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Revista Psicopedagogia
Print version ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.36 no.111 São Paulo Sept./Dec. 2019
ARTIGO ESPECIAL
A família, a criança e uma visão psicopedagógica sistêmica
Family, child and the sistemic psycopedagogical view
Maria Cecília Castro Gasparian
Pedagoga, Psicóloga, Psicopedagoga, Mestre e Doutora em Educação pela PUCSP. Presidente da ABPp Associação Brasileira de Psicopedagogia gestão 2001-2003. Professora do Curso de Especialização em Psicopedagogia do Centro Universitário São Camilo e da PUCSP, São Paulo, SP, Brasil
RESUMO
Este artigo aborda a questão da família e suas implicações nos processos de aprendizagem de todos os seus membros. Através de uma visão histórica é mostrado como a família se organizou ao longo do tempo até a contemporaneidade. Pontua a função e o papel de cada elemento na organização familiar e a sua importância na formação e desenvolvimento da criança e do adolescente, assim como sugere mais uma opção para o olhar e para a escuta do psicopedagogo ao elemento com dificuldades de aprendizagem e suas relações familiares.
Unitermos: Família. Organização. Aprendizagem.
SUMMARY
This article addresses the topic and issues of the family and its implications throughout its member's learning processes. Within a historical vision it is shown how families have been organized historically up to contemporary times. It shows the functional role of each element in the family organization and its importance in the development and formation of children and teenagers as suggests one more option for the observation and listening of the psychopedagogue to the elements with learning difficulties and their family relationships.
Keywords: Family. Organization. Learning.
INTRODUÇÃO
Os pais inconscientemente deixam a seu filho a carga de refazer sua história, mas refazê-la de tal maneira que nada deveria mudar, apesar de tudo. O paradoxo em que a criança está presa produz logo efeitos violentos; com efeito, raramente há oportunidade de que a criança se realize em seu próprio nome. (Maud Mannoni apud Fernández)1
Começo este artigo sobre a Família com o olhar voltado para as dificuldades de aprendizagem, com as palavras de Mannoni, pois elas representam muito bem como as famílias, na maioria das vezes, se organizam. Algumas crianças transitam muito bem com essas demandas, outras nem tanto. E talvez sejam essas as crianças que poderão apresentar algum tipo de sintoma que muitas vezes aparece nas diversas modalidades de aprendizagem escolar. Sabemos que sintomas são uma espécie de denúncia, e é para essa questão que nosso olhar deve estar focado, porém, a família como grupo, exerce uma grande influência sobre todos os seus membros.
Como profissional que há mais de 30 anos trabalha com o sofrimento humano para aprender e por aprender nos vários níveis de entendimento sobre a aprendizagem (seja escolar, ou qualquer outro tipo de aprendizagem ao longo da vida), tenho uma visão sistêmica sobre o fenômeno familiar, que basicamente é visto como um conjunto de relações que interagem entre si influenciando uns aos outros. A família não é apenas um conjunto de objetos introjetados, mas é uma matriz onde emergem dramas, tramas, traumas, segredos e mentiras, crenças e valores, sem contar com as exclusões conscientes e inconscientes que influenciam todas as pessoas envolvidas e que muitas vezes implicam questões geracionais que seus membros carregam por anos e muitas vezes perdendo o seu significado original. Todos esses fatores podem influenciar na aprendizagem da criança, dificultando o seu desenvolvimento normal.
Minha intenção com este artigo é também mostrar a importância da afetividade que circula dentro família e incluí-la numa avaliação mais cuidadosa sobre a família e as inúmeras implicações afetivas, observando como mais um dos elementos fundamentais das dificuldades de aprendizagem tanto das crianças e adolescentes quanto da própria família envolvida nesta dificuldade.
Penso que a família também tem uma modalidade de aprendizagem, tem uma forma específica de ver e apreender o mundo, de se relacionar com as pessoas, tem suas crenças e seus valores personalizados, entre outros fatores. É por isso que é importante a necessidade de um estudo mais aprofundado sobre esta instituição, para que o psicopedagogo tenha mais um instrumento para avaliar e auxiliar a criança ou adolescente a aprender e a encontrar o prazer e a alegria da descoberta e da aprendizagem.
Cabe lembrar que este artigo não tem a pretensão de esgotar o assunto, mesmo porque ele é complexo e diversificado, mas que serve apenas como lembrete sobre a família: ela é muito mais do que uma avaliação simplista. Vai além de apenas se responder a um questionário que muitas vezes o próprio psicopedagogo pode interpretar de forma distorcida devido à falta de um material mais adequado e de uma observação mais apurada sobre esta família. Temos que deixar de lado o "achismo" e o preconceito que muitas vezes temos inconscientemente, e, como profissionais, pesquisar e garimpar as "pérolas e os diamantes" escondidos em sentimentos como a vergonha, o medo, a carência, o abandono, a raiva, a mágoa e a revolta, acobertados pelo não saber individual e coletivo da família.
Mas o meu foco neste momento não é a formação de psicopedagogos com relação à família. Deixo apenas algumas perguntas para reflexão para quem se interessar pelo tema, por exemplo: de qual família estou falando quando penso e falo sobre ela? Da minha ou da família do meu cliente? Quais são minhas crenças com relação à família? Quais são os valores em que eu acredito? Será que não quero "padronizar" a família do meu cliente nas minhas próprias crenças e valores, ou dentro de crenças e valores de uma sociedade?
Dentro de uma vasta literatura sobre a família, notamos que este é um conceito que aparece e desaparece das teorias sociais e humanas de acordo com o momento histórico. Ora ela é enaltecida, ora é severamente criticada. Muitas vezes, é acusada como o início de todos os males da humanidade, especialmente apontada como repressora (e muitas vezes negligente ou permissiva demais com relação à sua prole) ou exaltada como provedora e promotora da proteção do corpo e da alma de todos os membros desta família.
No nosso trabalho, para compreendermos a família, precisamos ir além do exame de um dos seus elementos sozinho, ou apenas como produto da sociedade. É muito comum o encaminhamento da pessoa que está apresentando algum tipo de dificuldade e ignorar-se o restante da família, como se o indivíduo que está apresentando o sintoma vivesse isoladamente do resto da família e da comunidade de uma forma geral. Precisamos analisar todo o sistema familiar, social e escolar (em que chamo de sistema ecológico cada um destes agrupamentos) no qual ela está inserida para compreendermos não só este conjunto de pessoas, mas principalmente o elemento sintomático com sua função e papel dentro desta família, da escola e da comunidade.
Uma faceta do pensamento atual direciona o olhar sobre os efeitos ambientais no indivíduo. Até bem pouco tempo, a maioria das pesquisas sobre a família com crianças e/ou adolescentes com dificuldades de aprendizagem focava com frequência apenas a mãe, às vezes os companheiros de brincadeiras e alguma estimulação com brinquedos, os pais e suas famílias extensas eram ignorados e até desprezados. E se observávamos o contexto familiar mais amplo, era normalmente em termos de status socioeconômico da família, em que os avós, tios, primos eram ignorados. Não descarto, em absoluto, este enforque da relação da mãe com seu filho, principalmente as contribuições de Winnicott e de todos os teóricos que falam sobre esse tema mãe-bebê, apenas amplio o olhar para além da relação mãe-bebê (que diga-se de passagem é importantíssima), para compreendermos de uma maneira mais ampla a função do não aprender desta criança. Advirto que isso é apenas um dos lados da nossa observação e não devemos descartar nenhuma das possibilidades teóricas e de observação de um fenômeno.
WALLON E VYGOTSKY: A AFETIVIDADE E A CULTURA COMO FORMA DE ORGANIZAÇÃO DA FAMÍLIA
As contribuições de Vygotsky2 e de Wallon3 são de grande importância, assim como Piaget e outros. Porém, selecionei apenas esses dois primeiros pesquisadores porque eles falam sobre a afetividade e a cultura tão estudadas em nosso meio e como as suas contribuições são muito elucidativas quando tratamos as questões familiares e sociais. Por que estou colocando esses dois autores neste texto? Primeiro porque Wallon3 estudou a afetividade e ela tem tudo a ver com a nossas relações interfamiliares, e Vygotsky2 porque aborda as questões culturais e a linguagem e com isso a qualidade das nossas comunicações dentro da família e com o mundo. Na realidade não vou me deter em explicá-los, mesmo porque pressuponho que a maioria dos psicopedagogos já os tenham estudados, assim como Piaget e outros teóricos. Minha proposta é apenas fazer uma ponte sobre nossos conhecimentos, a Psicopedagogia e a família.
Ou seja, como poderemos nos utilizar dos conhecimentos já adquiridos sobre o desenvolvimento humano, linguagem e afetividade quando nos deparamos com as famílias. Existem várias perguntas a serem feitas como por exemplo: qual é a função desta criança em aprender e do não aprender nesta família? Qual o papel que ela desempenha dentro da família? Essas são perguntas muito familiares entre nós, mas o que fazemos com elas? Quais são as respostas que obtemos? E o que é fundamental: como poderemos trabalhar com o que a criança revela?
Todos nós, psicopedagogos sabemos que Vygotsky procurou construir uma nova abordagem teórica, pautada numa teoria cognitiva/cultural na qual ele realça a importância da linguagem, que é a principal invenção da cultura, e como os aspectos históricos e culturais são apropriados pelos indivíduos nos processos de aprendizagem. Isso já é uma boa "dica" para começarmos a observar a família do nosso paciente. Como é a comunicação entre eles?
Deste modo, diversos conceitos são amplamente estudados na nossa formação, e contribuem para o entendimento e aplicação na prática. Vale destacar que para Vygotsky2 o desenvolvimento do indivíduo é um processo construído nas e pelas interações que o indivíduo estabelece no contexto histórico e cultural em que está inserido. Ou seja, neste artigo, refere-se à família. A construção do conhecimento ocorre a partir de um intenso processo de interação social, e, portanto, é a partir da inserção na cultura familiar que a criança vai se desenvolvendo, uma vez que as interações sociais são responsáveis pela aquisição do conhecimento construído ao longo da história. E é a partir das relações sociais, da inclusão da criança na cultura, que ela vai se apropriando de novas aprendizagens e assim se desenvolvendo. É fundamental que o psicopedagogo consiga relacionar alguns conceitos vygotskyanos com a prática psicopedagógica, e com a sua contribuição que poderemos observar com mais profundidade as relações que são estabelecidas entre as pessoas de um modo geral e entre os familiares em particular.
A escolha de Wallon3 para iluminar a questão da relação familiar é a afetividade e suas implicações educacionais. Isso decorre de várias razões: a noção de pessoa apresentada por Wallon, por exemplo, aponta para uma síntese dos conjuntos funcionais (afetivo, motor e cognitivo) e para integração dinâmica entre o orgânico e o social. Sua posição teórica era contrária à compreensão do humano de forma fragmentada e é como a abordagem sistêmica também vê as pessoas e como elas estabelecem seus relacionamentos.
Sua concepção psicogenética dialética do desenvolvimento apresenta uma grande contribuição para a compreensão do desenvolvimento humano como pessoa integral, ajudando na superação da clássica divisão mente/corpo presente na cultura ocidental e dos seus múltiplos desdobramentos; engloba em um movimento dialético, a afetividade, a cognição e os níveis biológicos e socioculturais. Também traz contribuições para o processo ensino-aprendizagem. Dessa forma, a teoria walloniana traz grandes contribuições para o entendimento das relações entre os membros de uma mesma família e da família e escola, além de situá-las como um meio fundamental no desenvolvimento desses sujeitos. Essa já é uma outra dica.
De uma maneira bem simples, podemos definir a afetividade como o domínio funcional, que apresenta diferentes manifestações, que irão se tornando cada vez mais complexas ao longo do desenvolvimento das pessoas, e que emergem de uma base eminentemente orgânica até alcançarem relações dinâmicas com a cognição, como pode ser visto nos sentimentos.
A FAMÍLIA, PERCURSO HISTÓRICO E SOCIAL
Sabemos também que a afetividade é um meio de penetrar no que há de mais singular na vida das pessoas, pois ela constitui um universo de configuração subjetiva das relações sociais que se inicia no seio da família. Por isso, é um fenômeno privado e que tem suas ressonâncias e consequências no universo social, constituindo-se em uma ponte onde transitam o social e o psicológico, a mente e o corpo e, principalmente, a razão e a emoção. Muitos autores concordam que não devemos negar ou desprezar a afetividade, pois seria negar ou desprezar o próprio homem, sua humanidade e com isso a própria vida. Porém, não foi sempre assim. Quem se debruçar para examinar a vida cotidiana das pessoas e sobre a história ao longo dos séculos até o século XVI verá que não existia essa intimidade e afetividade familiar como a vemos hoje. Segundo Ariès4, a vida no passado, até o século XVII, era vivida em público, não existia privacidade entre o casal e toda intimidade era exposta. As pessoas viviam misturadas umas às outras, senhores e criados, crianças e adultos, em casas permanentemente abertas às indiscrições dos visitantes. A família não existia como sentimento ou como valor.
A família moderna não possui mais a mesma realidade dos séculos passados, ela se estendeu à medida que a sociabilidade se retraiu. A partir do século XVIII, as pessoas começaram a se defender contra uma sociedade cujo convívio constante até então havia sido a fonte da educação, da reputação e da fortuna, e daí em diante começou uma mudança nas relações entre as pessoas, seja entre patrão e criado, amigos e clientes, etc.
Esse movimento se expandiu onde reforçava a intimidade da vida privada com relação à antiga relação de vizinhança, de amizades. A casa perdeu o caráter de lugar público em favor do clube ou do café. A vida profissional e a vida familiar abafaram as atividades que antes pertenciam à atividade das relações sociais. Portanto, o sentimento da família e a sociabilidade já não eram mais compatíveis4.
O cuidado dispensado à criança passou a inspirar sentimentos novos, uma nova afetividade surgia. Os pais não mais se contentavam em colocar os filhos no mundo e a moral desta época lhes impunha proporcionar a todos os filhos, e não apenas ao mais velho, uma educação que agora era dividida com a escola e até o final do século XVII as meninas recebiam uma preparação para a vida através da escola.
A aprendizagem tradicional foi substituída pela escola transformada, instrumento da disciplina severa e protegida pela justiça e pela política. O extraordinário desenvolvimento da escola no século XVII foi uma consequência dessa preocupação com as crianças. A família e a escola retiraram, juntas, a criança da sociedade dos adultos. A escola confinou a infância outrora livre num regime disciplinar cada vez mais rigoroso, o que resultaria no enclausuramento total do internato. Nesse momento em que a família começava a se organizar em torno da criança, ela mesma erguia um muro entre a sociedade e a vida privada4.
Assim, a família moderna retirou da vida comum não apenas as crianças, mas também uma grande parte do tempo e da preocupação dos adultos. Ela respondeu a uma necessidade de intimidade, e também de identidade: os membros da família se unem pelo sentimento, o costume e o gênero de vida4.
Entretanto, nos últimos anos, com os estudos sobre a Ciência, o desenvolvimento humano, a Neurociência, a Neuropsicologia, notamos um forte impulso para ampliarmos nosso olhar para a pessoa que sofre para aprender e por aprender. Essa nova perspectiva utiliza a expressão "ecologia do desenvolvimento e contexto" para descrever os comportamentos observados dentro do ambiente sociocultural onde a família vive.
Essa abordagem5-7 (abordagem sistêmica) pontua que cada criança cresce num ambiente social complexo (uma ecologia social) com um distinto elenco de personagens: irmãos, irmãs, um dos pais ou ambos, avós, primos, tios, empregados, bichos de estimação, professores, amigos, etc. Esses personagens também estão inseridos num sistema social mais amplo: os pais têm empregos dos quais podem gostar ou não, podem ter amigos íntimos e acolhedores ou podem ser muito isolados; podem viver numa vizinhança segura ou cheia de perigos; a escola local pode ser excelente ou ruim; e os pais podem ter bons ou maus relacionamentos com a escola.
Ela também prioriza a compreensão das maneiras pelas quais todos os componentes desse complexo sistema interagem mutuamente.
Dentro do microssistema familiar6-8, várias dimensões do comportamento dos pais em relação aos filhos parecem ser particularmente significativas, incluindo o tom emocional da família, método de manter o controle e os padrões de comunicação.
As famílias que proporcionam altos níveis de carinho e afeição, comparadas àquelas que são mais frias ou rejeitadoras, têm filhos mais seguros e melhores relacionamentos com os companheiros.
As famílias com regras e padrões claros, e nível relativamente elevado de expectativas ou exigências de maturidade e que insistem consistentemente nessas regras e expectativas, têm filhos que relevam maior autoestima e competência em uma grande variedade de situações.
Às crianças as quais se fala frequentemente, com frases complexas, e que também são ouvidas, não apenas desenvolvem mais rapidamente a linguagem como também têm relacionamentos mais positivos e menos conflitados com os pais.
Esses elementos do comportamento parental ocorrem em combinação ou estilos de educação dos filhos. Os teóricos sugerem quatro tipos desses estilos: competente, autoritário, permissivo e negligente6.
O estilo competente inclui muito cuidado, controle, comunicação e exigências de maturidade; o autoritário inclui muito controle e exigência de maturidade e pouco carinho e pouca comunicação; o estilo permissivo inclui muito carinho e pouca comunicação, controle e exigência de maturidade; o estilo negligente apresenta níveis muito baixos dessas quatro dimensões. Em qual dessas categorias nós nos identificamos na realidade? Em qual dessas categorias está o nosso cliente?
O sistema familiar também é afetado pelas características da criança tais como temperamento, idade, gênero e posição na família, ou seja, se é o primeiro filho, o segundo ou o terceiro, por exemplo. Os irmãos criados na "mesma" família acabam sendo bastante diferentes porque os pais geralmente se comportam de modo diferente em relação a cada filho devido à afinidade, tempo e momento histórico familiar em que cada criança nasceu7.
As características dos pais que afetam de modo negativo o sistema familiar incluem a depressão e seu modo funcional de vínculo e de apego. A estrutura familiar também tem um impacto sobre o funcionamento da família, o que, por sua vez, afeta o comportamento da criança e do adolescente. Notamos que atualmente há uma tendência de aumento de crianças que passarão pelo menos uma porção de sua infância numa família de progenitor único, ou seja, de pais separados, ou de um dos dois desconhecidos.
Mudanças na estrutura familiar tendem a produzir uma breve perturbação (muitas vezes incluindo um aumento no estilo parental autoritário ou negligente) antes que o sistema se adapte à nova forma.
As famílias com padrastos, especialmente as que incluem adolescentes, são mais lentas nessa adaptação, e muitas vezes continuam a apresentar um estilo parental não competente por longos períodos.
O trabalho da mãe também pode afetar o sistema familiar ao modificar a sua autoimagem, aumentando seu poder e alterando a distribuição das tarefas. Os efeitos sobre as crianças geralmente são positivos, especialmente para as meninas.
A perda do emprego do pai também perturba o sistema familiar, diminuindo o estilo parental competente e a satisfação conjugal. Os filhos muitas vezes apresentam perturbações no comportamento. O caráter do trabalho do homem também tem um efeito importante sobre suas interações familiares5.
Temos, portanto, que estar conscientes, como pais, professores e ou psicopedagogos, sobre nossas relações pessoais e interpessoais para que, sabendo disso, possamos estabelecer um diálogo franco e aberto com nossas crianças para que elas tenham condições de interagir e construir um mundo mais humano e mais justo, pois, sabemos que um comportamento influencia e é influenciado por outros e que todos nós temos o comprometimento de construir uma sociedade mais responsável e feliz.
A FAMÍLIA E A CRIANÇA NA CONTEMPORANEIDADE
A criança sabe instintivamente o que deve fazer ou deixar de fazer para poder pertencer ao grupo familiar. Isso não é um atributo puramente humano(...). Onde quer que haja vínculos existe automaticamente uma percepção espontânea: 'O que é necessário aqui para que eu possa fazer parte desse grupo e o que devo fazer ou deixar de fazer para não perder o direito à pertinência'. O órgão de percepção nesse caso é a consciência. (...) Denomino essa consciência de consciência de vinculação.7
Essa constatação de Hellinger & Hover coincide com a afirmação de Mannoni no início deste artigo. A criança inconscientemente sabe exatamente o que deve fazer para agradar ao pai ou a mãe, ela sabe que cada um tem padrões diferentes de se relacionar, mas isso sempre gira em torno da mesma coisa: pertencimento à família, pois a pior coisa que pode acontecer a uma criança é ser excluída da família. Isso constatamos com uma certa frequência no cotidiano familiar, mas essa exclusão é tão sutil, tão inconsciente, e muitas vezes tão perversa, que somente um olhar mais experiente poderá notar a sutileza deste ato. Ela pode estar camuflada na vergonha, na desconfiança, na desqualificação, na humilhação da criança e em várias outras situações. A criança faz de tudo para pertencer a esta família, quer compartilhar do seu destino, seja ele qual for, e é para isso que a criança faz de tudo, e ela estaria disposta a "morrer" se achar que isso poderia ajudar de alguma forma os outros membros.
Com isso, o sofrimento e o problema são mais fáceis de suportar do que a própria solução, pois a criança por si só não tem condições de resolvê-lo e assim cria sintomas (que de certa forma são um pedido de ajuda) e com isso denuncia a família. Isso tem a ver com o fato de que sofrer ou manter o problema é algo que está profundamente vinculado a um sentimento de lealdade com relação à família. Com isso, a criança tem a esperança de que o próprio sofrimento possa salvar uma outra pessoa da família.
Esta situação, tantas vezes constatada nos nossos atendimentos, comprova as nossas hipóteses de algumas das dificuldades da aprendizagem, pois, para mim, toda criança, para se desenvolver, precisa de alguma forma transgredir proibições. Os pais proíbem algo porque acham necessário, mas ao mesmo tempo acalentam secretamente a esperança de que a criança transgrida a proibição: afinal, eles também já foram crianças um dia e agora que são pais sabem muito bem o que uma criança vai ou não fazer. Então, se uma criança não transgride isso é prejudicial tanto para os pais quanto para a criança. Como já foi dito acima, pais que tudo permitem também prejudicam o desenvolvimento da criança, pois esta não consegue desenvolver sua força interior7.
Minha pergunta: o que somos nós se não transgressores?
Uma das nossas dificuldades ao trabalharmos com a criança é que não percebemos os vários níveis de atuação dela na família, ou seja, seu papel e sua função dentro da dinâmica familiar, pois todo comportamento é extremamente complexo e suas reações são muito variadas. O que uma criança diz é uma coisa, mas o que ela realmente deseja é outra. Ela pode parecer rebelde num nível, mas em outro nível mais profundo percebemos que ela é extremamente leal. Se não olharmos a situação com uma certa distância, só veremos um lado.
A família desempenha três funções que, na realidade, podem ser dissociadas: função de procriação, função de cuidados (alimentação, educação), função de linhagem (adoção). Na realidade estas três funções da família são mais ou menos conjuntas ou separadas na realidade. Sua distinção implica em problemas particulares e obriga ao reconhecimento de lares de múltiplos parentesco.7
A família contemporânea se define mais pelas relações internas travadas no cerne familiar e menos como instituição. A instituição familiar está neste início de século se transformando de maneira acelerada, em que a família não é mais vista como pai, mãe e filhos, já que existem inúmeras forma de se conceber uma família e a visão tradicional está sendo questionada. O ponto em comum que poderia existir entre a família antiga e a família contemporânea poderia consistir em contribuir para a função da reprodução biológica e social, a função de cuidadora de seus filhos e a função de "continuação" dos seus valores e crenças.
Porém, atualmente, já é bem difundida a ideia de "produção independente", e a inseminação artificial, fato que ainda está em discussão sobre a linhagem desta criança (e aí entram as questões éticas sobre a origem biológica deste ser humano), já que em muitos casos não é permitido saber quem é o doador de sêmen ou do óvulo. Porém, tanto a família numa visão tradicional quanto na visão contemporânea procuram manter e melhorar a sua posição no espaço social de uma geração a outra, não levando muito em consideração a questão da hereditariedade, mas a continuação de seus valores éticos e morais. Entram também neste contexto as famílias organizadas pelos laços homoafetivos, as crianças adotadas dentro das mais variadas organizações parentais.
Percebe-se que, embora atualmente as famílias tenham uma tendência a não mais ter uma hierarquia tão rígida como no início do século passado até os anos de 1960, ela é bem mais discreta tanto entre os casais quanto entre eles e seus filhos, mas notamos que essa atitude não diminui os conflitos intergeracionais e eles continuam dentro do contexto familiar.
Singly8 destaca que a história da família contemporânea pode ser dividida em dois períodos. No primeiro período (família moderna 1 ou da primeira modernidade) que se inicia nos anos de 1918 até vai até 1968 (50 anos aproximadamente) se destaca o fato de o homem trabalhar fora para ganhar o dinheiro da família e de a mulher ficar em casa para se ocupar, o melhor possível, dos filhos. Este tipo de família está centrado no grupo, e os adultos estão a serviço da família e, principalmente, das crianças.
No segundo período (família moderna 2) que tem início a partir de 1960, em que nota-se um grande avanço das novas tecnologias e novas tendências da Filosofia, da Psicologia e da Ciência, a família começa a voltar seu interesse à individuação, comportamento este que continua nos dias atuais. É, portanto, um processo de desenvolvimento inacabado, em que se questiona a identidade masculina e feminina, faltando a identificação de papéis de cada um dos parceiros, onde ainda existe uma desigualdade dos trabalhos domésticos devido ao trabalho profissional da mulher fora de casa. As mulheres, neste sentido, deixaram de depender financeiramente (pelo menos em parte) dos homens e passaram a questionar o seu papel e o papel do homem na relação conjugal.
Esse movimento de individuação ainda está em processo de construção e Singly8 e Souza9 sinalizam que as sociedades ocidentais têm ainda dificuldade em administrar tantas mudanças que despontam na sociedade atual. Com isso, Singly8 sugere que tal como a modernidade, a família tem um futuro incerto, porém, apesar disso e com alguns constrangimentos (por que não dizer preconceitos) sociais tais como os movimentos LGBT, os casamentos homoafetivos, e outros tipos de relacionamentos, os indivíduos constroem a sua história como o fazem há mais de cinco mil anos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
"As crianças são as mensagens vivas que enviamos a um tempo que não veremos."10
O leitor deve estar se perguntando sobre famílias com crianças adotadas ou com crianças com algum tipo de transtorno, distúrbio, dificuldade ou problema de aprendizagem que envolvem questões orgânicas, ou doenças mentais severas e que em momento algum eu citei. Isso ficará para um próximo artigo, caso os leitores sintam interesse. Muito ainda tem a ser dito, porém, o espaço é pouco para um assunto complexo, fascinante, intrigante, instigante ao qual nós todos pertencemos de uma forma muito particular. Falar sobre família é falar sobre nós mesmos. Como diz a poesia de Talita: Família é tudo igual: cada uma é especial.
REFERÊNCIAS
1. Fernández A. A Inteligência Aprisionada. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed; 1992. p. 99. [ Links ]
2. Vygotsky LS. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes; 2001. [ Links ]
3. Wallon H. A evolução psicológica da criança. São Paulo: Martins Fontes; 2007. [ Links ]
4. Ariès P. História Social da Criança e da Família. 2a ed. Rio de Janeiro: LTC; 1981. [ Links ]
5. Miermont J. Dicionário de Terapias Familiares: teoria e prática. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994. [ Links ]
6. Bronfenbrenner U. A Ecologia do Desenvolvimento Humano: Experimentos Naturais e Planejados. Porto Alegre: Artes Médicas; 1996. [ Links ]
7. Hellinger B, Hover TG. Constelações Familiares: o reconhecimento das ordens do amor. São Paulo: Cultrix; 2007. [ Links ]
8. Singly F. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2007. [ Links ]
9. Souza CMB. Família na contemporaneidade: mudanças e permanências. Cad CRH. 2008; 21(54):623-5. [ Links ]
10. Postman N. O Desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro: Graphia; 2012. p. 11. [ Links ]
Endereço para correspondência:
Maria Cecília Castro Gasparian
Rua São Judas Tadeu, 204 - Granja Viana
Cotia, SP, Brasil - CEP 06708-520
E-mail: mcgasparian@uol.com.br
Artigo recebido: 15/8/2019
Aprovado: 26/10/2019
Conflito de interesses: A autora declara não haver.