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Revista Psicopedagogia
Print version ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.28 no.85 São Paulo 2011
ARTIGO DE REVISÃO
Interfaces conceituais entre os pressupostos de L. S. Vygotsky e de R. Feuerstein e suas implicações para o fazer psicopedagógico no âmbito escolar
Conceptual interfaces between the envisions by L. S. Vygotsky and R. Feuerstein and their inferences toward the psychopedagogic making within the schooling field
Marcelo SalamiI; Dirléia Fanfa SarmentoII
IMestrando do Programa pós- graduação em Educação da Unisinos - São Leopoldo, RS, Brasil. Licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário La Salle - Canoas, RS, Brasil e Bacharel em Psicologia Clínica e Institucional pela mesma instituição
IIDoutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Pós-Doutoranda em Ciências da Educação pela Universidade do Algarve, Portugal. Diretora de Extensão, Pós-graduação e Pesquisa e professora do Curso Mestrado em Educação do Centro Universitário La Salle - Canoas, RS, Brasil
RESUMO
A educação é um direito universal e um dos elementos fundamentais para o desenvolvimento das pessoas e da sociedade. Para responder às novas exigências da sociedade do conhecimento, as intervenções educativas ou psicopedagógicas precisam abranger não somente a dimensão cognitiva, mas atentar também às dimensões afetivo-emocionais, socioculturais, éticas e morais. Visto sob esta perspectiva, entende-se que a interlocução entre os princípios teóricos sociointeracionistas (neste texto representados pelas Teorias de Vygotsky e Feuerstein) podem constituir-se em alicerce para uma intervenção educativa e/ou psicopedagógica significativa. Com tal intervenção, objetiva-se a potencialização dos processos de aprendizagem e a mobilização dos sujeitos da educação a se tornarem protagonistas de sua constituição pessoal.
Unitermos: Educação. Aprendizagem. Psicologia Educacional.
SUMMARY
Education is a universal right and one of the fundamental components of personal and social development. To reply to the new urgent requirements of the learning society, the educational and psychopedagogic mediations need to encompass not only the cognitive dimension, but inclusively the affective-emotional, social-cultural, ethical and moral dimensions altogether. Casting the eyes on this perspective, the interlocution between the social-interactional theoretic principles may become understood. Within this text they are represented through the Theories by Vygotsky and Feuerstein. These theories may frame the foundation of an educative as well as of a significant psychopedagogic making. Together with such a mediation, the potentiation of the learning processes, as well as the mobilization of the subjects of education are objectified to become protagonists of their own constructing.
Key words: Education. Learning. Psychology, Educational.
INTRODUÇÃO
A educação é um direito universal e um dos elementos fundamentais para o desenvolvimento das pessoas e da sociedade. Para responder às novas exigências da sociedade do conhecimento, as intervenções educativas e/ou psicopedagógicas precisam abranger não somente a dimensão cognitiva, mas atentar também às dimensões afetivo-emocionais, socioculturais, éticas e morais.
A ativação e otimização do desenvolvimento global da pessoa, especialmente daquelas que enfrentam dificuldades para aprender, requer profissionais capacitados e mobilizados para encorajar e incentivar o desenvolvimento pessoal em suas diferentes dimensões, tendo em vista que a superação de tais dificuldades é condição sine qua non para o êxito escolar/acadêmico e na própria vida.
Tanto o professor quanto o psicopedagogo podem ser caracterizados como profissionais que estabelecem relações com outros sujeitos e, a partir destes, com o próprio conhecimento. Neste sentido, a ação mediadora é um elemento imprescindível para o desenvolvimento das possibilidades de aprendizagem de cada aluno. Visto sob esta perspectiva, a interlocução entre os princípios teóricos sociointeracionistas (neste texto representados pelas Teorias de Vygotsky e Feuerstein) podem constituir o alicerce para uma intervenção educativa e/ ou psicopedagógica significativa. Com tal intervenção, é objetivada a potencialização dos processos de aprendizagem e a mobilização dos sujeitos da educação, que se tornam protagonistas de sua constituição pessoal.
CONTEXTO DE DESENVOLVIMENTO TEÓRICO DE VYGOTSKY E FEUERSTEIN E POSSÍVEIS INTERFACES CONCEITUAIS
Vygotsky nasceu em 1896, em Orsha, na Bielo-Rússia. Feuerstein nasceu em 1921, em Botosan, na Romênia. Enquanto Feuerstein dava seus primeiros passos, Vygotsky já colocava em curso o delineamento do arcabouço da Teoria Histórico-cultural. Embora Feuerstein tenha estudado com Piaget, e elaborasse algumas considerações evidentemente conectadas a premissas piagetianas, é em ênfases vygotskianas que os principais conceitos do seu trabalho teórico possuem forte ressonância.
Apesar de separados no contexto espaço-temporal, os autores já partilhavam, em suas origens, pontos comuns. Dentre esses, podemos destacar: a) a origem judaica de ambos e suas vidas e obras influenciadas por um cenário de transformações sociais, políticas, econômicas, que ocorreram no bojo de conflitos armados, tanto nacionais quanto mundiais. Esse cenário parece ter impregnado seus postulados teóricos que, de forma explícita, traduzem um otimismo em relação à capacidade de o ser humano transformar a si próprio assim como o seu entorno físico e social; b) a experiência na docência como um dos aspectos relevantes em suas trajetórias profissionais; c) o interesse e discussão da dimensão da "deficiência", ou seja, dos processos de ensino e aprendizagem de pessoas com necessidades especiais; d) a formação na área da Psicologia, dentre outras; e) a ênfase nos processos mediadores como propulsores do desenvolvimento e da aprendizagem (em Vygotsky, a mediação simbólica e, em Feuerstein, a Experiência de Aprendizagem Mediada- EAM); e f) o enfoque na dimensão sociocultural como elemento primordial na constituição do ser humano.
Como pontos distintivos, que não constituem empecilho para o estabelecimento de aproximações conceituais, podemos citar: a) as bases teóricas que fundamentaram o trabalho de cada autor; b) a forma como se estabelece a articulação entre teoria e prática; e c) o contexto de difusão de cada teoria.
No que se refere às bases teóricas que constituíram como que o alicerce para o desenvolvimento de suas teorizações, Vygotsky teve como ponto de referência os princípios marxistas, e Feuerstein, tendo sido aluno de Jean Piaget, a Epistemologia Genética. Em relação à articulação entre os pressupostos teóricos desenvolvidos pelos autores e suas articulações com o âmbito da prática, é em Feuerstein que se encontra de forma explícita tal articulação. Segundo Beyer e Sarmento1: "Teoria e prática se unem no trabalho de Feuerstein de uma maneira harmoniosa, de modo que se pode dividir seu trabalho, basicamente, em dois blocos. No lado da teoria, um conjunto coeso de premissas conceituais forma o suporte teórico para a elaboração, no lado da prática, de implicações de cunho pragmático voltadas para a ação psicopedagógica".
Os autores supracitados, ao mencionarem a ação psicopedagógica, se referem aos dois programas de avaliação e intervenção psicopedagógica desenvolvidos por Feuerstein: o primeiro, a Avaliação Dinâmica do Potencial de Aprendizagem (Tradução para o português do inglês Learning Potential Assessment Device - LPAD), e o segundo, o Programa de Enriquecimento Instrumental, cuja formulação no inglês é Instrumental Enrichment Program (PEI).
O LPAD é composto por uma série de testes desenvolvidos com o intento de apreciar o potencial de aprendizagem, identificando as funções cognitivas deficientes e o nível de mediação necessário para possibilitar mudanças na estrutura do funcionamento cognitivo dos sujeitos. Já o PEI surge com o intento de superar os efeitos prejudiciais advindos da carência da experiência de aprendizagem mediada, possibilitando o emprego de procedimentos capazes de proporcionar a transformação da estrutura cognitiva e o desenvolvimento do potencial de aprendizagem das pessoas com ou sem dificuldades na aprendizagem2.
De forma equilibrada e crescente, os dois programas possibilitam que a pessoa construa estruturas cognitivas caracterizadas pelas mais diversas operações mentais. A contínua interação com as diferentes tarefas propostas acaba por provocar, na criança ou no adulto, organizações ou reorganizações cognitivas em áreas estratégicas do funcionamento mental, normalmente em decorrência de diagnósticos previamente elaborados sobre as dificuldades individuais, ou como resultado de objetivos pedagógicos ou profissionais. Destaca-se, porém, o fato de que a dinâmica posta em movimento pelas intervenções mediadoras contínuas com os instrumentos produz novas formas de pensar, que, em última análise, potencializam os níveis funcionais individuais.
Com referência à difusão dessas teorias, a de Vygotsky começa a despontar com mais veemência no cenário brasileiro, especialmente a partir da década de noventa. Desde essa década, é possível constatar um crescente número de artigos, dissertações e teses que começaram a ser produzidos, em diferentes áreas do conhecimento, utilizando o referencial vygotskyano em suas fundamentações teóricas3.
A teoria da Modificabilidade Cognitiva Estrutural, desenvolvida por Feuerstein, gradativamente se está tornando conhecida no Brasil. Conforme salientam Beyer e Sarmento1, esta teoria "[...] continua sendo relativamente pouco conhecida no âmbito educacional brasileiro. Em contraste, em muitos países europeus, como também em alguns países de nosso continente e nos próprios Estados Unidos, sua teoria e seu programa de educação cognitiva estão sendo aplicados não só no meio educacional, como também em empresas e sindicatos".
Vygotsky4-6 defende a ideia de que a relação homem-mundo não é uma relação direta (de estímulo-resposta, como pregava o comportamentalismo), mas sim é uma relação mediada principalmente por ferramentas (instrumentos) e signos, que auxiliam a atividade humana. Os atos mediadores ocorrem no cerne da cultura, na forma de diferentes instrumentalizações materiais e psicológicas. Assim, ferramentas, signos (em especial a linguagem), técnicas culturais desempenham funções de mediação, além, evidentemente, da ação humana específica. A interação social constitui um dos pilares do pensamento vygotskyano, considerando que é através das trocas estabelecidas com o meio físico e o social que o ser humano se constitui e desenvolve, (re)constrói e se apropria dos conhecimentos, desenvolvendo desse modo, as funções psicológicas superiores. Nesse sentido, ganha tônica a qualidade e a adequação das relações interpessoais como facilitadoras para a construção da pessoalidade e da interpessoalidade.
Vygotsky5 refere que a aprendizagem da criança começa muito antes da aprendizagem escolar e que esta nunca parte do zero. Ou seja, toda a aprendizagem da criança na escola tem uma pré-história. O mesmo autor considera a escola um espaço privilegiado do saber sistematizado, pois ela possibilita que o indivíduo tenha acesso ao conhecimento científico construído e acumulado pela humanidade.
O professor e/ou psicopedagogo precisa ter presente que a aprendizagem ocorre mais facilmente quando é significativa para o aluno, isto é, quando o aluno percebe algum valor nela. A capacidade de atribuir valor à aprendizagem também é uma construção na vida da pessoa. Esse processo inicia-se na família e estende-se para a escola, espaço privilegiado para a construção de novos saberes.
A ênfase sociocultural de Feuerstein2 encontra paralelo na abordagem teórica de Vygotsky a respeito das interações socioculturais da criança7. Feuerstein, assim como Vygotsky, salienta a dinâmica dos processos interativos como fonte propulsora de desenvolvimento. Desse pressuposto infere-se o conceito de mediação. Feuerstein2 aproxima-se da abordagem vygotskyana de mediação por meio do seu conceito da Experiência de Aprendizagem Mediada. Para ele, existem duas modalidades através das quais é possível ocorrer o desenvolvimento cognitivo do sujeito: a interação direta entre sujeito e objeto e a Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM).
A Experiência de Aprendizagem Mediada é decorrente da interposição de um mediador, geralmente um adulto (pais, professores, psicopedagogos, cuidadores), o qual organiza as situações de aprendizagem de forma intencional. Essa ação mediadora tende a ser minimizada com o decorrer do tempo, pois a EAM afeta a estrutura interna do sujeito, possibilitando-lhe o desenvolvimento de sua autonomia cognitiva. No entanto, para que essa experiência possa ser caracterizada como mediada, torna-se necessária a presença de alguns critérios, pois nem toda a mediação possibilita a aprendizagem. O mediador necessita incorporar em sua ação alguns componentes essenciais, sem os quais não há força mediadora.
Feuerstein2 classifica tais critérios em duas categorias: os critérios universais, que devem sempre estar presentes na ação mediadora, e os critérios particulares, que estarão presentes, dependendo das necessidades e características individuais ou de grupo. Os critérios de mediação universais são: mediação da intencionalidade e reciprocidade; a mediação da transcendência e a mediação do significado. Os principais aspectos a serem observados pelo professor ou psicopedagogo ao mediar tais critérios são: desafiar as pessoas na busca e construção de significados; oportunizar situações de aprendizagem desafiadoras e motivadoras que despertem o interesse; debater a importância e a finalidade das tarefas propostas, assim como propiciar um ambiente, onde o principal foco seja a cooperação e a interação.
Em relação aos critérios de mediação particulares, destacam-se: mediação da regulação e controle do comportamento, mediação da conduta compartilhada, mediação das diferenças individuais, mediação da busca, planejamento e realização dos objetivos, mediação da busca da novidade e da complexidade, mediação da capacidade de transformação estrutural cognitiva, mediação do otimismo e mediação do sentimento de competência. De modo geral, as ações do professor ou psicopedagogo, para efetivar a mediação de tais critérios, têm como objetivo auxiliar a pessoa para: a) auto-regular e controlar o comportamento; b) sentir-se capaz de utilizar seu pensamento de forma própria e independente; c) desenvolver o espírito de cooperação; d) expor e partilhar suas ideias e assumir uma postura de respeito em relação às experiências e opiniões de outras pessoas; e) delinear objetivos e metas a serem alcançados a curto, a médio e a longo prazo; f) transcender suas necessidades imediatas; g) identificar as novidades e os níveis de abstração e complexidade de cada situação ou evento; e h) reconhecer sua capacidade e flexibilidade afetiva-emocional e cognitiva de se adaptar a novas situações, dentre outros.
Uma diferença, porém, suscetível de destaque nas abordagens de Feuerstein e Vygtosky é que, enquanto para o primeiro a ênfase está na mediação humana, para o segundo, a excelência dos atos mediadores são os signos (em especial a linguagem) e os instrumentos de trabalho. Ao abordar a mediação nos processos de ensino e aprendizagem, é importante discutir especialmente dois conceitos: o de potencial de aprendizagem, utilizado por Feuerstein, e o de zona de desenvolvimento proximal, desenvolvido por Vygotsky. O potencial de aprendizagem, na perspectiva de Feuerstein2, diz respeito à capacidade que o ser humano possui em ampliar suas possibilidades de aprendizagem e adaptação ao meio, mesmo que tal capacidade não esteja plenamente manifesta em seu repertório cognitivo. Nesse sentido, esse potencial de aprendizagem está intrinsecamente ligado à possibilidade da transformação cognitiva e pode ser desvelado e ampliado por meio da experiência de aprendizagem mediada. A zona de desenvolvimento proximal, conforme Vygotsky6, diz respeito a funções em vias de desenvolvimento, que se efetivarão por meio das mediações simbólicas e humanas que o sujeito vivenciar.
A partir do exposto, é possível constatar que ambos os autores possuem uma visão prospectiva do desenvolvimento humano. Vygotsky e Feuerstein defendem a necessidade de garantir formas de avaliação que contemplem os processos em vias de desenvolvimento. Beyer7, ao comentar a visão de avaliação prospectiva de Vygotsky, salienta que seria fundamental garantir formas de avaliação das condições infantis que incluíssem não apenas análises retroativas e do estado atual, mas também uma consideração prospectiva. Ou seja, a avaliação do desenvolvimento infantil não pode estar restrita ao ontem ou ao hoje da criança no sentido das competências visíveis, porém, deve incluir, sempre, o devir das novas competências no amanhã dessa criança. Enfim, deve ser direcionado seu desenvolvimento proximal.
Relacionado ao desenvolvimento cultural, Vygotsky5 desenvolve o conceito de primitivismo cultural. Para o autor, "[...] uma criança primitiva é uma criança que não teve um desenvolvimento cultural ou o teve num nível muito baixo. [...] O primitivismo da criança, isto é, o atraso em seu desenvolvimento cultural, deve-se fundamentalmente ao fato de que, por alguma causa externa ou interna, não conseguiu dominar os meios culturais de comportamento, especialmente a linguagem".
Esse estudioso da gênese social do psiquismo considera relevante, entretanto, estabelecer uma diferenciação entre o primitivismo cultural e a debilidade mental. Para ele, primitivismo e debilidade mental são fenômenos qualitativamente diferentes, cujas origens são distintas: "[...] a debilidade mental é um atraso do desenvolvimento natural ou orgânico, que tem sua origem num defeito cerebral. O outro é um atraso no desenvolvimento cultural do comportamento, que tem sua causa no domínio insuficiente dos métodos culturais de raciocínio"5.
Pessoas com danos em nível biológico podem apresentar características de atraso no pensamento e na linguagem, similares às características de atraso que pessoas com danos ou privações no âmbito cultural também apresentam. Isso oferece, na ótica dele, indícios para fundamentar seu postulado básico de que o desenvolvimento humano assenta sobre as duas linhas de desenvolvimento dialeticamente integradas. A partir dessas verificações se têm pistas para compreender por que crianças, adolescentes e até mesmo adultos, cujas histórias de vida demonstram circunstâncias massivas de privação das mais variadas, demonstram atrasos intelectuais comparados aos de pessoas com deficiência mental.
Para Feuerstein2, as situações de mediação sociocultural e afetiva são fundamentais para o desenvolvimento intelectual infantil, sendo que, no seu entender, sem experiências mediadoras de aprendizagem, a criança enfrentaria sérias dificuldades na consolidação das estruturas do pensamento. Feuerstein denominou de privação cultural as lacunas decorrentes de um quadro de privação nos vínculos e nas mediações, especialmente na primeira infância. Neste conceito não seriam decisivas as situações de carência ou de ausência nos vínculos de mediação do grupo familiar, e também cultural.
Assim, a privação cultural diz respeito às situações em que o sujeito é privado (total ou parcialmente) do acesso aos bens culturais produzidos pela humanidade, incluindo aqui os próprios conhecimentos; ou ainda, não possui mediadores que o auxiliem para que possa apropriar-se dos mesmos8. No entanto, segundo a compreensão de Feuerstein2, nem a privação cultural, tampouco fatores, tais como condição genética, maturidade emocional ou nível socioeconômico, são capazes de provocar deterioramentos irreversíveis no desenvolvimento cognitivo do sujeito. As deficiências decorrentes de tais fatores podem ser trabalhadas por meio de experiências de aprendizagem mediadas, viabilizando ao sujeito o desenvolvimento de suas potencialidades.
É assim verificada uma compreensão muito similar entre Vygotsky e Feuerstein, no sentido da causa dinamizadora do desenvolvimento infantil. A dimensão primária para a aquisição, pela criança, de sempre mais complexas estruturas de pensamento e linguagem, não recai sobre a bagagem biológico-hereditária humana, porém se situa na gênese social.
O PSICOPEDAGOGO MEDIADOR
As postulações teóricas de Vygostsky e Feuerstein trazem contribuições significativas para repensar o fazer psicopedagógico, tomando em consideração a ênfase de ambos os autores nos processos de desenvolvimento e aprendizagem numa perspectiva global. Ao focalizar as implicações destes referenciais teóricos, especialmente para a área da Psicopedagogia, parte-se do pressuposto de que o fazer psicopedagógico é solidificado num trabalho inter e multidisciplinar, em que vários atores interagem e protagonizam seus papéis.
Nesse cenário, o papel do psicopedagogo é fundamental por entender que ele é um profissional capaz de agregar valor à equipe pedagógica, contribuindo juntamente com outros profissionais que compõem essa equipe, para o aprimoramento dos processos e práticas de ensino, tendo em vista a excelência dos processos de aprendizagem. Nesse sentido, o psicopedagogo se compreende inserido na equipe pedagógica numa perspectiva mediadora, compartilhando o pensar e o agir dessa equipe.
O psicopedagogo mediador tem conhecimento da estrutura e do funcionamento de uma escola e, ao realizar uma avaliação ou intervenção, tem presente algumas questões fundamentais do ponto de vista institucional: a) a educação escolar é uma tarefa coletiva que conta com objetivos comuns, trabalho de colaboração, divisão de tarefas...; b) as instituições educativas são organismos vivos com culturas e dinâmicas próprias; c) os processos de mudança, significativos e duradouros, acontecem a partir de soluções organizacionais, ou seja, a partir do global e não do específico.
Com base nisso, parece plausível inferir que um psicopedagogo mediador como um dos integrantes de uma equipe pedagógica escolar, dentre outros aspectos, contempla os critérios mediacionais preconizados por Feuerstein. Assim:
a) Empenha-se em mobilizar a equipe pedagógica, e a si próprio, para a construção de uma relação de cooperação mútua. Sua intervenção volve a ser legítima quando seus objetivos são compartilhados com a instituição em sua totalidade e, de forma mais acentuada, com a equipe pedagógica em que se insere. As tarefas assumidas, através de processos interativos, entre psicopedagogo e equipe pedagógica, a partir de uma perspectiva de cooperação mútua, devem despertar em ambos um maior vínculo e sentimento de pertença com os desafios e metas da instituição.
b) Auxilia a equipe pedagógica a ter um olhar acurado e detalhado sobre os fatores que incidem ou que influenciam na promoção, ou para o surgimento das dificuldades de aprendizagem dos alunos, fazendo uma análise crítica, principalmente, das modalidades e metodologias de ensino adotadas pelos professores no processo de ensino-aprendizagem. Recorre aos seus conhecimentos teórico-metodológicos utilizando-os de forma científica e rigorosa, aproveitando adequadamente as informações por eles proporcionadas.
c) Procura mobilizar a equipe no sentido de "provocar" a revisão e a superação de possíveis compreensões superficiais ou estereotipadas da realidade institucional.
d) Vislumbra a promoção de situações de aprendizagem que valorizam a interação social no espaço escolar, enquanto tempos e espaços de aprendizagem significativa, inclusive para o próprio professor rever suas concepções e posturas.
e) Auxilia o professor na seleção, organização e planejamento de situações de aprendizagem que sejam significativas e que contribuam para a interlocução, partilha de experiências e conhecimentos, respeitando os diferentes estilos e condições de aprendizagem de cada sujeito.
f) Contribui para a ressignificação da relação entre teoria e prática e à proposição de espaços e tempos para a formação continuada do professor, desenvolvendo em parceria com a equipe, projetos relacionados às temáticas do ensino e da aprendizagem, dentre outras.
g) Acredita e alimenta a crença em si e entre os profissionais que atuam no contexto escolar na capacidade de modificabilidade e adaptabilidade que o ser humano possui.
h) Valoriza a escola e a considera um meio privilegiado de construção de saberes.
i) Visualiza os processos de interação humana como experiência privilegiada de ampliação do conhecimento e de construção de significados.
j) Procura manter um olhar contextualizado sobre os fenômenos que ocorrem na escola e busca pensar a instituição a partir de um olhar estratégico. Isto é, auxilia a equipe pedagógica a analisar fortalezas e fraquezas, oportunidades e ameaças, visualizar metas, estabelecer indicadores, elaborar projetos a curto, médio e longo prazo. Além disso, executa as ações que são de sua competência e as avalia de acordo com seus objetivos.
k) Empenha-se na comunicação interpessoal para interagir mais positiva e eficazmente com os outros, substituindo desconfiança e incomunicabilidade por maior disponibilidade, empatia e escuta. Nesse sentido, desenvolve a habilidade de dar e receber feedback.
l) Tem boa capacidade de resiliência. Compreende a experiência subjetiva dos membros da equipe, colocando-se em seus planos, olhando as coisas do seu ponto de vista. Exercita a tolerância, através de uma atitude de respeito aos processos, evitando impor ou propor questões desnecessárias ou descontextualizadas.
m) Mantém-se atualizado acerca das discussões sobre a educação escolar, os processos de ensino-aprendizagem (currículo, metodologias de ensino, sistema de avaliação, etc.), o uso de novas tecnologias, através de leituras, participação em cursos, seminários, congressos, etc.
Feitas estas considerações, sobressai que o trabalho psicopedagógico no contexto institucional necessita de ser pensado, entendendo a instituição escolar dentro de um projeto social mais amplo, pois os processos de desenvolvimento e aprendizagem dinamizam-se no mundo social e cultural onde o ser humano está inserido. As mediações, sejam elas simbólicas ou humanas, são elementos primordiais para tais processos. É evidente que o êxito do trabalho do psicopedagogo não depende, exclusivamente, de suas intervenções, mas sim do grau de cumplicidade dos professores e da equipe pedagógica com a sua proposta de trabalho.
REFLEXÕES FINAIS
Historicamente, a Psicopedagogia nasceu para atender à patologia da aprendizagem, contudo, na atualidade, observa-se uma tendência no redirecionamento de seu foco, na perspectiva de uma ação preventiva, instrumentalizando os sujeitos para que desenvolvam competências que lhes possibilitem obter êxito na aprendizagem.
No âmbito institucional, o psicopedagogo tem a possibilidade de centrar sua ação e intervir no conjunto de atores que possuem relação com os processos de ensino e aprendizagem: a equipe pedagógica, professores, alunos, pais e demais pessoas partícipes do contexto de desenvolvimento dos alunos, seja no contexto macro ou microestrutural.
Fica ressaltada a necessidade da visão contextualizada, pois uma visão linear do psicopedagogo sobre os fenômenos que ocorrem no interior da instituição escolar podem levá-lo a ter uma compreensão parcial e, muitas vezes ingênua, dos fenômenos educativos e das variáveis que nele interferem.
Ao focalizar as implicações dos referenciais teóricos de Vygotsky e Feuerstein, especialmente para a área da Psicopedagogia, parte-se do pressuposto de que o fazer psicopedagógico se solidifica num trabalho inter e multidisciplinar em que vários atores interagem e protagonizam seus papéis. Neste sentido, é possível inferir que alguns dos princípios estruturantes de uma intervenção psicopedagógica numa perspectiva mediadora são: a) a consideração dos contextos de desenvolvimento pessoal e coletivos nos processos e práticas educativas; b) a interação entre o ensinante e aprendente e entre aprendente-aprendente como elemento substancial para o desenvolvimento e aprendizagem humana; c) a consolidação de equipes multidisciplinares na gestão dos processos de ensino e aprendizagem; e d) a ação mediadora pautada e alicerçada nos critérios de mediação particulares e universais.
Isso implica compreender que cada sujeito, independentemente de limitações ou deficiências, é especial, porque possui desenvolvimento, ritmo, características, necessidades e aprendizagens diferenciadas. Os postulados de Vygotsky e Feuerstein apontam para a necessidade de criação de uma nova ordem escolar bastante diferente da realidade que vivenciamos em nossas escolas. Ou seja, uma escola em que os sujeitos da educação possam dialogar, duvidar, questionar e compartilhar saberes. Uma escola em que haja espaço para o erro, para as contradições e as diferenças, para a cooperação e a criatividade, onde alunos e professores não sejam meros "repetidores" do saber acumulado pela humanidade, mas sim, autores do próprio pensar, isto é, uma escola em que o conhecimento sistematizado não seja tratado de forma dogmática sem significado.
Por fim, com base no referencial norteador que fundamenta as premissas apresentadas neste texto, fica confirmada a importância das posições de Vygotsky e Feuerstein no que concerne à visão de pessoa e de educação: a) o sujeito é histórico, isto é, a pessoa se constitui por meio da confluência entre fatores internos e externos; b) a pessoa, independentemente de sua condição biológica, possui um potencial de aprendizagem que lhe viabiliza aprender e evoluir; e c) os processos mediadores e de interação social são propulsores do desenvolvimento e da aprendizagem.
REFERÊNCIAS
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2. Feuerstein R. Instrumental enrichment: an intervention program for cognitive modifiability. Baltimore:University Park Press;1980. [ Links ]
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8. Sarmento DF. Mediação humana, ensino e aprendizagem: pressupostos teóricos e metodológicos da teoria de Reuven Feuerstein. In: Sarmento DF, Rapoport A, Fossatti P, org. Psicologia e Educação: perspectivas teóricas e implicações educacionais. Canoas:Salles;2008. p.53-65. [ Links ]
Correspondência:
Marcelo Salami
Av. Padre Claret, 2403 - Esteio
RS, Brasil - CEP 93280-261
E-mail: irmarcelocs@gmail.com
Artigo recebido: 30/10/2010
Aprovado: 22/1/2011
Trabalho realizado no Centro Universitário La Salle, Canoas, RS, Brasil.