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Revista Psicopedagogia

Print version ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.28 no.87 São Paulo  2011

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Uma autópsia nas origens dos problemas de aprendizagem matemática sob as lentes da transferência em Freud

 

An autopsy on the origins of the problems of learning mathematics under the lens of transfer in Freud

 

 

Laerte Fonseca

Doutorando em Educação Matemática pela Universidade Bandeirante de São Paulo (UNIBAN; 2011); Mestre em Ensino de Ciências e Matemática pela Universidade Federal de Sergipe (UFS; 2011); Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS; 2002); Especialista em Educação Matemática pela Faculdade Atlântico (FA; 2009); Especialista em Psicopedagogia Clínica pela Faculdade Pio Décimo (FPD; 2002); Especialista em Psicopedagogia Institucional pela Faculdade Pio Décimo (FPD; 1999); Especialista em Ensino de Matemática pela Universidade Federal de Sergipe (UFS; 1995); Especialista em Gerência e Tecnologia da Qualidade pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET/MG; 1994); Licenciado em Matemática pela Universidade Federal de Sergipe (UFS; 1992); Graduando em Psicologia pela Faculdade de Sergipe (FASE/ESTÁCIO; 2010); Estudante de Psicanálise pelo Núcleo Psicanalítico de Aracaju (NPA; 2010); Pesquisador da FAPITEC/SE-BIBIC/Jr-CNPq; Pesquisador do PIBIC/IFS; Membro do Grupo de Pesquisa em Educação e Contemporaneidade/UFS; Professor do Curso de Licenciatura em Matemática do Instituto Federal de Sergipe - IFS/BR; Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Matemática/IFS; Coordenador e Editor da Revista Sergipana Caminhos da Educação Matemática; Pró-Reitor de Ensino do Instituto Federal de Sergipe - IFS/BR

Correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo primordial deste ensaio teórico é fomentar as discussões dos conceitos psicanalíticos nos ambientes formais de Aprendizagem Matemática nas salas do Ensino Básico, utilizando-se do mecanismo da transferência como conceito psicanalítico para compreender as origens dos problemas de Aprendizagem Matemática. A análise teórica repousou em Freud (1901, 1912, 1915), Nasio (1999), D'Ambrosio (1996), Fiorentini e Lorenzato (2009), Huete e Bravo (2006), Pain (1985) e Kupfer (1989). Os resultados alcançados reclamaram que o mecanismo da transferência resulta de situações mal resolvidas entre pais e filhos, que durante as aulas de Matemática são compreendidos como resistência à sua aprendizagem, ocasionando os problemas escolares.

Unitermos: Transferência de experiência (Psicologia). Transtornos de aprendizagem. Matemática.


SUMMARY

The primary purpose of this essay is to promote theoretical discussions of psycanalitics concepts in formal Mathematics learning environments in elementary classrooms, using the mechanism of transfer as psychoanalytic concept to understand the origins of Mathematical learning problems. Theoretical analysis rested on Freud (1901, 1912, 1915), Nasio (1999), D'Ambrosio (1996), Fiorentini and Lorenzato (2009), Huete and Bravo (2006), Pain (1985) and Kupfer (1989). The results achieved have complained that the mechanism of transfer results from unresolved situations between parents and children that, during lessons of Mathematics, are understood as resistance to their learning, causing problems at school.

Key words: Transfer (Psychology). Learning disorders. Mathematics.


 

 

INTRODUÇÃO

O cotidiano das salas de aula de Matemática do Ensino Básico sempre esteve sujeito a fatores que interferem direta ou indiretamente na Aprendizagem Matemática dos alunos.

Segundo Fonseca1, na maioria das vezes, os professores de Matemática não dispõem de um arsenal teórico-metodológico para minimizar os fatores que geram os problemas de Aprendizagem Matemática, dado o tímido investimento - no campo da Psicologia - feito nos currículos dos Cursos de Licenciatura em Matemática.

Neste sentido, um desses fatores está relacionado ao mecanismo da transferência, sendo este, a meu ver, um dos conceitos primordiais da Psicanálise.

Nos ambientes de Aprendizagem Matemática, é comum ouvir dos alunos queixas do tipo: "Não gosto do meu pai porque ele é muito rígido. Meu professor de Matemática se parece com o meu pai. Logo, não gosto do meu professor de Matemática porque ele é muito rígido". Diante dessas declarações, questionei-me: como é possível aprender Matemática com alguém que se alimenta de lembranças negativas a respeito de seus genitores?

Foi no seio dessa problemática que residiu minha motivação inicial para desenvolver essa investigação bibliográfica. Assim, para não perder o norte do trabalho, foquei meus esforços na seguinte questão: como os problemas de Aprendizagem Matemática poderiam ser analisados sob a ótica do mecanismo da transferência? Como conjectura preliminar, desconfio que os problemas de Aprendizagem Matemática estejam, em parte, relacionados às transferências que os alunos fazem dos seus pais com relação a seus professores.

Com efeito, neste ensaio, objetivo, inicialmente, fomentar a ampliação das discussões de conceitos psicanalíticos nos ambientes formais de Aprendizagem, em particular, nas salas de aula de Matemática do Ensino Básico.

Em segundo plano, discutir, a partir de Freud2,3 e Nasio4, o conceito psicanalítico do mecanismo da transferência e, em seguida, compreender como os problemas de Aprendizagem Matemática podem ser analisados sob as lentes desse mesmo conceito.

Para tanto, estarei dialogando com autores da área de Educação Matemática, tais como, D'Ambrosio5 (1996), Fiorentini e Lorenzato6, Huete e Bravo7, bem como teóricos dos campos da Psicopedagogia e da Psicologia Psicanalítica, como Pain8 e Kupfer9, respectivamente.

Desta forma, o presente trabalho foi dividido em três partes, com o intuito de proceder a uma análise sistemática da transferência, dos problemas de Aprendizagem Matemática e da relação entre esses dois temas.

O texto é concluído, fazendo considerações em torno da temática discutida, lançando mão de outras investigações psicanalíticas que poderão contribuir para minimizar o desconforto de alguns alunos em aprenderem Matemática e, por fim, posicionando-se em relação à hipótese anteriormente levantada.

 

O SIGNIFICADO E O SENTIDO DA TRANSFERÊNCIA EM FREUD

Entre os principais conceitos psicanalíticos, a transferência destaca-se por melhor compreender as relações entre poder e desejo9. Considerando esses dois termos como categorias inatas da personalidade humana, entendo que se movem ciclicamente, onde o desejo de algo ou por alguém estimula uma dose de poder que será desenvolvido e utilizado em prol do alcance dos objetivos.

Neste contexto, espero que, ao esclarecer o sentido e significado da palavra transferência para Freud2, construa-se o alicerce que sustentará a discussão da temática em tela.

Em suas obras completas, Freud2 esclareceu que a transferência é um fenômeno psicológico ocasionado não somente durante o tratamento psicanalítico, podendo acontecer tanto dentro como fora do consultório. Contudo, é analisada pelos psicanalistas apenas em seus consultórios.

Como este acontecimento ultrapassa as paredes dos consultórios psicanalíticos, desenvolverei, em princípio, inferências apresentadas neste trabalho, cujo objetivo é fomentar a ampliação das discussões de conceitos psicanalíticos nos ambientes formais de aprendizagem, em particular, nas salas de aula de Matemática do Ensino Básico.

Desta forma, é favorável anunciar que fazer uma transposição didática desse conceito freudiano para o ambiente da sala de aula de Matemática não se constituirá uma tarefa fácil, dado o reduzido número de publicações a esse respeito, bem como da leitura ainda embrionária no terreno da transferência.

Durante todo o tempo e de forma inconsciente, homens, mulheres e crianças avaliam os comportamentos de seus pares para poder tomar decisões em relação às atitudes exteriores. Como descendemos da mesma espécie, herdamos geneticamente padrões comportamentais que, sob a influência do meio, moldam-se de acordo com as realidades que os envolvem.

Reações a comportamentos manifestados, frutos de uma relação de poder, geralmente transportam o receptor da ação a situações já experienciadas. E, de modo inconsciente, emite-se outro comportamento que pode provocar uma fissura entre as relações interpessoais. Esta descrição pretende definir os limites da transferência que, para Nasio4, caracteriza-se "desde o apego mais apaixonado até a mais aberta hostilidade, o vínculo analista/paciente retira todas as suas particularidades das fantasias que alimentam as relações afetivas outrora vividas pelo analisando" (grifo do autor).

Freud2, antes de conceituá-la, descreve observações em seu entorno, quando afirma duas grandes lacunas de interesse dos psicanalistas:

"Em primeiro lugar, não compreendemos por que a transferência é tão mais intensa nos indivíduos neuróticos em análise que em outras pessoas desse tipo que não estão sendo analisadas. Em segundo lugar, permanece sendo um enigma a razão por que, na análise, a transferência surge como a resistência mais poderosa ao tratamento, enquanto que, fora dela, deve ser encarada como veículo de cura e condição de sucesso." (ibidem, p. 112, grifos do autor)

É oportuno frisar que as duas últimas linhas dessa citação ajudarão a conformação da hipótese central desse trabalho, pois defendo e acredito que a percepção da intensidade da transferência no meio escolar pode contribuir para minorar os problemas originados no seio das relações entre pais e filhos.

Freud2 explica que há relações entre o mecanismo da transferência e a resistência, primordialmente "quando o retomamos ao estado de prontidão da libido, que conservou imagos infantis" (ibidem, p. 116). Este excerto endossa ainda mais os comportamentos de alguns alunos quando "resistem" às orientações de seus professores.

Pelas vias do inconsciente, os jovens adolescentes sinalizam, por meio da transferência, desejos recalcados em relação aos seus pais, "pois é claro que se torna particularmente difícil de admitir qualquer impulso proscrito de desejo, se ele tem de ser revelado diante desse tipo dá origem a situações que, no mundo real, mal parecem possíveis"2. E, dessa forma, são veladas por explicações que, geralmente, corroboram com o naufrágio dos problemas de Aprendizagem Matemática.

Outra observação importante de Freud2 que ajuda na compreensão sistemática dos problemas de Aprendizagem Matemática é a classificação do mecanismo da transferência acerca da natureza do comportamento manifesto: podem ser positiva ou negativa.

Para Freud2, estão relacionadas, nesta ordem, a sentimentos afetuosos e os hostis. O primeiro tipo ainda é subdividido em "transferência de sentimentos amistosos ou afetuosos, que são admissíveis à consciência, e a transferência de prolongamento desses sentimentos no inconsciente".

Freud2 defende, ainda, que ambos os tipos citados remontam a fontes eróticas, estando associadas a impulsos sexuais reprimidos. Neste sentido, é favorável argumentar que todas as formas de transferência permeiam campos institucionais abertos. Sendo assim:

"Pode-se levantar ainda a questão de saber por que os fenômenos de resistência da transferência só aparecem na psicanálise e não em formas indiferentes de tratamento (em instituições, por exemplo). A resposta é que eles também se apresentam nestas outras situações, mas têm de ser identificados como tal. A manifestação de uma transferência negativa é, na realidade, acontecimento muito comum nas instituições. Assim que um paciente cai sob o domínio da transferência negativa, ele deixa a instituição em estado inalterado ou agravado"2.

Como já foi mencionado, a transferência negativa - foco latente do objeto deste texto - tem se apresentado no espaço particular de minha prática docente (ao longo de vinte anos) em maior dose que a positiva. Nisto residiu a motivação inicial deste trabalho.

Sobre esse tipo, Freud2, apesar de não ser minucioso por acreditar ser uma questão que merece um capítulo à parte, discorre sobre alguns elementos que contribuirão para o clareamento das minhas incertezas. Afirma que pode ser encontrada em sintonia da transferência afetuosa e que, geralmente, são dirigidas ao mesmo tempo para o mesmo indivíduo.

Segundo Freud2, foi criada uma terminologia para melhor caracterizar a propriedade de simultaneidade entre os dois tipos de transferência: a ambivalência - terminologia adotada por Bleuler. Freud2 explica que:

"Até certo ponto, uma ambivalência desse tipo parece ser normal; mas um alto grau dela é, certamente, peculiaridade especial de pessoas neuróticas. [...]. A ambivalência nas tendências emocionais dos neuróticos é a melhor explicação para sua habilidade em colocar as transferências a serviço da resistência. Onde a capacidade de transferência tornou-se essencialmente limitada a uma transferência negativa, como é o caso dos paranoicos, deixa de haver qualquer possibilidade de influência ou cura." (ibidem, p. 118, grifos meu)

Algumas vezes, esses sentimentos de amor e ódio apresentam-se sob características quase invisíveis para o professor de Matemática. Primeiramente, por ausência de uma formação em fundamentos psicanalíticos e, em segundo lugar, pela pouca importância que os professores dessa área atribuem ao campo da Psicologia. Funcionando como um envolto nebuloso, fica o professor refém dos comportamentos maquiavélicos (ainda que inconscientes) de seus alunos10.

Assim, Freud2 tratou no volume 12 de sua coleção sobre o processo dinâmico da transferência. Somente na XXVII conferência, proferida entre os anos de 1915 e 1917, apresentada no volume 16, discutiu mais profundamente a temática, buscando definir a referida nomenclatura. Mesmo assim, ainda o faz de forma indireta, partindo de exemplos ou estórias criadas por ele mesmo.

Interpretando Freud3, sobre transferência é possível concluir que se trata de uma triangulação envolvendo o paciente (no caso escolar, o aluno), o analista (no caso escolar, o professor) e a mãe/pai, onde sentimentos conflituosos ou não, vividos na infância do paciente (aluno) com um dos seus pais são revividos inconscientemente pelo paciente (aluno) substituindo seus pais pelo analista (professor).

Um dos episódios de minha trajetória professoral traduz o mecanismo da transferência:

"Certa vez fui tratado com arrogância por um aluno da 1ª série do Ensino Médio. Como professor, prezo pela disciplina que, por sua vez, incomoda àqueles que não a possuem e acabam assemelhando-se a alguns modelos de educação doméstica. O caso alongou-se, indo parar no setor pedagógico. Tivemos - eu e a instituição - de convidar os pais do referido aluno para uma sessão de esclarecimentos. Quando os pais começaram a descrever o cotidiano familiar, percebi o quanto primava pela disciplina do filho, quando dizia: 'lá em casa tem hora pra tudo, mas José é muito arredio... não sei a quem puxou! '".

Mergulhando nesse exemplo e alicerçando-me na teoria de Freud3, verifiquei que o sentido da transferência representa também uma forma de comunicação. Ainda que incompreendido pelos sujeitos atingidos, esse formato de linguagem pretende anunciar que: existem questões não resolvidas ou superadas no desenvolvimento da sexualidade do paciente (aluno); como não tem a consciência dessas questões, utiliza-se de seu inconsciente para sinalizá-las; pede ajuda a pessoas que não falam em seu idioma manifesto.

É sabido que mães e pais não fazem cursos para criar seus filhos. Então o fazem baseando-se nos valores em que acreditam. Dependendo do nível de educação e bom senso, bem como do poder aquisitivo, recorrem a outros profissionais para que a educação de seus filhos seja complementada. Isso auxilia a canalização de questões edipianas muitas vezes não sublimadas durante o desenvolvimento psicológico, que, por razão contrária, transformam-se em problemas, cujas origens são camufladas e difíceis de acessar fora de um consultório psicanalítico.

 

OS PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM MATEMÁTICA

Segundo D'Ambrosio5, ensinar e aprender Matemática tem se constituído ainda em uma tarefa difícil, pois não se têm respeitados os princípios epistemológicos e didáticos que norteiam o processo dessa atividade.

Em se tratando da Aprendizagem Matemática, Huete e Bravo7 discriminam, sem exauri-los, 44 princípios dessa aprendizagem, resultado de um misto de teorias. Dentre elas, os mesmos autores destacam, principalmente: "Paradigma Condutual, Teoria de Burton, Teoria de Heredia Ancona, Teoria de Piaget, Teoria de Ausubel"7.

Alguns desses princípios chamaram a minha atenção quando se objetiva compreender os problemas de Aprendizagem Matemática. Elencá-los-ei, segundo ordenamento de Huete e Bravo7:

• o processo de aprendizagem consiste em experimentar a ação que há de ser aprendida, mas simultaneamente ocorrem muitas e variadas atividades e muitos resultados de aprendizagem;

• o processo de aprendizagem ocorre mediante uma ampla variedade de experiências e materiais de estudo;

• se as condições da aprendizagem são ótimas e a disposição do aluno para percebê-la é positiva, o que se aprende integra-se de forma adaptável conforme as necessidades. A transferência da aprendizagem se realizará eficazmente quando o aluno descobrir relações entre tarefas distintas;

• a formação de conceitos matemáticos irá precedida de experiências lúdicas, estruturadas e práticas que sirvam de introdução para eles;

• a aprendizagem significativa pressupõe a assimilação eficaz do novo conteúdo;

• a interação aluno-professor e aluno-aluno é essencial para que ocorra a construção de aprendizagens significativas e a aquisição de conteúdos de claro componente cultural e social. (grifo meu).

De acordo com a minha experiência docente e com os resultados de pesquisas de D'Ambrosio5, Fiorentini e Lorenzato6, Fonseca1,11-13 e Maia14, por exemplo, o fracasso escolar em Matemática decorre da refutação desses princípios de aprendizagem. Esquivando-se de uma leitura psicanalítica, é dessa forma que geralmente são analisados os problemas de aprendizagem pelas equipes pedagógicas, professores de Matemática interessados na aprendizagem de seus alunos ou por especialistas (pesquisadores) no Ensino de Matemática.

Mas, para que se possa compreender o âmbito dos problemas de Aprendizagem Matemática, faz-se necessário, a meu ver, compreender o significado dos problemas de aprendizagem a partir do viés psicanalítico. A pesquisadora argentina Paín8 considera:

"o problema de aprendizagem como um sintoma, no sentido de que o não aprender não configura um quadro permanente, mas ingressa numa constelação peculiar de comportamentos, nos quais se destaca como sinal de descompensação. [e que] Da manipulação casuística da sintomatologia inerente ao déficit de aprendizagem, concluímos que nenhum fator é determinante de seu surgimento, e que ele surge da fatura contemporânea de uma série de concomitantes." (grifo meu)

A despeito desses concomitantes, Paín8 considera como fundamentais os seguintes fatores: orgânicos, específicos, psicógenos e ambientais.

Acerca dos fatores orgânicos, Paín8 ratifica que toda aprendizagem embasa-se nos esquemas de ação e, por isso, a integridade anatômica assegurada pelo sistema nervoso central é considerada vital para um desenvolvimento sadio do processo de aprender. Neste sentido, a situação geral da saúde dos aprendentes deve ser analisada. Sintomas como hipoacúsia, miopia, apraxias, afasias e certas dislexias podem resultar de algum tipo de fragilidade no sistema nervoso central e serem verificadas tardiamente.

Outro aspecto que a autora destaca é o funcionamento glandular que, em desequilíbrio, origina hipomnésia, falta de concentração e sonolência. Paín8 é incisiva quanto às questões alimentares, "pois o déficit alimentar crônico produz uma distrofia generalizada que abrange sensivelmente a capacidade de aprender" (ibidem, 1995, p. 29). Por último, salienta que as condições de abrigo e conforto para o sono são elementos importantes que favorecem os fatores orgânicos da aprendizagem.

No caso dos fatores específicos, Paín8 esclarece, em linhas gerais, que estão relacionados "frequentemente a uma indeterminação da lateralidade do sujeito".

Quanto aos fatores ambientais, a autora em tela defende que não importa apenas as condições ambientais, mas, principalmente, ao meio ambiente material do sujeito, bem como as ideologias e valores vigentes no grupo em que o aprendente se encontra.

Propositadamente, os fatores psicógenos foram deixados por último, por permitir uma discussão mais ampliada sobre a temática abordada neste ensaio.

Paín8 explica que o problema da aprendizagem pode surgir como uma reação neurótica à interdição da satisfação, seja pelo afastamento da realidade e pela excessiva satisfação na fantasia, seja pela fixação com a parada de crescimento na criança e, por isso, classifica-o como resultado dos fatores psicógenos.

Estes, por sua vez, estão relacionados com a dimensão que considera a aprendizagem como função de "eu" e que pode explicar a diminuição das funções implícitas no aprender ou a transformação dessas funções, gerando inibições na aprendizagem ou sintomas de dificuldades*, respectivamente.

A não-aprendizagem como sintoma supõe uma repressão de algo relacionado ao significado da operação de aprender, sendo, portanto, um fenômeno inconsciente. A inibição, por sua vez, traduz uma retração intelectual do ego, provocando diminuição das funções cognitivas e que acabam por acarretar problemas para aprender. Apoiando-se em Freud, Paín8 afirma que:

"tal retração acontece em três diferentes oportunidades: a primeira, quando há sexualização dos órgãos comprometidos na ação, por exemplo, a inabilidade manual associada à masturbação; a segunda, quando há evitação do êxito, ou compulsão ao fracasso diante do êxito, como castigo à ambição de ser; e a terceira, quando o ego ("eu") está absorvido em outra tarefa psíquica que compromete toda a energia disponível, como pode ser o caso da elaboração de um luto." (ibidem, 1995, p. 31, tradução minha).

Defende Paín8 que a inibição origina-se também como uma especificidade do fenômeno neurótico, apresentando este duas reações opostas: "uma responde ao impulso de repetição a situação traumática e a outra à necessidade de evitação do lugar indicado pela cicatriz" (ibidem, 1995, p. 31). Estas reações, segundo a autora, estão relacionadas a três mecanismos de defesa: a negação, a denegação e a identificação projetiva, que, em linhas gerais, buscam livrassem de algum sentimento de angústia.

 

A TRANSFERÊNCIA COMO SINTOMA DOS PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM MATEMÁTICA

Discutidos os conceitos relacionados à transferência e aprendizagem, buscarei compreender as possíveis relações entre esses, a fim de validar ou refutar a hipótese central.

Kupfer9 informa que o mecanismo da transferência foi analisado por Freud a partir da interpretação dos sonhos e, mais tarde, percebeu que a figura do analista funcionava como resto diurno. Por ser a relação paciente-analista uma relação humana, Freud acreditou que a transferência também seria encontrada na relação professor-aluno9.

Desta forma, torna-se o professor um objeto de transferência em que, segundo Kupfer9, "o que se transfere são as experiências vividas primitivamente com os pais". Então, o que se transfere é o sentido de algo ou alguma 'coisa' que está sendo deslocado de uma situação particular, muitas vezes reprimido ou desejado.

Kupfer9, parafraseando Miller, afirma que "na relação professor-aluno, a transferência se produz quando o desejo de saber do aluno se aferra a um elemento particular, que é a pessoa do professor". Esse desejo, traduzido inconscientemente, por meio das ações de transferência, busca aferrar-se a formas, particularmente, os restos diurnos, o analista e o professor, esvaziando-as e colocando nelas o sentido que interessa ao sujeito da ação.

Analisando as contribuições de Kupfer9, verifiquei o quão intensa se faz presente a hipótese central deste ensaio: os problemas de Aprendizagem Matemática estão, em parte, relacionados às transferências que os alunos fazem dos seus pais em relação aos seus professores.

Com efeito, apoiando-me no decurso teórico deste trabalho e inferindo a esse respeito, acredito que a gênese dos referidos problemas encontra-se no desejo dos alunos em 'dizer' algo - mas por não saberem como - esbarra na 'incapacidade' do professor de decodificar as ações dos mesmos.

No que se refere aos desejos dos alunos, acredito que as discussões teóricas anteriores já respondem, ao menos, preliminarmente. Mas, quanto ao professor, acredito, pautando-me no percurso da minha própria formação superior e no meu itinerário de pesquisa, que os cursos de Licenciatura em Matemática ainda não despertaram para o viés psicanalítico, ficando o professor desprovido de ferramentas para minimizar ou, ao menos, buscar meios adequados às situações embaraçosas vítimas dos mecanismos da transferência.

Corroborando essa premissa, Kupfer9 defende que:

"Ocupar o lugar designado ao professor pela transferência: eis uma tarefa que não deixa de ser incômoda, visto que ali seu sentido enquanto pessoa é "esvaziado" para dar lugar a um outro que ele desconhece."

Em paralelo a esse raciocínio, Kupfer9 faz uma associação entre desejo e poder, ratificando que, segundo a História, "a tentação de abusar do poder é muito grande". (ibidem, 1989, p. 93)

Abrindo rapidamente uma "fresta" acerca da aprendizagem na perspectiva freudiana, entendo que esta decorre do desejo de aprender que, por sua vez, está relacionado ao desejo de independência ou afirmação do ego. Assim sendo, Kupfer9 assinala uma preocupação quanto ao silenciamento do desejo do aluno a partir do poder exercido pelo professor. Segundo a autora, o abuso de poder ocorre quando o professor subjulga seu aluno ao "impor-lhe seus próprios valores e ideias. Em outras palavras, impor seu próprio desejo, fazendo-o sobrepor-se àquele que movia seu aluno a colocá-lo em destaque"9.

A meu ver, dessa forma cessa-se o poder desejante do aluno, tendo ele dificuldade para aprender conteúdos matemáticos, memorizar informações, desenvolver habilidades e competências almejadas pelas orientações do cenário da Educação, conseguindo apenas uma diplomação, mas não se configurando como sujeito pensante.

Inspirado ainda em Freud16 poder-se-ia questionar: caberia ao mestre anular seu próprio desejo se é este que o impulsiona para a função de mestre? Neste momento, valendo-me de um dito popular - "não quero para o outro o que não quero para mim" -, pois creio que representa uma adequada oportunidade para o professor repensar suas práticas pedagógicas, admitindo, inicialmente, que possibilitar a aprendizagem de seus alunos será uma tarefa difícil.

Mas, no caso de buscar alternativas metodológicas** para provocar nos alunos o desejo por novas aprendizagens, especialmente as relacionadas aos conteúdos escolares, poderá contribuir para minimizar os inevitáveis mecanismos da transferência que, na maioria das vezes, reeditam situações tipicamente relacionadas ao complexo de Édipo, tanto no caso masculino como no feminino.

Sobretudo, pinço de Kupfer9 duas proposições decorrentes do discurso psicanalítico:

"Ao professor, guiado por seu desejo, cabe o esforço imenso de organizar, articular, tornar lógico seu campo de conhecimento e transmiti-lo a seus alunos. A cada aluno cabe desarticular, retalhar, ingerir e digerir aqueles elementos transmitidos pelo professor, que se engancham em seu desejo, que fazem sentido para ele, que pela via de transmissão única aberta entre ele e o professor - a via da transferência - encontram eco nas profundezes de sua existência de sujeito do inconsciente". (ibidem, 1989, p. 99)

Caso um professor permita essa compreensão psicanalítica, denominada por Kupfer9 de "canibalização", que acontece no seio dele mesmo e de suas próprias aprendizagens - fruto de seu conjunto de crenças e valores resultados de seus desejos - "estará contribuindo para uma relação de aprendizagem autêntica".

Verifica-se, desta forma, o quão se torna complicado o jogo no campo educacional entre atores protagonistas e coadjuvantes, pois somente o desejo do professor justifica o fato dele estar ali; e, estando ali precisa renunciar a este desejo. Eis o fato em que Freud16 (1901) se fundamenta para afirmar que, apenas como uma fantasia, a Educação é possível. Caso contrário, configura-se como um ato de violência simbólica.

 

CONCLUSÃO

Seja ao longo da História, seja na contemporaneidade, as relações interpessoais constituem-se alvos sedutores para os interessados nas pesquisas do comportamento humano. Ao que tudo indica, esse ensaio abordou o mecanismo da transferência como um dos vieses de um dos milhares de subconjuntos de pessoas: a tríade pais-alunos-professores.

O diálogo entre Freud2,3 e Nasio4 acentuou a conceptualização da transferência como um mecanismo de resistência psicológica que, no caso particular dos alunos das salas de aula de Matemática do Ensino Básico, utilizam-na para "denunciar", inconscientemente, as fragilidades que permeiam o relacionamento com os seus pais, muitas vezes compreendida pela maioria dos professores de Matemática como rebeldia ou indisciplina.

D'Ambrosio5, Fiorentini e Lorenzato6, Huete e Bravo7 e Pain8 ajudaram a alicerçar-me no terreno delicado dos problemas de Aprendizagem Matemática, em que princípios e fatores indispensáveis e diretamente correlacionados à mesma não são valorizados nem por aqueles que ensinam, nem pelos pais e nem pelos próprios sujeitos envolvidos. Dessa forma, geram consequências difíceis de serem removidas no tempo desejado.

E, finalmente, as contribuições de Kupfer9, associadas às anteriores, favoreceram a validação da hipótese inicial: "os problemas de Aprendizagem Matemática estão, em parte, relacionados às transferências que os alunos fazem dos seus pais em relação aos seus professores", pois, segundo a autora, é inevitável que esse mecanismo aconteça em decorrência da resistência natural do homem em abandonar seus próprios desejos em favor de outrem. Assim, friso que, do ponto de vista da Psicanálise, é nesse meio que reside a origem dos problemas de Aprendizagem Matemática.

Com efeito, faz-se necessário aos responsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem compreender a importância do viés psicanalítico, pois, além de auxiliar na compreensão dos casos de seu cotidiano professoral, permitirá a flexibilização nos estilos de ensino que deverão seduzir os alunos para que estes tolerem, momentaneamente, a submissão dos seus desejos.

A partir dessa experiência primeira, onde o mecanismo da transferência é lançado como pano de fundo para compreender os problemas de Aprendizagem Matemática, é minha intenção fazer outros movimentos pinçados da Psicanálise, temáticas como a castração, foraclusão, narcisismo, falo, supereu, identificação e sublimação, por exemplo, e relacioná-las com a Aprendizagem Matemática, cujo propósito é dar ao professor de Matemática ou ao leitor interessado mais alternativas para a compreensão parcial do seu campo profissional.

Por último, acrescento que a percepção de um desequilíbrio no comportamento dos alunos durante as aulas de Matemática que, em particular, pode ser sinônimo dos "Problemas de Aprendizagem Matemática", representa um sintoma equivalente à febre orgânica que, quando medida, traduz-se para o médico em que estado encontra-se a situação interna do corpo humano. Por isso, o professor deve permitir-se ao aprofundamento no estudo do comportamento humano, pois poderia dispor de termômetros que facilitariam encaminhar as providências mais indicadas e, com isso, minimizaria problemas de relacionamento interpessoal com os seus alunos.

Caso usassem lentes de alta resolução, perceberiam que o mecanismo da transferência funciona como o processo febril e que enquanto não for resolvido o problema com o pai ou a mãe, alguns alunos podem desenvolver entraves para aprender Matemática.

Sobretudo, deixo como provocação os seguintes questionamentos: num mundo em que a diversidade é fator primordial para o crescimento humano, estariam os problemas de Aprendizagem Matemática isentos de outros tipos de interpretação teórica? Qual o problema em considerá-los?

 

REFERÊNCIAS

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3. Freud S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição brasileira. Tradução sob a direção de Salomão J. vol. XVI. Rio de Janeiro:Imago;1996.         [ Links ]

4. Nasio J-D. O prazer de ler Freud. Tradução de Magalhães L. Rio de Janeiro:Jorge Zahar;1999.         [ Links ]

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13. Fonseca LS. Aprendizagem em trigonometria: obstáculos, sentidos e mobilizações. São Cristóvão:Universidade Federal de Sergipe; 2011.         [ Links ]

14. Maia D. Função quadrática: um estudo didático de uma abordagem computacional [Dissertação de Mestrado]. São Paulo:Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;2007.         [ Links ]

15. Strick CSL. Dificuldades de aprendizagem de A a Z: um guia completo para pais e educadores. Tradução de Batista D. Porto Alegre: Artmed;2001.         [ Links ]

16. Freud S. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição brasileira. Tradução sob a direção de Salomão J. vol. VII. Rio de Janeiro:Imago;1996.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Laerte Fonseca
Instituto Federal de Sergipe
Av. Gentil Tavares da Mota, 1166
Aracaju, SE, Brasil - CEP 49055-260
E-mail: laerte.fonseca@uol.com.br

Artigo recebido: 12/9/2011
Aprovado: 28/10/2011

 

 

Trabalho realizado no Instituto Federal de Sergipe, Aracaju, SE, Brasil.
* Na perspectiva de Strick15, "o termo dificuldades de aprendizagem refere-se não a um único distúrbio, mas a uma ampla gama de problemas que podem afetar qualquer área do desempenho acadêmico". (grifos da autora)
** Ainda assim, é bom esclarecer que, o educador, segundo Kupfer9, "aprende que pode organizar seu saber, mas não tem controle sobre os efeitos que produz sobre seus alunos [...] pode-se dizer, por isso, que a Psicanálise pode transmitir ao educador [...] uma ética, um modo de ver e de entender sua prática educativa".

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