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Revista Psicopedagogia
Print version ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.27 no.84 São Paulo 2010
ARTIGO DE REVISÃO
O falante inocente: linguagem pragmática e habilidades sociais no autismo de alto desempenho
The innocent speaker: pragmatic language in high functioning autism
Renata Mousinho
Fonoaudióloga. Doutora e mestre em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora da Graduação em Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora do projeto ELO: escrita, leitura e oralidade UFRJ
RESUMO
INTRODUÇÃO: Existe uma relação estreita entre as habilidades sociais e a linguagem pragmática.
OBJETIVO: Tendo em vista que a "inocência" apresentada por indivíduos com Autismo de Alto Desempenho (AAD), que apresenta correlação direta com prejuízos nas habilidades sociais, este artigo tem como objetivo definir quais aspectos da linguagem contribuem para isso.
MÉTODO: Para tal, lança mão da Teoria Cognitiva da linguagem, uma vez que preconiza uma ponte entre aspectos linguísticos, cognitivos e sociais. O paralelo entre o Falante Inocente de Fillmore (1979) e dados de pesquisas anteriores (Mousinho, 2003; 2010) e testemunhos extraídos de autobiografias de indivíduos com AAD (Grandin & Scariano, 1986; Williams, 1992) foi a articulação escolhida para o objetivo traçado.
Palavras-chave: Transtorno autístico. Linguagem. Comportamento social.
ABSTRACT
INTRODUCTION: There is a close relationship between social skills and pragmatic language.
OBJECTIVE: Considering that the "innocence" experienced by individuals with High Functioning Autism (HFA), that has a direct correlation with impairment in social skills, this paper aims at defining which aspects of language can to contribute to this behavior.
METHODS: This paper uses the cognitive approach of language, which links linguistic, cognitive and social domains. The parallel between the speaker Innocent of Fillmore (1979) and data from previous research (Mousinho, 2003; 2010) and cores extracted from autobiographies of individuals with High Functioning Autism (Grandin & Scariano, 1986; Williams, 1992) was chosen for the joint goal.
Key words: Autistic disorder. Language. Social behavior.
INTRODUÇÃO
Existe uma relação estreita entre as habilidades sociais e a linguagem pragmática, comumente conceituada como o uso social da língua. Falar de forma gramaticalmente correta é insuficiente para ser uma pessoa hábil socialmente. Linguagem usada em contexto social exige habilidades interacionais e cognitivas. Para advogar em favor deste ponto de vista, Fillmore1 propôs o termo "falante inocente" para retratar um indivíduo que reconhece estruturas gramaticais, sem, no entanto, estabelecer inferências.
Dificuldades nas habilidades sociais e pragmáticas estão no cerne das dificuldades no autismo. Descrito desde 1943 por Leo Kanner, trata-se de um transtorno do desenvolvimento caracterizado por apresentar dificuldades, basicamente, em três áreas: déficits nas habilidades sociais, no uso comunicativo da linguagem verbal e não-verbal, e comportamentos restritos e repetitivos. As dificuldades pragmáticas em geral e as dificuldades na compreensão da linguagem figurada mais especificamente têm sido pesquisadas com mais frequência na última década, tanto no Brasil quanto no exterior2-5.
Tendo em vista que o "falante inocente" apresenta correlação direta com alguns prejuízos nas habilidades sociais observados no Autismo de Alto Desempenho (AAD), este artigo objetiva discutir os aspectos da linguagem pragmática que contribuem para isso. Para tal, vai lançar mão da Teoria Cognitiva da linguagem, que preconiza uma ponte entre aspectos linguísticos, cognitivos e sociais. O paralelo entre o Falante Inocente de Fillmore1 e dados de pesquisas anteriores6,7 e testemunhos extraídos de autobiografias de indivíduos com AAD8,9 foi a articulação escolhida para o objetivo traçado.
O AUTISMO DE ALTO DESEMPENHO
Os dois pioneiros da descrição do autismo são Leo Kanner (Estados Unidos), com publicação datada de 1943, e Hans Asperger (Áustria), cujo trabalho foi escrito no idioma alemão, em 1944. O trabalho deste segundo pesquisador não foi amplamente divulgado neste período, dada à dificuldade de leitura deste idioma em diversos países. De qualquer forma, nos dois trabalhos, os autores chamaram atenção para crianças que apresentavam características comuns notáveis, presentes provavelmente desde o nascimento. Eles enfatizaram aspectos relacionados à forma particular de comunicação, à dificuldade de adaptação ao meio social, às estereotipias motoras e ao caráter enigmático e irregular das capacidades intelectuais10.
A definição de autismo, ou psicopatia autística, dada por Asperger, parece ser mais ampla do que a de Kanner, pois ele incluiu inicialmente tanto pacientes com lesões orgânicas graves, como pacientes próximos da "normalidade". Asperger (in Wing11) descreveu crianças com uma alteração fundamental, manifestada por meio de seus comportamentos e modos de expressão, que gera dificuldades consideráveis e bem típicas na integração social: a singularidade do olhar, a mímica facial pobre, a utilização da linguagem de forma pouco natural, falam mais como adultos do que como crianças, a falta de humor, o pedantismo, a invenção de palavras, a impulsividade de difícil controle, dificuldade em aprender o que os adultos ou professores ensinam, os centros de interesse bastante pontuais, e a capacidade frequentemente presente para a lógica abstrata. O autor citou, igualmente, algumas peculiaridades da linguagem não verbal, como a falta de contato olho a olho e alterações de gestos, postura e qualidade vocal.
Muitas pesquisas se desenvolveram desde então, permitindo verificar que tais comportamentos podem se mostrar mais ou menos intensos, abrangendo uma amplitude bastante grande de sujeitos, o que possibilita usar o termo Transtorno do Espectro Autístico12. A diferenciação entre a Síndrome de Asperger e o Autismo de Alto Desempenho também tem sido bastante discutida nos últimos tempos, e há variáveis que prejudicam tal distinção, dispondo as duas condições em um campo dimensional13. Este foi o posicionamento escolhido para o desenvolvimento do presente artigo, que vai se focar em indivíduos autistas sem dificuldades gramaticais, a fim de que as habilidades pragmáticas e sociais possam ser melhor discutidas.
UMA REVISÃO SOBRE LINGUAGEM PRAGMÁTICA E HABILIDADES SOCIAIS NO AAD
Estudos realizados por Ozonoff et al.14 compararam as funções executivas e a cognição social em autistas de alto funcionamento aos controles semelhantes no que se refere a QI verbal, QI de desempenho, idade, sexo e raça. Observou-se que o grupo de autistas de alto funcionamento, em comparação com o grupo controle, evidenciou prejuízo nas tarefas que envolviam funções executivas e de planejamento. Os resultados sugeriram 3 possibilidades: existência de dois déficits primários no autismo, um na Teoria da Mente e outro na função executiva, ou os déficits da função executiva são primários e os déficits da Teoria da Mente são secundários, ou ainda, os dois déficits derivam de alguma deficiência mais básica nas funções pré-frontais.
Ozonoff e Miller15 propuseram um estudo abordando as contribuições de estudos do hemisfério direito para a compreensão dos déficits de comunicação no autismo. Critérios sensíveis a lesões do hemisfério direito foram utilizados em adultos autistas sem retardo mental e em controles. A bateria experimental incluiu medidas para humor, inferência e compreensão indireta. Se as piadas demandassem reinterpretação e uma reanálise do material prévio, a dificuldade era bastante grande, o que, segundo os autores, apontava para um déficit na flexibilidade cognitiva. Os resultados do teste de inferência também foram compatíveis com a hipótese de dificuldade de flexibilidade cognitiva, uma vez que as respostas corretas suscitavam a capacidade de reinterpretar a informação em uma nova perspectiva. Os dados forneceram indícios empíricos para similaridades entre o grupo de autistas de alto desempenho e pessoas com lesões específicas do hemisfério direito, o que permite pensar que o hemisfério direito pode estar envolvido nos déficits sociais e de comunicação do espectro autístico.
Mousinho7 analisou as habilidades semântico-pragmáticas de sujeitos AAD, considerando parâmetros da Linguística Sociointeracional e também da Linguística Cognitiva. No que diz respeito aos parâmetros interacionais, Gumperz16 resumiu o conceito de "pistas de contextualização" como sendo todos os traços linguísticos que contribuem para a sinalização de pressuposições contextuais, sejam elas verbais ou não-verbais. Goffman17 propôs o termo "footing" como uma mudança no enquadre de eventos, sendo a mudança de "footing" marcada pela linguagem de forma verbal ou por meio de marcadores paralinguísticos. Bateson18 demonstrou que durante uma interação é necessário distinguir o enquadre que delimita o enunciado, como sendo, por exemplo, uma discussão ou uma piada.
No que diz respeito às habilidades semântico-pragmáticas associadas à compreensão da linguagem figurada, as noções abordadas foram:
projeção - "mapping"19,20, que se refere à faculdade humana de produção, transferência e processamento do significado; presente em estruturas como metonímias;
mesclagem - "blending"20, que é a conexão entre domínios conceptuais, que projetam parcialmente suas estruturas formando um terceiro espaço, o espaço mescla, com estrutura emergente própria; presente em estruturas como metáforas;
mudança de enquadre - "frame-shifting"21, que é um processo de operação de reanálise semântica que reorganiza a informação existente em um novo modelo cognitivo (frame); presente em estruturas contrafactuais e piadas.
Houve dificuldade em todos os parâmetros avaliados, o que impacta diretamente o desenvolvimento das habilidades sociais nos sujeitos avaliados.
O CONCEITO DE FALANTE INOCENTE DE FILLMORE
No intuito de contrapor a noção de falante/ouvinte ideal em uma comunidade linguística homogênea, Fillmore1 sugeriu uma segunda idealização, que chamou de falante/ouvinte inocente (innocent speaker/hearer). Para caracterizá-la, descreveu a capacidade que esse indivíduo teria para reconhecer estruturas gramaticais e processos que envolvessem os morfemas e o significado de cada um, sem que fosse capaz de estabelecer inferências entre o que diz e o que o outro ouve. Seria capaz de dizer tudo o que é passível de ser dito. Entretanto, seu discurso seria lento, cansativo e pedante.
Dentre suas limitações, apresentaria o discurso baseado na composicionalidade. O falante inocente não seria capaz de atribuir significados à reunião de alguns morfemas, pois tenderia apenas a somar o significado de seus constituintes. Um exemplo, facilmente traduzido para o português, é a diferença entre carcereiro (jailer) e prisioneiro (prisoner). Cárcere e prisão apresentam significados similares, mas ao se acrescentar o sufixo eiro, e todas as suas possibilidades de uso, deixam de ter o mesmo significado, fato dificilmente assimilado pelo falante/ouvinte inocente.
O falante/ouvinte inocente também apresentaria dificuldades com expressões idiomáticas (lexical idioms). Se ouvisse, por exemplo, a expressão "Your goose is cooked" (Seu ganso está cozinhando), que poderia corresponder em português a "Sua batata está assando", ele poderia ficar: preocupado com o ganso (no caso em inglês) se ele tivesse um; feliz, caso tivesse trazido para o jantar um ganso ou uma batata; confuso, caso não tivesse nem um, nem outro.
O falante/ouvinte inocente não se utilizaria de colocações lexicais, que não estejam baseadas necessariamente em relações de sentido. Para ilustrar, o termo "blithering idiot at all" (blightering do termo bligth - má sorte, maldição; idiot - idiota; at all - absolutamente, de modo algum), aproximando-se do português como um "idiota completo", expõe a impossibilidade de se extrair o significado do todo, a partir do significado isolado das palavras. A adaptação de algumas expressões para determinados tipos de situações seria extremamente complicada para os falantes/ouvintes inocentes. Não haveria associações situacionais para expressões como "This hurts me more than it hurts you" (Isso me machuca mais do que a você). No entanto, poderiam ser utilizadas, eventualmente, locuções opacas como "speak of the devil" (fala do diabo), reconhecidas de forma automática.
O falante/ouvinte inocente seria inábil para construções metafóricas e não veria razão para a linguagem se construir metaforicamente. Ao se propor, hipoteticamente, a sentença metafórica "I'll stand behind you" (Eu ficarei atrás de você), em português mais utilizado como "Eu estarei ao seu lado", ao invés de ser interpretado como uma frase para confortar ou dar suporte, poderia desencadear a procura de uma pessoa atrás de si, no caso do inglês, ou ao seu lado, no caso do exemplo em português.
De um modo geral, o falante/ouvinte inocente não usaria mecanismos interpretativos para comunicação indireta, ou seja, significar uma coisa, dizendo outra, ou princípios de coerência de texto que levam a ler as entrelinhas. Se fosse possível supor que ele gosta de ser lisonjeado, ele se sentiria dessa forma ao ouvir "You have a very lovely left eye" (Você tem um belo olho esquerdo). Em português, teria o similar "O branco dos olhos é bonito", fazendo referência ao resto do corpo que não deve ter essa característica.
O falante/ouvinte inocente teria dificuldade para entender a estrutura de texto, ou seja, situar trechos de textos de acordo com os tipos propostos. Um exemplo é a estrutura de carta no Japão, em que o preâmbulo sempre contém comentários sobre a estação. Dificilmente, ele compreenderia que as folhas caídas pelo chão do jardim estariam relacionadas a essa convenção.
Essa descrição do falante/ouvinte inocente torna-se especialmente interessante, na medida em que se observa que várias características de pacientes com AAD são similares a características desse indivíduo idealizado por Fillmore1, analogia que será realizada na próxima seção.
FALANTES/OUVINTES INOCENTES DE FILLMORE E PESSOAS COM AAD: ESTÁ SE FALANDO DO MESMO SUJEITO?
É incrível notar as semelhanças dos falantes/ouvintes inocentes com a caracterização dos pacientes com AAD, sobretudo ao se pensar que a grande difusão do texto de Asperger, ao ser traduzido para o inglês, se deu nos anos oitenta, logo depois da publicação do texto de Fillmore1, em 1979, que nunca escreveu sobre autismo. Para se traçar um paralelo mais cuidadoso entre essas duas situações, serão comparadas, na Tabela 1, as características principais da proposta deste autor, associadas às características propostas por diversos estudiosos da área2-5,22.
Cada um dos itens selecionados na Tabela 1, numerados de 1 a 7, será discutido a partir de dados e resultados de pesquisas prévias baseadas na Linguística Cognitiva5,6, quando os sujeitos não estiverem identificados, bem como em descrições contidas em autobiografias de sujeitos AAD, mais especificamente Temple Grandin8 e Donna Williams9.
1. Discurso lento, cansativo e pedante / discurso pedante, unilateral, prosódia monótona
Estas são características descritas desde o primeiro trabalho de Asperger, traduzido para o inglês em 199123. O pedantismo é também um dos itens a serem observados no diagnóstico clínico pela Associação Americana de Psiquiatria24 e pela Organização Mundial de Saúde25. Ao falar sobre o incômodo que sente ao conversar, um dos pacientes explicita claramente esse comportamento linguístico típico: "...eu tenho mania de usar palavras difíceis fora de hora... porque eu vejo as pessoas fa:: ter uma conversa assim ampla' fluente' entendeu" E eu quero me igualar a essas pessoas e eu não consigo. Fica me faltando palavras difíceis pra pra/ ... pra enfeitar' ´pra enfeitar a conversa".
Uma conversa com um paciente com AAD pode ser um tanto quanto cansativa, igualmente, pelo caráter unilateral, sem a reciprocidade típica dos diálogos, como no exemplo abaixo em que o interlocutor propõe um novo tópico, mas o paciente fala algo que não se relaciona nem ao que estava sendo dito antes, mantendo o enquadre, nem à nova proposta, mostrando não se alinhar ao discurso.
(Falando sobre a cidade de Petrópolis, assunto que surgiu a partir da conversa sobre o boliche e a distância onde ele se localizava)
L.S.: é lá onde antigamente a repórter Maria Valente estava fazendo uma reportagem na Globo.
Interlocutor: é mesmo'' Eu não sei. E lá onde fica o Museu Imperial' você já ouviu falar da Rua Teresa que é uma rua de roupas''.
L.S.: é.
Interlocutor: então' é lá. É muito' muito longe daqui' aí acontece que eu não sei onde fica o tal do/
L.S.: sabe qual novela da Globo estreou no lugar de Esplendor?
Interlocutor: hã''
2. Esse item uniu duas características propostas por Fillmore, que têm a mesma natureza, a do discurso baseado na composicionalidade, seja de morfemas ou de palavras.
Como observado em Mousinho6, questionados sobre o significado das metáforas propostas por sintagmas nominais não-composicionais, pacientes AAD responderam pela soma de partes, sem realizar a mescla, como ilustrado a seguir: AMOR FERIDO como "... amor que ss está doente", AMOR MODERNO, como amor "... que se moderniza", AMOR LOUCO, "... que faz loucuras" ou ainda AMOR FORTE "... é o amor que faz força". Às vezes, nem mesmo a soma das partes é realizada, e observa-se que a explicação é calcada em apenas uma das partes, como na resposta para AMOR SEGURO "É quando uma pessoa segura alguma coisa". Fica claro que tais interpretações não são suficientes para abarcar todo o significado do discurso, colocando em xeque o pressuposto de que o significado está unicamente nas palavras.
3. Dificuldades com expressões idiomáticas/ tendem a pensar nelas ainda na forma experenciada
Em Grandin e Scariano8, exemplifica-se o provável comportamento de uma criança com esse transtorno do desenvolvimento, mediante a expressão americana "hoje vai chover canivetes", na qual ela provavelmente se protegeria sob uma mesa, baseando-se na forma experencial. Um outro exemplo é a explicação de AMOR PERIGOSO utilizada por alguns pacientes, que tomam como referência a forma experenciada, como em "...parece que tá com uma corda aqui (mostrando a figura) uma corda aqui no meio do coração". Outro paciente, ao ser questionado sobre o que seria AMOR PERIGOSO respondeu que é "quando a pessoa tá machucada" e ao se perguntar como, a resposta foi "caindo no chão"; ou ainda em AMOR FERIDO com a explicação "é que está com a lágrima" ou em AMOR LOUCO com a explicação "parece que tá com a língua pra fora". Outro exemplo é a forma como um adolescente reagiu diante da pergunta se já tinha comido O PÃO QUE O DIABO AMASSOU. Ele alegou nunca ter comido uma coisa horrível como aquela, que jamais iria comer e que, se comesse, vomitaria. Também nesse exemplo a interpretação se volta para o campo experencial, com base na experiência corporal, sem que o espaço da mescla possa ser atingido.
4. Inadequação de expressões a situações (apenas opacas)/ usam expressões coladas, mesmo que não sejam opacas, o que fica inadequado
Uma passagem em Grandin e Scariano8 esclarece o uso bizarro de algumas expressões, mostrando como Temple passa a se utilizar de termos cujo significado desconhecia, simplesmente por considerá-los sonoros, repetindo, sem parar, de forma obsessiva. Temple Grandin8 conta um trecho de sua vida em que, desconhecendo o significado, passou a repetir incessantemente um palavrão justamente pela força que as pessoas davam quando falavam, o que parecia bastante atraente. Demorou até perceber o constrangimento causado em alguns profissionais de sua escola, até que eles lhe falaram abertamente. Essa situação ilustra claramente o impacto da linguagem pragmática nas habilidades sociais.
Em uma situação de interação espontânea em uma consulta, um paciente buscou a mudança de tópico somente para utilizar uma expressão muito repetida pela mídia na época "Cigarro faz mal à saúde", que ficou inapropriada em seu discurso, mesmo na tentativa de encontrar um contexto para justificá-lo. A conversa girava em torno da apresentadora de televisão Angélica, quando repentinamente um paciente fala:
P.J.: você fuma ou não"
Interlocutor: não
P.J.: não fuma"
Interlocutor: não
P.J.: porque cigarro faz mal à saúde
Interlocutor: é eu não gosto de cigarro
P.J.: cigarro cigarro faz mal à saúde"
Interlocutor: faz
P.J.: mas tem artista que fuma"
Interlocutor: tem
P.J.: tem muitos ou poucos artistas que fumam"
Interlocutor: eu acho que tem:: mais ou menos
P.J.: hum:: mas se algum artista fumar eu vou falar que faz mal à saúde
Logo após, mudou-se novamente de tópico, ficando esse trecho descontextualizado na tentativa de diálogo. Vale observar que a postura é ingênua, pois o paciente não percebe que a moldura comunicativa típica de um encontro de um fã com um artista não permitiria o alerta de que fumar faz mal à saúde. Além de tudo, em nossa sociedade quase todos conhecem os malefícios do tabaco, incluindo os artistas, e, se o paciente pudesse se colocar no ponto de vista dos artistas fumantes, mais uma vez perceberia o quão imprópria seria sua observação.
5. Inabilidade para construções metafóricas/ poucos realizam o processo de mesclagem necessário às metáforas
Mais uma vez o exemplo de Temple8, descrito no capítulo III, poderá exemplificar a dificuldade na compreensão de metáforas. Ela relatou não compreender o que significava "uma janela para o paraíso", frequentemente dito por pessoas a sua volta. Certo dia entrou em contato diretamente relacionado à experiência, ao se deparar com a visão de uma linda paisagem, conseguindo, então, correlacioná-la à metáfora.
Em contexto de avaliação, em alguns momentos, pacientes explicitaram essa dificuldade específica com a compreensão de metáforas, como nos dois trechos a seguir, o primeiro referente à metáfora "O amor naufragou" e a segunda, resposta de dois pacientes, mediante a expressão "... é uma gata":
AMOR NAFRAUGOU
Interlocutor: quando a gente fala assim: o amor daqueles dois naufragou. O que que a gente quer dizer"
A.Y.: não sei não sei
... É UMA GATA
Interlocutor: a Xuxa é uma gata''
C.L.: é (2.5)
Interlocutor: porquê''
C.L.: não sei ...
Interlocutor: Vem cá, diz pra mim, vc acha a Ana Paula Arósio uma gata?
L.S.: Ela é uma gata
Interlocutor: Volta pra Ana Paula Arósio... Não, tô lá na Ana Paula Arósio ainda. Eu acho ela um jaburú
L.S.: Não sei
Interlocutor: Vc acha ela uma gata ou jaburu? Fala pra mim
L.S.: Sei lá ... Que, ué vamos ver se mudamos o assunto
Os pacientes percebem que não compreendem o significado, que solicita o processamento de mesclagem, que eles não conseguem realizar espontaneamente. No caso do testemunho de Temple, ela pode fazer a mescla depois de escutar muitas vezes a metáfora e entrar em contato com sua base experencial.
6. Não usam mecanismos interpretativos para comunicação indireta/ dificuldades com funções pragmáticas - projeção nem sempre de fácil realização
Ao referir os testemunhos de pessoas adultas com AAD, pode-se identificar essa dificuldade em Williams9, quando a mesma refere que seus amigos a convidam para "tomar um cafezinho" e ela recusa por não gostar de café, e não perceber a intenção do encontro social.
No exemplo de um adolescente, em que foi dado o estímulo, "O porteiro avisou a polícia: o edifício está reclamando do barulho do vizinho", quando questionado sobre quem havia reclamado de fato, primeiro disse que aquilo não estava escrito "Ah eu eu não vi (++) não tem não tem escrito isso não" (mostrando que necessita dele estar explícito para que possa responder), e quando se insistiu sobre quem é que na verdade estava reclamando do barulho do vizinho, a resposta foi "deve ser o o o porteiro". Da mesma forma ocorre nos exemplos abaixo, em que um mesmo paciente responde a duas propostas sem utilizar recursos de interpretação indireta:
Na primeira página do jornal estava estampada a notícia: "O Maracanã comemorou o gol do Brasil" - Quem, na verdade, comemorou?
T: o Maracanã
Interlocutor: o Maracanã comemora"
T: maracá/ quem comemorou o gol do Brasil"
Interlocutor: como é que o Maracanã comemora"
T: (7 seg) Copa do mundo
O técnico de futebol fez o seguinte comentário: "O camisa dez fez um golaço" - Quem, na verdade, fez o gol?
Interlocutor: quem fez um golaço"
T: (...)
Interlocutor: foi a camisa que fez"
T: o técnico de futebol
Interlocutor: quem fez o gol"
T: o técnico
7. Dificuldade para entender a estrutura de texto/ nem sempre a moldura comunicativa é clara, incluindo a de textos
O desabafo de um dos pacientes, tentando relativizar as dificuldades escolares apresentadas ao longo de sua vida, ao falar da disciplina de filosofia, pode exprimir como ninguém suas limitações "... é meu ponto fraquíssimo... porque é uma matéria que que requer muita::: interpretação..... a matéria interpretativa é o x do problema." Da mesma forma, ao ser perguntada porque era difícil a parte de interpretação, a resposta de uma paciente com AAD foi "... porque tem que ler o texto..... tem que responder...". A dificuldade acadêmica apresentada por todos eles, apesar de uma inteligência considerada normal através de testes clássicos de QI, pode ser em grande parte gerada com essa inabilidade com textos, base da escolaridade formal, além de todas as outras dificuldades linguístico-cognitivas já apontadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A linguagem pragmática está direta e intimamente relacionada às habilidades sociais. Em Autistas de Alto Desempenho estas são questões que se evidenciam.
Dentre as dificuldades pragmáticas de indivíduos com AAD, ilustradas a partir das características do "Falante Inocente", destacam-se o discurso lento, cansativo e pedante, baseado na composicionalidade, inadequação no uso e compreensão de expressões e metáforas, dificuldades com expressões idiomáticas, com mecanismos interpretativos para comunicação indireta e com interpretação de textos.
A semelhança entre a idealização do "falante inocente" de Fillmore1 (1979), e as dificuldades vividas por pacientes com AAD, é mais um fator que corrobora a escolha da Linguística Cognitiva, que une aspectos linguísticos, cognitivos e sociais. As dificuldades nas habilidades pragmáticas e sociais em pacientes com Autismo de Alto Desempenho não seriam passíveis de serem abordadas por linhas mais formalistas, cujas preocupações estivessem focadas na boa formação dos aspectos gramaticais, ignorando informações do contexto social.
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Correspondência:
Renata Mousinho
Av. das Américas, 2678 - casa 11 - Barra da Tijuca
Rio de Janeiro, RJ, Brasil - CEP: 22640-102
E-mail: renatamousinho@ufrj.br
Artigo recebido: 5/8/2010
Aprovado: 28/10/2010
Trabalho realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.