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Revista Psicopedagogia
Print version ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.37 no.112 São Paulo Jan./Apr. 2020
https://doi.org/10.5935/0103-8486.20200004
ARTIGO DE REVISÃO
O uso de jogos no contexto psicopedagógico
Using games in psychopedagogical context
Sylvia Domingos Barrera
Professora Doutora; Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) - Campus Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, Brasil
RESUMO
Embora os jogos sejam um recurso muito utilizado na intervenção psicopedagógica, muitas vezes o seu uso ocorre sem a devida compreensão dos fatores que justificam o seu emprego e sem uma reflexão mais cuidadosa do papel do jogar no contexto psicopedagógico, bem como da forma como os jogos devem ser escolhidos e trabalhados. O objetivo deste artigo é recuperar as dimensões e funções do jogo nos contextos de desenvolvimento infantil, educacional e clínico-psicológico, culminando com a análise das suas possibilidades no contexto psicopedagógico. Espera-se contribuir para uma utilização mais consciente e eficaz dos jogos no atendimento às queixas das dificuldades de aprendizagem.
Unitermos: Jogos. Desenvolvimento. Aprendizagem. Psicopedagogia.
SUMMARY
Although gaming is a widely used feature in psychopedagogical intervention, its use often occurs without a proper understanding of the factors that justify its use and without a more careful consideration of the role of gaming in the psychopedagogical context, as well as of how games must be chosen and worked. The purpose of this article is to recover the dimensions and functions of the games in the child development, educational and clinical-psychological contexts, culminating with the analysis of their possibilities in the psychopedagogical context. It is hoped to contribute to a more conscious and effective use of games in dealing with complaints of learning difficulties.
Keywords: Games. Development. Learning. Psychopedagogy.
INTRODUÇÃO
A Psicopedagogia, enquanto área de conhecimento interdisciplinar, preocupa-se com o entendimento da aprendizagem humana e dos fatores que nela interferem, facilitando-a ou dificultando-a, sejam eles de origem individual ou socioambiental. Enquanto área de aplicação, destina-se à avaliação e intervenção nas dificuldades de aprendizagem, podendo estas atividades incidirem mais especificamente sobre o aprendiz, numa abordagem remediativa, ou sobre o contexto educacional, numa abordagem mais preventiva. No primeiro caso, fala-se da Psicopedagogia Clínica, enquanto a segunda abordagem tem sido denominada de Psicopedagogia Institucional1.
Independentemente da abordagem adotada e da filiação teórica do psicopedagogo (psicanalítica, construtivista, sociointeracionista, cognitivo-comportamental), os jogos desempenham papel fundamental na intervenção psicopedagógica destinada ao aprendiz2. Este artigo inicia abordando a definição do termo "jogo" e suas interfaces com outros conceitos similares, como "brinquedo", "brincadeira" e "jogo educativo". Em seguida, realiza uma breve retrospectiva histórica das funções atribuídas ao jogo em teorias psicológicas do desenvolvimento e da aprendizagem, bem como de sua proposta de utilização na educação e na clínica psicológica. Por fim, destaca sua utilização no contexto da intervenção psicopedagógica. O objetivo principal, portanto, é discorrer sobre e discutir o papel dos jogos na avaliação e intervenção psicopedagógica, bem como diferentes formas de utilizá-los neste contexto.
JOGO, BRINQUEDO E BRINCADEIRA: SEU PAPEL NO DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM INFANTIL
Embora os termos jogo, brinquedo e brincadeira sejam geralmente usados de forma indistinta pela população e mesmo por autores das áreas educacional e psicológica, parece útil, para o intuito de sua análise na prática psicopedagógica, estabelecer algumas distinções entre esses termos. Assim, um primeiro aspecto que diferencia o jogo dos demais conceitos é a sua estruturação a partir de um sistema de regras preexistente, conhecido e aceito pelo(s) participante(s). Outra característica específica do jogo é sua finalidade, o que significa que todo jogo pressupõe a superação de alguma dificuldade (situação-problema ou adversários) para a sua consecução exitosa3. Nesse sentido, a despeito de seu caráter lúdico, também compartilhado com os conceitos de brinquedo ou brincadeira, o resultado do jogo necessariamente implica uma experiência de sucesso ou fracasso, que pode ser vivenciada de diferentes formas pelo participante.
O brinquedo, por sua vez, consiste em um objeto cuja finalidade é possibilitar à criança "um substituto dos objetos reais, para que possa manipulá-los" (Kishimoto, p. 18)4. Dessa forma, contribui para a reprodução, através do recurso à memória e à imaginação, de situações vivenciadas pela criança. O termo brincadeira, por sua vez, pode ser entendido como a ação lúdica que a criança desempenha ao atuar com um jogo ou um brinquedo, por exemplo4.
Entendemos, porém, que, para as finalidades da presente análise, é mais adequado considerar as especificidades dessas ações. Nesse sentido, compreende-se a brincadeira como uma atividade praticamente livre de regras externas (como aquelas impostas pelo jogo, por exemplo). Reconhece-se, assim, o caráter lúdico de ambas as ações, porém destacando o caráter mais individual e subjetivo da brincadeira, na qual a criança tem maior liberdade para criar suas próprias "regras". Além disso, na brincadeira não existem metas preestabelecidas pautando, de forma mais objetiva, percepções de êxito ou fracasso. O que há de comum em todos esses termos ou conceitos, portanto, é seu caráter lúdico, enquanto algo apartado da realidade e que proporciona prazer aos participantes.
Mas qual seria o papel do lúdico (jogo, brinquedo e brincadeira) no desenvolvimento cognitivo e mesmo afetivo das crianças? Autores importantes da Psicologia no estudo do desenvolvimento humano e de suas relações com a aprendizagem, como Piaget e Vygotsky, dedicaram parte de suas reflexões teóricas a esse tema. Sem diferenciar precisamente jogos e brincadeiras, Piaget5 propôs a existência de três categorias principais de jogos: o jogo de exercício, o simbólico e o de regras.
O jogo de exercício aparece no período sensório-motor (entre 0 e 2 anos) e consiste na repetição de ações anteriormente aprendidas, pelo simples "prazer funcional" de executá-las ou de afirmar um "saber motor" recentemente adquirido. O jogo simbólico, por sua vez - também conhecido como "brincadeira de faz de conta" -, é próprio do período pré-operacional (2 a 7 anos), em decorrência do surgimento da capacidade de simbolização, consistindo na transformação do real em função das necessidades e desejos da criança, servindo também ao desenvolvimento cognitivo. Por fim, aparecem os jogos de regras, próprios do período operacional concreto (7 a 11 anos), os quais, segundo Piaget, aumentam em importância com os progressos da vida social da criança.
Através das ações realizadas durante os diferentes tipos de jogos e dos processos de autorregulação e reflexão proporcionados por elas (tomada de consciência), os jogos e brincadeiras seriam, de acordo com essa perspectiva, fontes importantes do desenvolvimento psicológico, considerado a base para a aprendizagem.
Diferentemente de Piaget, Vygotsky6 enfatiza as "regras" implícitas já presentes na brincadeira de faz de conta das crianças pré-escolares, uma vez que estas, ao representarem cenas do cotidiano (brincar de escolinha, por exemplo), colocam em ação não apenas sua imaginação, mas também seu conhecimento a respeito das regras de comportamento presentes nas situações encenadas, agindo, assim, de modo mais evoluído que seu comportamento habitual. Vygotsky afirma, portanto, que, ao brincar, a criança cria zonas de desenvolvimento proximal, o que a impulsiona a ir além do seu nível de desenvolvimento real, tendo a brincadeira simbólica, portanto, uma função importante no desenvolvimento infantil.
Embora a compatibilidade entre a teoria piagetiana do desenvolvimento da inteligência e os princípios pedagógicos da Escola Nova - movimento de renovação educacional que se configura no Brasil a partir da década de 1930 - já se fizesse presente desde o início do referido movimento7, as contribuições teóricas de Piaget e Vygotsky vêm sendo incorporadas com maior intensidade pela Educação a partir da década de 1990, subsidiando propostas pedagógicas para o ensino regular, conhecidas como construtivistas ou sociointeracionistas. Particularmente no caso dos jogos e brincadeiras, tais contribuições têm sido utilizadas com especial ênfase na Educação Infantil, cujos Referenciais Curriculares8, Diretrizes Curriculares9 e Base Nacional Comum Curricular10 propõem a brincadeira e as interações como eixos fundamentais da proposta pedagógica para a educação de crianças de 0 a 6 anos.
Historicamente, contudo, é preciso reconhecer que o uso do jogo e da brincadeira nas práticas pedagógicas desenvolvidas com crianças pré-escolares remonta a Froebel e Montessori. De acordo com Kishimoto11, é com Froebel, criador do "jardim de infância" no início do século XIX, que "o jogo, entendido como objeto e ação de brincar, caracterizado pela liberdade e espontaneidade, passa a fazer parte da história da educação infantil" (p. 16).
Montessori, por sua vez, foi a criadora, no início do século XX, de um método pedagógico baseado na livre exploração de material lúdico composto por objetos de diferentes formas, cores, tamanhos e texturas, destinado inicialmente a crianças deficientes mentais e, posteriormente, estendido a pré-escolares e alunos de modo geral. O famoso "material dourado", elaborado para facilitar a aprendizagem de conceitos numéricos como unidade, dezena, centena e milhar, foi um de seus importantes legados à educação matemática12.
Aqui é necessário fazer um parênteses para abordar os jogos pedagógicos (ou educativos), os quais têm como objetivo aliar o lúdico a finalidades educacionais. Geralmente, tais jogos utilizam-se de letras, números, mapas, questões ou outros conteúdos educativos, podendo ser usados em contextos educacionais formais ou informais (ambiente familiar, por exemplo), e mesmo na intervenção psicopedagógica, como será discutido mais adiante.
Segundo Kishimoto11, o jogo pedagógico desempenha duas funções concomitantes: do ponto de vista da criança, ele tem uma função lúdica, propiciando diversão, prazer e mesmo desprazer; do ponto de vista do educador, o jogo tem a função de ensinar alguma coisa. Seu uso em contextos educacionais procura conciliar a liberdade, típica da brincadeira, com a orientação, própria dos processos educativos. Ou seja, enquanto na atividade lúdica habitual o jogo constitui um fim em si mesmo, na atividade educativa ele é um meio para a obtenção de conhecimentos.
Embora alguns jogos sejam fabricados explicitamente com essa intenção, é possível considerar que, mesmo os jogos de regras comuns, quando utilizados em contextos e com função educativa pela mediação de um adulto, poderiam ser denominados de jogos educativos. Assim, por exemplo, uma escola que elabora um projeto pedagógico em torno do jogo de xadrez, com vistas ao desenvolvimento das habilidades cognitivas de planejamento e atenção concentrada, o transforma de um "simples" jogo de regras em um jogo pedagógico.
A subutilização deste tipo de jogos no contexto escolar parece ocorrer, geralmente, não apenas pela falta de material disponível, mas, sobretudo, pelo desconhecimento dos professores e demais profissionais da educação, sobre como, quando e para quê utilizá-los na escola13,14. Exemplos bastante ilustrativos da utilização de jogos em contexto escolar para potencializar a compreensão das operações matemáticas, através da construção e uso de esquemas cognitivos subjacentes às operações de multiplicação e divisão, podem ser encontrados na literatura da área15,16.
Apesar de suas potencialidades como instrumento de ensino e aprendizagem em sala de aula, muitos professores se queixam também da dificuldade em controlar o comportamento das turmas em situações de jogo. Considera-se, entretanto, que, dado seu potencial motivador, de assimilação de conteúdos e mesmo de desenvolvimento de estratégias cognitivas e metacognitivas15, seria importante oferecer aos professores formação em serviço que lhes permitisse compreender as possibilidades desse tipo de recurso, bem como de desenvolver estratégias de gestão da classe.
Lembrando que muitas vezes as turmas se desestruturam na presença de propostas lúdicas justamente porque não estão acostumadas com esse tipo de atividade em sala de aula. Nesses casos geralmente são necessárias algumas tentativas com a construção coletiva das regras para nortear o comportamento da turma antes que os jogos possam ser utilizados de forma produtiva pelo professor.
Deixando agora o campo da educação e do desenvolvimento infantil típico, é importante pontuar que, historicamente, os jogos e a brincadeira têm sido considerados também recursos fundamentais no tratamento psicológico dos problemas emocionais/comportamentais infantis, fato esse responsável pela origem do termo "ludoterapia" para se referir a esse tipo de intervenção psicoterapêutica, independentemente da afiliação teórica do profissional.
De fato, psicanalistas como Anna Freud, Melanie Klein e Winnicott foram alguns dos primeiros teóricos que se dedicaram a analisar o papel do jogo e da brincadeira como forma de expressão e elaboração de conflitos infantis17,18. Entretanto, é preciso reconhecer que Freud19 já havia tido o insight original, interpretando a brincadeira de uma criança de 1 ano e meio, que consistia em jogar um carretel, vendo-o desaparecer sob um móvel e, em seguida, recuperá-lo, puxando-o pela extremidade da linha, como uma forma da criança elaborar as ausências (e retornos) da figura materna. Para Klein20, os brinquedos e brincadeiras infantis expressam uma variedade de significados simbólicos, ligados a fantasias, desejos e experiências das crianças. Winnicott21, por sua vez, afirmava que o brincar é a atividade típica da criança, interpretando as dificuldades em brincar (inibição, estereotipia, repetições) como indícios de dificuldades emocionais.
Abordaremos a seguir a utilização dos jogos no contexto psicopedagógico, dando destaque particular para o seu uso no consultório. Não podemos esquecer, porém, que os jogos também podem e devem fazer parte de ações escolares destinadas ao trabalho com alunos que apresentam defasagens na aprendizagem. Alguns exemplos interessantes de propostas desenvolvidas nesse sentido, as quais se aproximam de uma intervenção psicopedagógica institucional, podem ser encontradas na literatura, visando ao desenvolvimento de habilidades matemáticas15 e das funções executivas22. Tais propostas poderiam ser facilmente incorporadas pelas escolas em programas de reforço escolar, desde que com a devida formação dos professores responsáveis pela sua execução.
OS JOGOS NO CONTEXTO PSICOPEDAGÓGICO
Em seu texto sobre o uso do jogo na Psicopedagogia [construtivista], Macedo3 define a intervenção psicopedagógica como um "trabalho complementar ao da escola, (...) [que] visa ao aprofundamento das condições psicológicas para a produção ou construção de conhecimentos" (p. 123). O autor defende a ideia de que a Psicopedagogia se foca não apenas em questões pedagógicas ou educacionais, mas também nas características psicológicas do sujeito que aprende.
Entre estas características, encontram-se não só aquelas de ordem cognitiva, mas também afetiva, uma vez que as crianças encaminhadas para atendimento psicopedagógico com frequência apresentam também problemas emocionais e/ou comportamentais, conforme apontado por vários estudos23,24, sendo que muitos desses problemas dizem respeito à relação da criança com a "tarefa escolar". Reações emocionais de medo e ansiedade, bem como de pouco envolvimento (motivação) e baixa tolerância à frustração, são frequentes nas crianças com queixas de aprendizagem escolar, configurando um ciclo vicioso em que a falta de motivação leva à pouca dedicação ao estudo, o que acaba aumentando a defasagem na aprendizagem3.
Na mesma linha de raciocínio, porém adotando um referencial teórico cognitivo-comportamental, vários estudos têm apontado para as baixas crenças de autoeficácia acadêmica dos alunos com dificuldades de aprendizagem, uma vez que estes tendem a considerar que não possuem (ou possuem em menor grau do que os colegas) as habilidades e competências necessárias para a obtenção de bons resultados escolares23.
As baixas crenças de autoeficácia acadêmica podem se originar de resultados negativos obtidos em situações escolares e, também, da forma como estes resultados são interpretados pelos professores e pais, sendo ressignificados e interiorizados pela criança de forma a comprometer sua autoimagem, independentemente do grau de limitação cognitiva desta. Além disso, na medida em que as habilidades e competências consideradas necessárias para ter êxito na tarefa em questão são consideradas como imutáveis e/ou incontroláveis pelo aprendiz, isso reforça os sentimentos de ansiedade, pessimismo e pouca motivação para agir no sentido de reverter esses resultados, gerando o padrão de comportamento cunhado por Seligman como "desamparo aprendido"25.
Diante dessa configuração de crenças, atitudes e comportamentos negativos frente aos desafios e tarefas escolares, o jogo aparece como um instrumento importante no contexto da intervenção psicopedagógica. Mais especificamente, o jogo de regras assume papel decisivo nesse processo, não apenas porque as queixas de aprendizagem ocorrem fundamentalmente na idade escolar, mas também porque os elementos fundamentais deste - o objetivo, o resultado e as regras - oferecem uma situação extremamente propícia para a aprendizagem de conhecimentos, estratégias e atitudes.
Pelo fato do jogo de regras ter um objetivo ou situação problema, a qual deve ser resolvida pelo jogador, com base em um conjunto de normas pré-definidas, a fim de alcançar um resultado positivo (vencer o jogo), interessa ao psicopedagogo não apenas a análise dos meios ou procedimentos que a criança utiliza para tentar vencer o jogo, mas também suas atitudes e emoções frente ao desafio (situação problema) e ao seu resultado. Assim, ajudar a criança a tomar consciência de suas jogadas e dos resultados das mesmas (sejam eles favoráveis ou não), bem como a planejá-las antecipadamente, é uma tarefa importante a ser realizada pelo psicopedagogo3. O objetivo é de que esse controle de ordem "metacognitiva", construído no decorrer do uso do jogo, possa ser generalizado para outros contextos e situações, como a situação escolar, por exemplo.
Também os jogos educativos podem ter um papel importante no contexto psicopedagógico. De acordo com Ide26, o jogo, por ser livre de pressões e avaliações, cria um clima positivo, propício à aprendizagem e à reflexão. Ainda segundo a autora, o jogo propicia a experiência do êxito, sendo esta uma das fontes da autoestima. Quando esta aumenta, a ansiedade diminui, permitindo à criança realizar as tarefas relacionadas à aprendizagem com maior motivação.
Afastando-nos agora um pouco do foco cognitivo, podemos afirmar que a atenção às atitudes, comportamentos e expressões emocionais da criança, ao jogar, é também de grande importância e pode ser fonte de produtivas intervenções por parte do psicopedagogo. Dessa forma, é possível observar - e intervir - em aspectos tão variados como: a resistência da criança à frustração (quando perde uma ou mais partidas, por exemplo), seu empenho ou motivação em terminar uma tarefa quando encontra dificuldades (ao completar um quebra-cabeça, por exemplo), suas atitudes de competição e/ou cooperação com o parceiro (no caso, o psicopedagogo), bem como seu relacionamento com as regras e limites impostos pelo jogo. No caso das dificuldades encontradas, é importante analisar também se a criança solicita, aceita ou recusa a ajuda do psicopedagogo e como o faz, bem como se "internaliza" as dicas e orientações recebidas ao longo das jogadas ou em novas partidas do mesmo jogo.
A necessidade do respeito às regras - e, concomitantemente, aos parceiros - também torna o jogo uma atividade propícia para o desenvolvimento moral e social. Considerando que o desenvolvimento moral corresponde, em última instância, à construção de princípios e valores que nos orientam sobre "como agir perante os outros", é possível afirmar que os jogos de regras possibilitam à criança lidar com limites, respeito e disciplina, aspectos esses fundamentais à vida social27. Assim, comportamentos como mentir, enganar e alterar as regras para benefício próprio não são bem aceitas no contexto do jogo e podem levar a importantes reflexões sobre o próprio comportamento na relação com os outros, não apenas em situações de jogo, mas também nos demais contextos sociais.
COMO ESCOLHER OS JOGOS A SEREM UTILIZADOS NA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA
Várias questões se colocam sobre a utilização dos jogos no contexto psicopedagógico relacionadas a quando e como utilizá-los no atendimento a crianças com queixas de dificuldades de aprendizagem. Inicialmente, é preciso considerar que, embora alguns profissionais utilizem os jogos como recurso exclusivo da intervenção psicopedagógica, nossa perspectiva é que, apesar de fundamentais pelas possibilidades de desenvolvimento cognitivo, afetivo e social que propiciam, os jogos (tanto de regras quanto pedagógicos) também podem ser utilizados pelo psicopedagogo em combinação com outros tipos de atividades, preferencialmente de caráter lúdico. Dentre estas, destacamos o uso de "dinâmicas" voltadas para o autoconhecimento e desenvolvimento da autoestima e autoeficácia, por exemplo, e as atividades pedagógicas de caráter lúdico, como cruzadinhas, caça-palavras e desafios matemáticos.
De todo modo, qualquer que seja o modelo de intervenção utilizado, é necessário enfatizar que os jogos devem ser escolhidos criteriosamente, em função das habilidades cognitivas e/ou das competências acadêmicas que se pretende avaliar ou desenvolver, e nunca como uma simples "distração". Visando auxiliar o psicopedagogo nessa escolha, o quadro a seguir inclui alguns dos jogos de regras mais conhecidos na realidade brasileira buscando classificá-los de acordo com suas potencialidades para o desenvolvimento de habilidades e competências cognitivas, lembrando que a atenção é uma função cognitiva básica exigida em todos os jogos (Quadro 1).
Quadro 1 - Clique para ampliar
Com relação a como utilizar os jogos no contexto psicopedagógico, talvez valha a pena iniciar retomando suas potencialidades enquanto materiais úteis a uma avaliação mais informal (e menos ansiogênica, diga-se de passagem), não apenas de habilidades cognitivas gerais (memória, percepção, planejamento, flexibilidade cognitiva, raciocínio lógico), mas também como indicador de competências acadêmicas, sobretudo nas áreas da linguagem escrita e matemática.
Neste último caso, geralmente são mais indicados jogos pedagógicos, embora os jogos de regras em geral também possam ser usados (ou adaptados) para uma investigação mais sistemática de habilidades escolares de leitura, escrita e das operações matemáticas básicas. Por exemplo, para avaliar o nível de conhecimento da escrita da criança é possível, após a montagem de um quebra-cabeça, solicitar que ela escreva os nomes de alguns objetos ou personagens observados na cena, ou mesmo um título para esta, e, até mesmo, dependendo do nível de escolarização da criança, que elabore um pequeno texto tendo como base a cena construída.
Outra possibilidade de uso do jogo, agora para abarcar também a competência em leitura, seria jogar uma partida de Cara a Cara, sendo que as questões a serem propostas seriam escritas em pequenas tiras de papel e lidas pelos jogadores que anotariam as respostas (sim ou não) a cada pergunta realizada. Por fim, a realização do jogo pega-varetas é bastante útil para avaliar habilidades de contagem e competência nas operações de adição e multiplicação. Jogos de tabuleiro (percurso) com dois dados também servem muito bem a esse propósito.
Um aspecto que diferencia o uso do jogo no contexto psicopedagógico do seu uso na ludoterapia é o fato de que, no atendimento psicopedagógico, não há livre escolha da criança sobre o jogo a utilizar, uma vez que estes são previamente escolhidos em função das habilidades e competências que o psicopedagogo pretende avaliar ou desenvolver. Dessa forma, o enquadre psicopedagógico costuma ser mais estruturado havendo um planejamento que envolve a predeterminação dos instrumentos e tarefas (jogos e atividades) a serem utilizados na sessão28.
Obviamente, essa estruturação prévia deve ser suficientemente flexível para se adequar à resposta comportamental e emocional da criança com relação às atividades propostas. De todo o modo, tanto no contexto psicopedagógico quanto na ludoterapia, o jogo desempenha também o papel de favorecer o vínculo da criança com o terapeuta, fundamental para o êxito de qualquer processo terapêutico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O modelo tradicional de compreensão das dificuldades de aprendizagem como resultantes de déficits específicos em determinadas habilidades cognitivas do aprendiz vem dando lugar a uma visão mais ampla e multifatorial na explicação dessas dificuldades. Considera-se, portanto, que aspectos inerentes ao próprio sistema educacional e às influências ambientais que funcionam como contexto para as manifestações comportamentais e para o desenvolvimento das habilidades, competências e sistemas de crenças de cada indivíduo contribuem na determinação das dificuldades de aprendizagem24.
O uso de jogos mostra-se então fundamental para trabalhar nesse contexto, uma vez que exerce um apelo natural ao interesse da criança pela sua característica lúdica, favorecendo assim o vínculo desta tanto com o mediador da atividade (psicólogo, psicopedagogo ou educador) quanto com a atividade de jogar em si. Esta representa um desafio cognitivo que, ao ser superado através do êxito, fortalece sentimentos de autoestima e autoeficácia. A partir do auxílio oferecido pelo mediador no estímulo da reflexão sobre estratégias utilizadas e planejamentos possíveis, possibilita o desenvolvimento da compreensão do raciocínio subjacente à ação, favorecendo o desenvolvimento da autorregulação e da motivação para as tarefas de aprendizagem.
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Endereço para correspondência:
Sylvia Domingos Barrera
Av. Bandeirantes, 3900 - Vila Monte Alegre
Ribeirão Preto, SP, Brasil - CEP 14040-900
E-mail: sdbarrera@ffclrp.usp.br
Artigo recebido: 5/9/2020
Aprovado: 3/12/2019
Trabalho realizado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) - Campus Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, Brasil.
Conflito de interesses: A autora declara não haver.