram aulas no Ensino Fundamental acerca do uso de jogos.

 

OBJETIVOS

Considerando tais aspectos, foi nosso objetivo principal analisar a concepção do docente sobre o emprego dos jogos de regras como recurso para o processo de ensino-aprendizagem e de desenvolvimento psicológico do corpo discente do Ensino Fundamental.

Secundariamente, visamos: a) analisar a importância dada pelo docente para o emprego dos jogos de regras na escola; b) contribuir para a discussão acerca do seu uso como instrumento auxiliar do processo educativo e de superação do analfabetismo funcional; e c) investigar a eficácia dos referidos jogos como instrumento facilitador à ocorrência do desenvolvimento psicológico.

 

REFERENCIAL TEÓRICO

Empregamos, para a análise dos dados, a psicologia genética de Jean Piaget. Cabe sublinhar, que se torna impossível abordar a obra de Jean Piaget (1896-1980) ou reduzi-la sem perder toda a sua complexidade, além de nos julgarmos incompetentes para realizar tal tarefa. Por essa razão, no presente tópico, tecemos considerações sobre as relações entre a psicologia genética e os jogos.

Assim, além de algumas obras de Piaget19-22; utilizamos, as de Macedo4,23; Macedo et al.24,25; La Taille9,26 e Castorina27; em virtude de os referidos autores: a) abordarem o uso dos jogos como meio que pode auxiliar os sujeitos a se desenvolverem cognitiva, afetiva e socialmente; b) buscarem fazer a articulação da psicologia genética com o campo pedagógico e o psicopedagógico.

Informamos que Piaget não produziu uma Pedagogia. Sua atenção estava voltada à construção de uma epistemologia científica. Apesar disso, é certo que várias de suas ideias foram apropriadas pela Educação, muitas delas equivocadamente, como a utilização do método clínico como meio para a montagem de salas de aula homogêneas. Por ele ser um utensílio de avaliação do nível cognitivo, autores, como Carraher28; concordam acerca de sua pertinência para a compreensão do funcionamento cognitivo e, em decorrência, como fator auxiliar na compreensão, sobremaneira dos alunos considerados portadores de dificuldades de aprendizagem, além de facilitador da ação educativa. Afinal, ao se compreender a lógica de funcionamento mental do aprendiz, se terá - em tese - maiores condições de propiciar práticas educativas consequentes.

Feito esse preâmbulo, apresentamos breve descrição acerca de como os jogos foram concebidos por Piaget19,20; que os estruturou em três modalidades: de exercícios, simbólicos e de regras.

Os jogos de exercícios, típicos do período sensório-motor, caracterizam-se pela busca, por parte do sujeito, de satisfação perceptual e motora. Com tal intenção, eles acabam por colocar em ação uma série de condutas que não chegam a modificar as estruturas, prevalecendo a assimilação funcional.

Quanto aos simbólicos, Piaget os definiu por seu valor analógico, pois se trata não só de "repetir no vazio", mas de "reproduzir" as ações cotidianas julgadas interessantes pelo sujeito. Agora, o conteúdo passa a ter primazia. Logo, ao brincar com a boneca, por exemplo, o sujeito tende a repetir o que a mãe fez com ele tantas vezes, bem como compreender temas da realidade julgados significativos por ele.

A terceira modalidade são os jogos de regras. Piaget19 verificou que os sujeitos, a depender do seu nível de desenvolvimento, relacionam-se com as regras de três maneiras diversas.

A primeira (anomia) caracteriza-se pela ausência da moral, isto é, os sujeitos que estão nessa condição "não seguem regras coletivas", preocupando-se em satisfazer interesses motores e simbólicos. Apesar disso, ela é essencial, pois desenvolve a noção de regularidade; aspecto vital para o desenvolvimento posterior, pois a regra pressupõe exatamente a repetição.

Na heteronomia (segunda direção) o sujeito já apresenta interesse em participar de atividades coletivas e regradas. Porém, sua participação se dá de modo egocêntrico, fazendo com que ele brinque mais ao lado de outros sujeitos, do que contra ou com eles. Elucidamos que esses sujeitos concebem as regras como imutáveis, de origem análoga às leis físicas, apresentando respeito rígido no plano do discurso e desrespeito no prático.

Na autonomia, o sujeito tende a apresentar características opostas às da heteronomia. Isso ocorre porque, agora, os jogadores respeitam e cumprem as regras, não as vendo mais como sagradas e imutáveis. Além disso, o respeito é produzido por meio de acordos entre os jogadores, isto é, eles se vêem como legisladores.

Há ainda os jogos de construção. Eles guardam todos os caracteres dos jogos de regras. Contudo, nestes os sujeitos estão interessados com a elaboração de certo objeto: "[...] a forma se subordina ao conteúdo, ou seja, a ênfase é dada ao processo, no qual as relações ou estruturas são meios para a realização do conteúdo"24.

É evidente que o tipo de relação com os jogos de regras é dependente do tipo de relação interindividual estabelecida, que pode ser de coação ou de cooperação.

As relações de coação são assimétricas, pois um dos pólos impõe sua forma de pensar e suas verdades. Isso ocorre porque as regras já são dadas a priori. Vê-se, então, que nesse tipo de relação não há a reciprocidade. Por causa disso, a coação acaba por reforçar o egocentrismo, tendo como resultado o fato de: a) os sujeitos submetidos a esse tipo de relação acreditarem, mas não saberem a razão; b) apresentarem respeito unilateral; e c) pautarem pelo realismo moral, derivando, desse tipo de relação, a heteronomia moral.

Quanto às relações de cooperação, são simétricas; portanto, regidas pela reciprocidade. Por serem constituintes, as regras são compreendidas como produto de mútuos acordos.

Concluímos, dessa forma, que somente com a cooperação o desenvolvimento intelectual e moral podem ocorrer, pois ele exige que os sujeitos se descentrem para compreender o ponto de vista alheio, levando ao respeito mútuo e à autonomia.

Claro está que as relações de coação são vitais para que o sujeito possa ser submetido às de cooperação. Sem elas, o sujeito ficaria privado de conteúdos que pudessem levá-los a legitimar, a descartar e/ou a construir novas regras.

Quando à aprendizagem, por volta do final de 1950, a Escola de Genebra realizou estudos com o fim de responder aos adeptos da filosofia empirista, que concebiam o sujeito como um ser passivo e o processo de aquisição de conhecimento como produto da relação estímulo-resposta. Pois bem, os piagetianos opuseram-se a esse esquema. Eles verificaram que não há leitura direta da experiência, pois entre o estímulo e a resposta coloca-se um conjunto de estruturas de assimilação.

Em 1958, foram feitas novas indagações: "Se ficou provado que até as aprendizagens mais elementares pressupunham uma organização ativa dos dados [como a do labirinto], esta organização lógico-matemática poderia ser aprendida no sentido tradicional?"27.

As experiências realizadas, com conservação de peso, demonstraram que os sujeitos não desenvolviam a noção de transitividade, apesar de ter ocorrido algum grau de desenvolvimento, pois a aprendizagem fortalecia as estruturas já existentes.

Em meados da década de 1960, uma nova questão foi colocada: é possível promover o aprendizado de estruturas cognitivas, incidindo-se diretamente sobre o desenvolvimento do sujeito?

As experiências realizadas consistiam em "levar" o sujeito a entrar em conflito cognitivo na resolução dos problemas propostos. Os resultados foram promissores, pois cerca de 70% dos sujeitos se desenvolveram, passando de um estado de não conservação para a conservação total ou, no limite, caminhavam para um de transição.

Vê-se, então, que é possível realizar um tipo de aprendizagem, por meio de jogos regrados, que incida diretamente sobre o desenvolvimento. A propósito: para Macedo4; os jogos podem a) auxiliar na construção da aprendizagem significativa; b) estimular a construção de novos conhecimentos; e c) "despertar" o desenvolvimento de habilidades operatórias.

 

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Considerações sobre a pesquisa qualitativa

A partir da década de 1970, em países da América Latina, aumentou o interesse da Pedagogia e das ciências afins pela pesquisa qualitativa. Tal fato decorreu por causa do tipo de dado que essa afeição de pesquisa podia oferecer, trazendo novas contribuições à compreensão do fenômeno educativo.

Trivinõs29 salienta que os pressupostos fenomenológicos-qualitativos ressaltam a ideia de que o "comportamento humano, muitas vezes, tem mais significados do que os fatos pelos quais ele se manifesta". Acrescente-se que a designação "qualitativa" é compreendida como sinônimo de "etnográfico" e decorre da ciência antropológica, pois "muitas informações sobre a vida dos povos não podem ser quantificadas e precisavam ser interpretadas de forma mais ampla que circunscrita ao simples dado objetivo"29.

Ludke e André30 salientam, porém, a existência de inúmeras dúvidas que ainda caracteriza a cientificidade da pesquisa qualitativa. Por exemplo, "não há possibilidade de se estabelecer uma separação nítida e asséptica entre o pesquisador e o que ele estuda e também os resultados do que ele estuda".

Para Minayo31; a pesquisa qualitativa diz respeito a situações particulares: "ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis".

Dessa maneira, tal tipo de pesquisa busca explicar os motivos que levam os sujeitos a realizarem determinado ato ou a terem certa opinião, sem se preocuparem com a quantidade e tampouco com a colocação à prova dos fatos. "A abordagem qualitativa aprofunda-se no mundo dos significados das ações e das relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, medidas e estatísticas"31.

Embora Piaget não tenha feito considerações a esse respeito, várias de suas pesquisas, como as compelidas em La formation du sýmbole chez l'enfant20; demonstraram que ele empregou esta metodologia.

Em razão disso, o método clínico-crítico de Piaget32; ao analisar a maneira como os sujeitos raciocinam, pode e deve ser considerado como de natureza qualitativa, pois ele não se preocupou em medir a quantidade de respostas corretas dadas por seus filhos. Sua atenção, ao contrário, estava voltada para a análise da forma como resolviam situações julgadas problemáticas por eles próprios.

Outra crítica refere-se ao fato de eles considerarem a linguagem, entre outros aspectos, como objeto de estudo.

A esse propósito, o próprio Piaget19 não é partidário de uma possível relação visceral entre a fala e a ação, a ponto de se poder afirmar que um docente que se diz fazer uso dos jogos, mesmo considerando-os eficientes, o fará realmente. Assim, acreditamos que a fala é reveladora de um raciocínio que tende a se fazer presente quando uma ação é executada, a ponto de influenciar, mas não de determinar as condutas abertas.

Sobre a preparação do pesquisador, para Triviños29; ela está em perfeita consonância com a maneira defendida por Piaget e pode ser resumida da seguinte forma:

"[...] não se pode iniciar um estudo de uma situação sem bases refletidas em relação à teoria e ao contexto. Os inquéritos precisam ser pensados com algumas perguntas fundamentais e a atitude vigilante do pesquisador durante o encontro, conservando a clareza, a simplicidade e a concisão que permitam ser compreendida sem explicações complexas."

Tendo como parâmetro tais advertências, estruturamos o nosso roteiro de entrevista.

Informantes1

Os sujeitos foram docentes que lecionam no Ensino Fundamental do Ciclo I (antiga 1ª a 3ª série) de Escolas Municipais localizadas numa cidade da Região Sudoeste de São Paulo, com idade média de 40 anos, a maioria do sexo feminino, casados, com dois filhos, concursados, com mais de 10 anos de exercício no Magistério, com carga de trabalho de 30 horas semanais, formados em Pedagogia e com especialização em Matemática ou Psicopedagogia.

Instrumentos

Empregamos dois instrumentos de coleta de informações.

O primeiro foi um questionário, composto de questões fechadas, sobre dados relacionados à identificação dos sujeitos (idade, sexo, estado civil, dados relacionados aos filhos, atividade profissional, formação escolar, nível de ensino em que eles estavam ministrando aulas e tempo de exercício no magistério).

O uso do questionário deu-se em razão do número expressivo de docentes nas duas escolas de Ensino Fundamental (cerca de 100 docentes). Além disso, o empregamos com a intenção de selecionar sujeitos que pudessem colaborar com a segunda parte do estudo (a entrevista).

O outro instrumento foi um roteiro de entrevista semi-estruturado, composto de questões sobre: (1) a concepção dos docentes acerca dos jogos de regras; (2) o seu emprego em sala de aula; (3) a importância dos jogos para o desenvolvimento psicológico dos alunos; (4) a relação do emprego dos jogos em sala e sua relação com o brincar do professor na infância e com os seus filhos.

Adotamos esse modelo de entrevista por ele possibilitar aos sujeitos que: a) respondessem as nossas indagações; b) apresentassem respostas não previstas por nós; e c) se sentissem mais espontâneos durante o inquérito.

Informamos que, para a montagem do instrumento, fizemos estudo piloto. Neste, entrevistamos 11 docentes, sendo seis do Ensino Fundamental da cidade onde realizamos a pesquisa e cinco de outro município, ambos localizados na região sudoeste de São Paulo. A intenção foi a de, além de servir como meio para a montagem do instrumento, verificar se o fato de, na época, estarmos exercendo a função de psicopedagogos em um dos municípios pesquisado interferiria nos resultados a serem obtidos.

Além disso, buscamos verificar se a referida ferramenta atendia aos objetivos propostos pelo estudo.

Os dados coletados mostraram que o roteiro de entrevista correspondeu aos objetivos propostos pelo estudo e não houve discrepância significativa entre as respostas e justificativas oferecidas pelos docentes de ambas as cidades.

Procedimento geral para coleta das informações

Inicialmente, entramos em contato com a direção das duas escolas, com o fim de obter autorização para a realização do estudo. Tendo obtido a permissão, ato contínuo, entramos em contato com os professores no horário de estudo coletivo. Nessa oportunidade, fizemos uma sumária apresentação do Projeto.

Em seguida, indagamos se os docentes concordariam em responder ao questionário; tendo a maioria deles respondido afirmativamente. Os que não se prontificaram a colaborar argumentaram que estavam cansados de preencher papéis.

Diante dessa resposta, novamente explanamos os objetivos da pesquisa e dissemos que o preenchimento do referido instrumento não acarretaria problema algum. Ele teria apenas o fim de selecionar os sujeitos que pudessem colaborar com a segunda parte do inquérito (a entrevista). Diante desta exposição, praticamente todos os docentes que tinham se negado a participar da primeira vez se prontificaram a respondê-lo.

Em seguida, 67 professores assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e responderam ao questionário. A duração foi de cerca de 30 minutos. Quanto aos demais, mesmo depois de reiterados pedidos, não foram respondidos.

Tendo, então, os inquéritos em mãos, verificamos quais deles eram representativos do grupo de docentes pretendidos. Constatamos que 32 questionários preenchiam os critérios estabelecidos por nós.

De posse de tais inquéritos, sorteamos 11 respondentes e os convidamos a se submeterem à entrevista individual, numa sala destinada a este fim, tendo todos concordados.

Na sequência, agendamos períodos disponíveis na grade curricular, tendo as entrevistas duração de cerca de 60 minutos.

Elucidamos que, dos 11 entrevistados, descartamos cinco deles, pois não se dispuseram a se submeterem a uma segunda entrevista, com a intenção de aprofundar depoimentos apresentados na primeira, ou, quando - ao comparecermos ao encontro agendado - apresentavam todo o tipo de justificativa (falta de tempo, cansaço, mudança de opinião quanto a submeter-se a outra entrevista e receio de ter a sua identidade revelada). Quanto aos seis restantes, prontificaram-se a serem entrevistados novamente.

Procedimento geral para a análise das informações

Obtidas as informações, procedemos da seguinte forma: 1º fizemos leitura minuciosa dos protocolos; 2º quando as justificativas mostravam-se insuficientes, com vistas aos objetivos propostos, entramos novamente em contato com os sujeitos, a fim de que eles prestassem novas explicações; 3º com isso, completamos as respectivas entrevistas e demos início à categorização das justificativas emitidas, tendo por parâmetro os objetivos do estudo. De acordo com Minayo31; "as categorias são empregadas para se estabelecer classificações. Nesse sentido, trabalhar com elas significa agrupar elementos [...] em torno de um conceito".

A análise foi feita tendo como parâmetro a teoria psicológica de Piaget21 e de estudiosos da epistemologia e psicologia genéticas4,26,27.

 

ANÁLISE DOS DADOS

A concepção dos docentes sobre os jogos de regras

Os docentes argumentaram que os jogos de regras contribuem para a maneira como os alunos lidam com o erro. Leiamos o que Iris (sexo feminino, 36 anos) disse: Se for por meio do jogo, a criança se sente mais livre e segura sem medo de errar. É um jeito dela pensar sem estar mecanizada. Comparo com a educação do meu filho. Ele sai jogando, descobrindo soluções, enquanto que na escola, ele demonstra insegurança.

Nota-se nesse depoimento que os jogos de regras "impedem" a ocorrência de um dos maiores obstáculos à aprendizagem: o receio de errar. Como a docente disse, a criança realiza as atividades sem medo de errar. A esse respeito, Castorina27; Macedo23 e Piaget33 são unânimes ao afirmarem que - em determinadas situações - o erro é mais frutífero do que um acerto imediato. Isso ocorre porque o fracasso num jogo, por exemplo, leva a criança a refletir sobre a estratégia empregada, possibilitando a construção de novos conhecimentos.

Outro aspecto apontado, principalmente por João (sexo masculino, 43 anos), referiu-se à importância dos jogos como pré-requisito ao desenvolvimento do raciocínio.

[Para o aprendizado de] todo conhecimento abstrato é necessário sempre partir de algo concreto, lúdico, para que o educando possa observar os caminhos percorridos. Na matemática, o professor tem que partir de dados da realidade que é o concreto, para que haja compreensão daquilo que é trabalhado e ensinado, que possa agir como facilitador do conhecimento proposto.

Maria (sexo feminino, 48 anos) mencionou que, quando os alunos jogam, sentem-se motivados, demonstrando prazer em jogar: participam com prazer, pois para eles falar em jogo traz motivação, quer fazer, participar e principalmente ganhar.

Vê-se, porém, que não foi explicitado se tal motivação é transferida para o aprendizado formal. A propósito: muito se fala em motivar os alunos. Fundamentado em Piaget, não podemos considerar essa possibilidade. Afinal, é o sujeito que constrói o seu próprio conhecimento, a partir da relação com o meio físico e social, e desde que ele queira, tenha os esquemas adequados à construção proposta e as institucionais. Logo, é um processo que depende do meio e do sujeito. Em outros termos, é necessário que o estímulo (fato físico) seja concebido pelo aluno como significativo.

Eles afirmam, ainda, que os citados jogos desenvolvem a conduta de liderança. Por exemplo, Lia afirma que muitas crianças que, às vezes, tem dificuldade na aprendizagem, através dos jogos conseguem demonstrar liderança, espírito de equipe.

Maria (sexo feminino, 48 anos) disse que, ao jogar, o aluno busca desenvolver estratégias. Contudo, ela não explicitou quais são essas táticas e se elas são transferidas para o processo ensino-aprendizagem: O jogo desafia o raciocínio lógico, busca estratégias e os alunos participam com prazer. [E] buscar estratégia é quando o aluno está pensando em soluções que resolvam as situações em questão.

Lia (sexo feminino, 43 anos) afirmou que - ao jogar - os alunos desenvolvem a competitividade: No trabalho em equipe, vai destacar o líder e todos têm que chegar ao objetivo do jogo. É uma competição.

Contudo, a natureza de tal competitividade não é explicada. Com isso, ficamos a nos indagar se eles a estão compreendendo com um aspecto positivo e se independe dos meios empregados para o seu êxito.

Apenas Jack (sexo feminino, 38 anos) disse que, ao jogar, há mais socialização. Além disso, ela atentou para o fato de que os jogos auxiliam no aumento da resistência à frustração: porque há mais socialização das crianças, aprendem as regras e a competição do perder e ganhar; ajuda a refletir sobre as perdas.

João (sexo masculino, 43 anos) concebeu o jogo, além de uma atividade lúdica, como facilitador da compreensão de conteúdos abstratos. Neste sentido, ele o vê como uma espécie de organizador prévio: na matemática, o professor tem que partir de dados da realidade que é o concreto, para que haja compreensão daquilo que é ensinado, que tenha significado, que possa agir como facilitador do conhecimento proposto.

As falas desses docentes indicam a importância que dão aos jogos de regras, sobretudo o fato de eles o conceberem como recurso para desenvolver o raciocínio, criar estratégias e motivar os alunos.

Entretanto, não é explicitado se tais recursos, que os jogos proporcionam, são "transferidos" para o dia-a-dia da sala de aula. Notamos, ainda, que no discurso trazem uma visão tradicional, como jogar perde tempo, jogar é brincar e não estudar.

O uso dos jogos em sala de aula

Sobre o uso dos jogos de regras em sala de aula, eis a posição de Maria (sexo feminino, 48 anos), que o utiliza pouco: Não utilizo muito [os jogos], porque depende do conteúdo estudado e o resultado que o aluno apresentou. Pois, se ainda há dificuldade, o jogo será outro recurso que posso utilizar, pois, se o aluno não assimilou o conteúdo exposto, será necessário recorrer aos jogos, que é uma atividade mais concreta. Existe conteúdo que dá para fazer essa adaptação e outros conteúdos que não dá.

Fica evidente na fala de Maria que o emprego dos jogos de regras depende do conteúdo a ser ensinado. Essa opinião é - de certa forma - contrária ao que apregoa os PCNs34. Lá é sugerido que os jogos sejam utilizados como facilitador do processo educativo e do trabalho com os temas transversais.

Continuemos com os depoimentos dos professores sobre o uso dos jogos em sala de aula.

Carol (sexo feminino, 35 anos): Utilizo pouco, devido ao tempo, a infantilidade de trabalhar em grupo. [Os alunos] discutem muito para a escolha dos colegas e o foco maior está em concluir o conteúdo programático. Devido também à grade curricular que eles têm aulas de Inglês, Informática, sem contar outras atividades extras [datas comemorativas].

Notamos, nessas falas, que as docentes estão mais preocupadas com os conteúdos programáticos. Todavia, cremos que o problema está relacionado, como dissemos, à dificuldade em relacionar os jogos com o conteúdo programático. Além disso, subjaz a ideia de que os jogos de regras devem ser desenvolvidos, sobremaneira, nas aulas de Educação Física, Informática e Robótica - assumindo, assim, posicionamento contrário ao defendido pelos PCNs34 e concebendo tais disciplinas como espaço para o desenvolvimento do lúdico, ou seja, daquilo que não é julgado "sério".

Há outros professores que até gostariam de fazer uso dos jogos de regras. Contudo, eles alegam - como Íris (sexo feminino, 36 anos) - a falta de tempo para empregá-los: É muito esporádico o uso do jogo pela questão da falta de tempo. [...] Caso contrário, não consigo concluir o conteúdo proposto.

Lia (sexo feminino, 43 anos) foi a única que disse utilizar bastante os jogos de regras, deixando em evidência que tal objeto estimula o desenvolvimento do raciocínio de seus alunos, propicia a interação e o confronto entre diferentes pontos de vista. Penso que tem que ter o concreto, que seria o jogo, e se imaginar na condição de jogador com a intenção de alcançar o objetivo proposto e assim jogar para efetivar uma aprendizagem. Os jogos estimulam não só o desenvolvimento do raciocínio lógico, também propicia a interação e o confronto entre diferentes formas de pensar.

Em resumo, notamos que a quase totalidade dos docentes entrevistados: a) não fazem uso dos jogos de regras ou os emprega de maneira aquém do desejável; b) está preocupada - provavelmente por pressões dos órgãos educativos superiores - em "vencer" os conteúdos programáticos, sem levar em consideração se os alunos estão aprendendo de modo significativo; c) delega a atividade dos jogos para outras disciplinas, vistas amiúde sem importância ou como utensílio de diversão; d) não busca dialogar e estabelecer parcerias como os docentes de outras áreas, como a de Educação Física.

Outro dado é que, se temos, por um lado, salas de aulas com 30 a 40 alunos, geralmente com problemas de várias ordens, por outro, há docentes com pouco tempo e falta de formação para se dedicar a um tipo ensino que tenha o desenvolvimento global do aluno como foco. A esse respeito, Carol (sexo feminino, 35 anos) chega a dizer que os seus alunos são tão infantis, que apresentam dificuldades até para escolher os colegas que comporão os grupos.

Ora, conforme explicita os PCNs34; é tarefa do docente contribuir para que o desenvolvimento ocorra. Queixar da "infantilidade" de certos alunos, dessa forma, nos leva a inferir que a sua demanda era por um aprendiz plenamente desenvolvido. Essa visão é equivocada, pois - se for assim - qual o sentido de se existir educadores? Certamente alguns dirão que é o de ensinar. Acontece que, segundo Piaget33; a escolarização é apenas um dos fatores responsáveis pelo desenvolvimento.

A importância dos jogos para o desenvolvimento psicológico dos alunos

Eis a fala de uma docente sobre a relevância que dá aos jogos de regras para o desenvolvimento psicológico dos seus alunos. Íris (sexo feminino, 36 anos): Eu acredito que o amadurecimento psicológico vem através do desenvolvimento do raciocínio, porque a criança que raciocina desenvolve estratégia e desenvolve a autonomia. Uma criança autônoma é mais segura, não depende tanto da mãe. Quando perde, ela compreende que no jogo e na vida não é só ganhar, lidam melhor com a situação.

A primeira feição desse depoimento, empregado aqui como exemplo, é que os docentes reduzem o desenvolvimento psicológico, à dimensão cognitiva. É como se eles não compreendessem, desconsiderassem ou não dessem a devida importância às dimensões afetiva e a moral como parte do "psicológico".

É indicador também de que há problemas na formação de tais docentes. Não queremos, com isso, responsabilizar as instituições de formação em si, pois sabemos que o conhecimento é reconstruído e apenas só atentamos para aquilo que faz parte do nosso horizonte significativo.

Insistimos, todavia, que - a despeito de tais aspectos - os docentes apresentam problemas graves de compreensão dos conteúdos psicológicos e pedagógicos; provavelmente, decorrentes da formação que tiveram, mesmo a maioria tendo feito curso de pós-graduação. Nesse sentido, faz-se urgente pensar e intervir junto aos cursos de graduação e de pós-graduação frequentado por tais docentes. Afinal, sabemos que muitos deles são oferecidos, apenas, formalmente.

Os jogos de regras e sua relação com o brincar do professor na infância

Quanto ao emprego dos jogos de regras em sala de aula e sua relação com o brincar do professor na infância e com os seus filhos, eis o depoimento de Íris (sexo feminino, 36 anos): Eu inventava os móveis de argila e boneca de espiga de milho para poder brincar. Não tinha televisão, tinha que criar brinquedos. [...] Tenho um filho que brinca mais com jogos eletrônicos do que com os amigos. E certo dia meu marido fez um estilingue para ele e parecia o brinquedo mais caro que já tivera, pois os amigos não conheciam e foi a maior festa.

Notamos, por meio desse protocolo e dos demais, que os docentes brincaram consideravelmente na infância. Contudo, em torno de metade deles não fazia uso de tais brincadeiras da sua infância com os seus alunos e sequer de outras, como as desenvolvidas em computadores.

Verificamos, ainda, que, apesar de existirem muitas leituras sobre a infância e o papel do lúdico no favorecimento da aprendizagem, a maioria dos docentes ainda não faz uso desse meio em sala de aula. De acordo com Silva35; os docentes estão despreparados para lidar com os alunos. Isto ocorre por vários motivos, "que vão desde a concepção de criança internalizada (adulto em miniatura), à falta de conhecimento acerca do desenvolvimento psicológico infanto-juvenil, o próprio desinteresse com a profissão e o descompromisso com a formação".

Resumindo: os docentes, de maneira geral, demonstraram satisfação em falar de suas brincadeiras, pois relataram marcas significativas da infância. É como se eles as revivessem. Apesar disso, eles concebem esse momento como de uma "infância perdida" e/ou só pertencente a ele; portanto, incapaz de ser, em parte, vivenciada com seus alunos ou não atinente ao espaço educativo formal.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os sujeitos nos fizeram refletir sobre o quanto estamos tendo escolas preocupadas com o cumprimento dos conteúdos curriculares. Contudo, segundo Becker36; pensar a educação para o futuro implica em considerar o conhecimento - antes de tudo - como produto da ação humana (e não como mera interiorização de informações).

Outros aspectos foram observados:

a) os docentes têm "consciência" de que os jogos de regras podem contribuir para a solução de problemas e, em consequência, possibilitar o desenvolvimento cognitivo;

b) contudo, fica aquém a compreensão deles acerca do fato de que os jogos também são eficientes como recursos para o desenvolvimento das demais dimensões psicológicas (afetiva e moral);

c) os docentes não relacionam os jogos de regras com os vivenciados na sua infância;

d) tampouco articulam tais jogos com a prática pedagógica;

e) empregam como pretexto, para o seu não uso, a falta de tempo, de espaço, a necessidade de ter que cumprir os conteúdos programáticos e a falta de interesse dos alunos.

Soma-se certa ideia - que já se tornou representação37 - de que jogos são sinônimo de diversão e, portanto, só podem ser desenvolvidos nas aulas de Educação Física, de Artes e de Informática, pois elas não apresentam valor pedagógico, servindo apenas de instrumento de adorno e de "ludicidade".

Isso não significa que estamos a responsabilizar apenas os docentes. Há que reconhecer uma política educacional que fomenta a produção de burocratas, não investe efetivamente na capacitação docente (sobretudo na área da psicologia do desenvolvimento) ou possibilita a contratação de pessoas nada afeitas ao ofício de educar.

Além disso, entendemos como capital que os docentes voltem a ficar de "bem" com a criança que há dentro deles, ou seja, eles devem buscar continuamente colocar-se no lugar de seus alunos, pois a impressão é que eles se esqueceram de sua infância.

Não se pode desconsiderar, todavia, que os docentes estão sendo produzidos por um caldo de cultura que incita o individualismo, o hedonismo, o consumismo e a desconsideração pelo conhecimento. Bruckner38 afirma, a esse respeito, que o interesse hoje é por outros valores, como o sucesso e o dinheiro, aspectos que não podem ser obtidos por meios acadêmicos.

A propósito: observamos em cursos de especialização destinados aos docentes do Ensino Fundamental e Médio que eles se comportam de maneira semelhante aos alunos, que tanto eles se queixam. A maioria deles - salvo, melhor juízo - a) não gosta de ler, b) tem medo de ser avaliado, c) considera a teoria descartável, d) é extremamente indisciplinada e e) acredita que está sempre com a razão. Em síntese, emitem um discurso e apresentam uma prática completamente diversa e, a nosso ver, lamentável.

Salientamos que tal diagnóstico não é sinônimo de descrença em relação aos educadores e à educação, pois temos nos deparado com professores sérios, comprometidos e que, apesar de todas as adversidades, têm o conhecimento como um valor.

 

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Correspondência:
Nelson Pedro-Silva
Rua Padre Gusmões, 1.667 - Tênis Clube
Assis - SP
CEP:19806-083
E-mail: nelsonp1@terra.com.br

Artigo recebido: 16/6/2010
Aprovado: 30/7/2010

 

 

Trabalho realizado na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP - Campus de Assis, Assis, SP. Artigo extraído da dissertação de mestrado intitulada Jogos de regras e educação: concepções de docentes do ensino fundamental, defendida em dezembro de 2009.
1 O presente estudo, que aqui apresentamos breve relato, obedeceu aos critérios da realização de pesquisa com seres humanos, conforme parecer do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp - Campus de Assis, Processo nº 1381/2008, Registro no CEP nº 025/2008.

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