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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.46 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2012
ARTIGOS
Corrupção, poder e loucura: um campo transferencial
Corruption, power and madness: a transferential field
Corrupción, poder y locura: un campo transferencial
Marion Minerbo
Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
RESUMO
A corrupção praticada pelo sujeito que nada teme pode ser vista como sintoma de certo tipo de loucura - no sentido da hybris - relacionada ao excesso de poder, porém determinada por um campo transferencial. Neste, as identificações complementares "poderoso"/"intimidado" se potencializam reciprocamente, até que o campo transferencial constituído pela criança-no-adulto de ambos acabe por enlouquecer os dois. O primeiro passa a sentir que pode tudo. O segundo, intimidado, subserviente e siderado, não se autoriza a sinalizar ao primeiro os limites da sua onipotência.
Palavras-chave: corrupção; poder; loucura; campo transferencial; pacto social.
ABSTRACT
Corruption practiced by someone who fears no one and nothing may be seen as a symptom of madness - in the sense of hybris - related to excessive power, but determined by a particular transferential field. In this field, the complementary identifications of "powerful" and "intimidated" intensify each other, until the transferential field constituted by the child-in-the-adult of both will eventually drive them mad. The first one will feel that he can do as he pleases. The second, intimidated, subservient and impacted, does not give himself the authority to make clear to the first the limits to his omnipotence.
Keywords: corruption; power; madness; transferential field; social pact.
RESUMEN
La corrupción practicada por el sujeto que nada teme puede ser vista como un síntoma de cierto tipo de locura - en el sentido de la hybris - relacionada al exceso de poder, aunque determinada por cierto campo transferencial. En este, las identificaciones complementares "poderoso"/"intimidado" se potencializan recíprocamente, hasta que el campo transferencial constituido por el niño en el adulto de ambos acabe por enloquecer a los dos. El primero comienza a sentir que lo puede todo. El segundo, intimidado, servil y atónito, no consigue señalar al primero los límites de su omnipotencia.
Palabras clave: corrupción; poder; locura; campo transferencial; pacto social.
Introdução
O objetivo deste texto é mostrar como certas formas de enlouquecimento podem ser geradas no/pelo campo transferencial por meio da atuação, por parte dos sujeitos envolvidos, de transferências cruzadas e complementares. Nas transferências cruzadas há dois ou mais sujeitos que fazem transferência uns com os outros. Ao mesmo tempo, cada um deles pode atuar de forma a complementar a transferência do outro.
Sabemos que um enlouquecimento desse tipo pode ocorrer entre mãe e filho, entre parceiros de uma relação conjugal e mesmo entre analista e paciente. Penso que podemos estender essa forma de pensar à vida cotidiana, evidenciando com isso a potência do fenômeno transferencial. Ilustrarei essas ideias tomando como eixo condutor certo tipo de corrupção, entendida como sintoma de um enlouquecimento desse gênero.
Nesse sentido, meu recorte será radicalmente diferente daquele que adotei algum tempo atrás, quando esbocei uma interpretação psicanalítica da corrupção como fenômeno social (2000 e 2007). Para melhor contrastar as duas abordagens - a corrupção como fenômeno social e como efeito de certo campo transferencial - apresento uma síntese daquelas ideias.
Na época, sugeri que o que se corrompe não é o indivíduo, mas o sistema simbólico (a instituição) que ele representa, tendo como consequência a fratura do símbolo e o esvaziamento semântico. Explico:
Quando o representante de uma instituição não reproduz seu discurso e suas práticas, por exemplo, quando em vez de julgar, o juiz se deixa corromper, o vínculo simbólico entre juiz e justiça se enfraquece até se corromper. A significação, que até então era natural (estava naturalizada) se desnatura: o juiz deixa de representar a justiça, e a instituição se enfraquece. É a fratura do símbolo.
As palavras ligadas a esse sistema simbólico (réu, julgamento, sentença, lei, transgressão, pena) continuam existindo, porém, vazias de significado; elas deixam de ter lastro afetivo, de modo que a subjetividade aí constituída já não crê na justiça, e a impunidade passa a ser vivida como natural. Em síntese, o representante da instituição aceita suborno, mas o que se corrompe é o sistema simbólico como um todo. E isso tem consequências de longo alcance, pois a justiça é a base da civilização. "A primeira exigência da civilização é a de justiça, ou seja, a garantia de uma lei que, uma vez criada, não será violada a favor de um indivíduo" (Freud, 1930/1969d, p. 116).
No presente texto, certo tipo de corrupção - aquela que nada teme - será entendido como sintoma de um enlouquecimento - no sentido da hybris, e não de doença mental. Dessa perspectiva, o sujeito que pratica certo tipo de corrupção será considerado "louco" quando, em função de sua desmesura, sente e age como alguém que pode tudo e não precisa temer nada.
Contudo, introduzo uma diferença importante em relação ao conceito de hybris. Para os gregos, a desmesura acometia uma pessoa. Era, pois, um fenômeno individual. Mas ao abordar a desmesura que leva à corrupção - àquele tipo de corrupção que nada teme - pelo vértice do campo transferencial, estou propondo entendê-la como fenômeno intersubjetivo. Dessa perspectiva, a indignação contra as pessoas que praticam a corrupção, embora compreensível, obscurece a percepção de que somos parte do problema - e, portanto, da solução.
Pacto civilizatório e condição humana
A relação entre poder e loucura tem sido observada há muito tempo. Há quem diga que o poder enlouquece (produz endorfinas, vicia), enquanto outros sustentam que pessoas ávidas pelo poder já apresentam previamente questões relacionadas à onipotência. O problema dessas posições é pensar a loucura como uma condição que pode acometer o sujeito exposto ao poder "de fora para dentro", da mesma forma como a exposição à friagem pode causar uma pneumonia.
Ao contrário disso, a psicanálise mostra que o sujeito, poderoso ou não, sempre enlouquece na relação com o outro - em certo tipo de relação com o outro. Por isso, reformulando o problema, a relação entre poder e loucura exige que se tome em consideração o campo transferencial, no qual, e por meio do qual, aquele que detém o poder pode vir a enlouquecer com a contribuição do outro.
Como dito acima, hybris, a loucura, está relacionada ao excesso, à desmedida e à transgressão. Louco é o homem que tenta se igualar aos deuses. Cito Franciscato (2011):
No dicionário Liddell e Scott, a primeira definição de hybris é violência temerária que resulta do orgulho pela força ou pelo poder que se possui. Na visão mítica, são atos, palavras ou mesmo pensamentos por meio dos quais o homem, que é mortal, esquece sua natureza e limitações, compete com os deuses e procura adquirir seus atributos, provocando a hostilidade divina. [grifos meus]
Percebe-se que a definição se aplica ao poderoso que, como os deuses, pensa estar acima da condição humana. Em sua loucura, ele se esquece de algo fundamental: seu poder lhe foi outorgado temporariamente pelo grupo, e pode ser retirado caso transgrida o pacto social. Por isso, antes de abordar o papel do campo transferencial-contratransferencial no enlouquecimento, cabe retomar, muito brevemente, o contrato firmado entre grupo e indivíduo - e que deve ser respeitado por quem queira fazer parte da comunidade humana.
O termo "pacto civilizatório" foi usado por Freud em O mal-estar na civilização (1930/1969d). Em citação bastante conhecida, ele diz que o "homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança" (p. 137). Felicidade, nesse contexto, é gratificação pulsional. Na ausência de sublimação, diz ele, a neurose pode ser o preço a ser pago pela segurança da vida civilizada. No outro extremo, quando a busca do prazer não conhece limites, temos a barbárie.
Mudando de registro, mas sempre pensando a condição humana inevitavelmente em relação a algum tipo de contrato com nossos semelhantes, Aulagnier (1975/1979) propõe a noção de contrato narcisista. Esse contrato é firmado entre a criança que vem ao mundo e o grupo que a acolhe. Este abre espaço para receber o novo ser, oferecendo-lhe um lugar na cadeia das gerações, uma história sobre sua origem e referências identificatórias. Em troca, o sujeito se compromete a investir narcisicamente o grupo de forma a garantir sua continuidade. O contrato beneficia a ambos.
Articulando os dois contratos, pode-se dizer que nos comprometemos a renunciar à satisfação absoluta de nossos impulsos sexuais e agressivos - incesto e parricídio. Em troca desse sacrifício, as instituições, a começar pelo objeto primário, se comprometem a nos acolher no mundo humano e nos oferecem, não apenas segurança, como diz Freud (1930/1969d), mas também as referências identitárias sem as quais não seria possível nos constituirmos como sujeitos. Nesse formato ampliado, o contrato contempla tanto as condições para ser/existir como para o prazer. Nós o assinamos não tanto por achar que a relação custo-benefício compensa, mas porque não temos escolha: é isso ou ficar no limbo.
Fora da condição humana: o limbo
A ideia de limbo é importante. A conhecida frase de Winnicott: "é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser encontrado" (1963/1983, p. 169) se refere à angústia que a criança sente quando imagina que deixou de existir para o outro significativo. Estar no limbo é estar em lugar nenhum e não existir para seus semelhantes. É pior que a morte.
Um sinal inequívoco de que o contrato está em vigência é o fato de temermos as consequências de sua transgressão. A loucura do poderoso consiste, justamente, em atuar suas pulsões sexuais, agressivas e de dominação sem temer nada, nem mesmo o limbo. É sinal de que o contrato está revogado para ele.
Há duas situações em que o contrato entre o sujeito e o grupo deixou de valer:
a. A primeira é quando o horror de não existir para a comunidade humana já se realizou. Falo dos miseráveis, daqueles que já não contam e sequer são vistos, como se fossem transparentes. As instituições, ou seja, nós, não fizemos a nossa parte no contrato. Abandonamos o indivíduo à própria sorte. Permitimos que ele vivesse em estado de agonia, no sentido winnicottiano do termo. Como acontece com qualquer contrato, o descumprimento por uma das partes faz com que ele fique automaticamente revogado. Entende-se que o miserável possa sentir que já não tem nada a perder. São os que enlouqueceram de dor, com a nossa participação. Isso nos ajuda a entender a violência relacionada à exclusão social.
b. Mas há a situação do sujeito que está excluído do mundo humano por excesso de poder. Assim como o miserável, que está num limbo situado "abaixo" do pacto social, o poderoso também está num limbo, porém "acima" dele. Ele vive numa espécie de Olimpo, numa condição que tem mais a ver com a dos semideuses do que com a de seus pares, que reconhecem e temem a castração. E por isso pautam sua vida pelo contrato.
Não nos enganemos: estar no Olimpo é estar fora do jogo humano. É como jogar pôquer com alguém que dispõe de um cacife infinito. A possibilidade de perder, que é a condição para haver jogo, não existe para ele. E como não está no mesmo plano, mesmo que se sente à mesa, seu jogo não conta para nós. Está excluído.
Da mesma forma que a exclusão do miserável, a do poderoso também pode enlouquecê-lo, ainda que temporariamente. Se o miserável nada tem a perder porque já perdeu tudo, o poderoso não tem nada a perder porque sabe que nada vai lhe acontecer. Pelo menos durante um tempo. E não me refiro apenas aos tiranos. Exemplos não faltam de jornalistas, políticos, empresários, celebridades e líderes populistas que foram enlouquecendo a olhos vistos durante o exercício do poder.
Transferência e loucura
Como vimos, o sujeito pode enlouquecer por estar "acima" do pacto social, excluído do mundo humano por excesso de poder. Mas é preciso reconhecer que o poderoso não se excluiu sozinho do pacto. Assim como acontece com o miserável, nós contribuímos para que o poderoso perca a noção da justa medida. Se ele julga que pode tudo é porque sente que, não importa o que venha a fazer, o grupo não o abandonará. E talvez tenha nisto alguma razão.
O conceito de transferência é decisivo para entender esse processo. Transferência é essa estranha superposição entre passado e presente, entre o infantil e o atual. Ferenczi (1909/1991) mostrou que elementos reais da figura atual - por exemplo, uma postura mais autoritária ou mais acolhedora do analista - convocavam diferentes formas do infantil, e a transferência podia ser paterna ou materna. Além disso, "semelhanças físicas irrisórias - cor dos cabelos, gestos, maneiras de segurar a caneta, nome idêntico ou só vagamente parecido com o de uma pessoa outrora importante para o paciente - bastam para engendrar a transferência" (p. 81). Mostrou ainda que em todo adulto sobrevive a criança e seus complexos, prontos a serem acionados por quem souber despertar a transferência.
A transferência é induzida quando um ou mais traços do objeto ou da situação atual entram em ressonância com os mesmos traços ligados ao infantil - recalcado ou clivado -fazendo com que o sujeito trate esse novo objeto da maneira como tratava a figura parental. Sintetizando: o atual reativa o infantil, e o infantil determina a forma pela qual o sujeito percebe o atual. A situação analítica é o exemplo mais evidente disso. O analista convoca o infantil pelo simples fato de aceitar o paciente em análise, mas sua ética o obriga a não tirar proveito pessoal dessa situação. Quando o analista ocupa o lugar complementar no campo transferencial, ele sabe que é apenas uma necessidade processual temporária.
Seguindo a linha de pensamento de Ferenczi, entendo que um tipo particular de transferência pode ser induzido por um elemento real, o "poder" - que pode ser político, econômico, intelectual ou simbólico (como a beleza da mulher ou a fama da celebridade).
A partir do que foi dito acima, podemos reconhecer na vida cotidiana a atuação de transferências cruzadas e complementares.
a. Complementando a transferência do outro
Caso o analista ocupe de fato o lugar a ele atribuído pela transferência, tomando-a por realidade, interrompe o processo analítico e fixa o paciente na posição da repetição sintomática. Dizemos que ele atuou a contratransferência, entendida como o complemento da transferência. Por exemplo, isso acontece se o analista que está sendo idealizado chegar a pensar que é, de fato, um seio bom cheio de leite para seu paciente-bebê.
Na vida acontece algo semelhante a isso. Quando identificações complementares se reforçam e se potencializam reciprocamente, chega-se ao paroxismo, isto é, à loucura. É o caso da relação que pode se estabelecer entre uma pessoa que tem poder e um cidadão que vou chamar de "comum", para diferenciá-lo daquele que tem poder - e que também é um cidadão comum, só que com algum poder. Com a ideia de transferências complementares começamos a entender como, inadvertidamente, podemos contribuir para que o poderoso enlouqueça.
Sabemos que em todos nós ainda vive, e viverá para sempre, a criança que via seus pais - por projeção da própria onipotência infantil - como seres que podem tudo. Por isso, quando alguém tem poder, e dependendo de como o exerce, esse traço específico pode convocar em nós a criança intimidada que reverenciava e amava suas figuras parentais. Quando isso acontece, o sujeito fica "transferido": passa a sentir, pensar e agir a partir de uma posição identificatória subalterna e subserviente em relação ao poderoso.
A criança-submissa-fascinada em nós pode ser convocada pelo poder do outro, mas isso não é suficiente para que transferências complementares se estabeleçam. Ferenczi (1909/1991) percebeu claramente que a possibilidade de ser hipnotizado depende do sujeito adotar ativamente uma posição regredida (infantil) e passiva em relação ao hipnotizador.
A afirmação parece paradoxal, mas não é. O fato de que nem todos se prestam a ser hipnotizados mostra que o sujeito pode não se colocar na posição infantil. E, de fato, nem todos fazem transferência com uma pessoa só porque ela tem poder.
Assim, o cidadão comum que faz esse tipo de transferência se coloca ativamente - embora inconscientemente - em uma posição de submissão siderada e devoção subalterna. A mídia, por exemplo, muitas vezes parece se colocar nessa posição reverente com as celebridades pelo simples fato destes terem algum poder simbólico.
O poderoso, por sua vez, pode estar cercado de pessoas cuja criança-no-adulto continua procurando, e "reencontrando" nele, a figura parental onipotente. Ele, o poderoso, está bem talhado para ser convocado transferencialmente a ocupar esse lugar. Se ele vai atuar de forma complementar ou não é outra história.
Atuar de forma complementar significa "acreditar" na transferência. Certos líderes, por exemplo, parecem acreditar na transferência popular na medida em que se comportam como se fossem realmente o pai ou a mãe do povo. Eles atuam o complemento da transferência das "massas apaixonadas" (Freud, 1921/1969c), o que pode mantê-las em perpétuo fascínio infantilizado. Caso isso seja feito de forma consciente e deliberada, constitui-se um uso perverso da transferência.
Seja como for, e retomando o início desse argumento, é a partir de sua posição infantil que o "transferido" sinaliza àquele que tem poder que a castração não vale para ele. Ao fazer isso, exclui o poderoso do pacto social e contribui para enlouquecê-lo.
Mas, como veremos agora, é também a partir de uma posição infantil que o poderoso aceita a atribuição de estar acima do bem e do mal, fazendo transferência com os que o cercam e demandando deles admiração contínua. Como exemplo, temos a criança-na-celebridade que passa a precisar dos holofotes reverentes da mídia, isto é, de demonstrações de amor.
b. Transferências cruzadas
Tornando as coisas um pouco mais complexas, nem a simples convocação da criança no outro nem o fato de atuar o complemento da transferência do outro são suficientes para explicar o enlouquecimento do poderoso em certo tipo de campo transferencial. Como veremos abaixo, é preciso também que o poderoso faça sua transferência com a pessoa comum, percebendo-a como uma espécie de "súdito" que lhe deve reverência e amor incondicional.
Em outros termos, o campo no qual ambos - o poderoso e o subalterno - irão enlouquecer é formado por transferências cruzadas: a criança-em-cada-um faz certas demandas ao outro e o convoca a atendê-las. Esse processo, naturalmente, é inconsciente para ambos.
As transferências cruzadas nesse campo seriam as seguintes:
◆ A pessoa comum faz transferência com a pessoa que tem poder, atuando sua criança-submetida.
◆ A pessoa que tem poder faz transferência com a pessoa comum, atuando sua criança-onipotente.
Naturalmente, nem sempre o poderoso faz transferência com a pessoa comum, vendo-a como um "súdito", ou a si mesmo como estando acima do bem e do mal. Mas isso pode acontecer quando certas características reais do objeto atual entram em ressonância com o infantil da pessoa que tem poder.
E que características seriam essas? Justamente o comportamento fascinado e reverente do "transferido". São esses traços reais do objeto atual que podem convocar, na pessoa que tem poder, o narcisismo onipotente de "sua majestade, o bebê". É a partir dessa posição identificatória que ele verá o outro como "súdito". Explico:
A expressão "sua majestade, o bebê" é usada por Freud (1914/1969b) em "Introdução ao narcisismo". Acontece quando, segundo ele, os pais projetam nos filhos o seu próprio narcisismo infantil, esperando que eles realizem o projeto de completude narcísica a que eles mesmos tiveram de renunciar. Depois, felizmente, a vida se encarrega de colocar limites ao narcisismo infantil. Na medida em que a criança os aceita, cumpre sua parte no contrato e começa a fazer parte da comunidade humana.
Mas quando o ambiente volta a sinalizar ao poderoso que ele realmente pode tudo, essa identificação narcísica onipotente vem à tona. É o que acontece quando quem tem poder recebe dos "transferidos" uma mensagem inconsciente semelhante à que o bebê recebe dos pais: "você pode ser /ter tudo aquilo que eu não posso ser/ter".
Sublinho que a atuação da identificação infantil intimidada-subalterna pode convocar no poderoso a identificação infantil "sua majestade, o bebê". Essa identificação pode ser atuada, por exemplo, quando "sua majestade, o bebê" diz ao outro "Você sabe com quem está falando?". Diante disso, o outro pode ficar ainda mais intimidado e subserviente, e assim por diante.
O processo de transferências cruzadas se combina com a potencialização recíproca das identificações complementares poderoso/intimidado, encaminhando-se para o paroxismo. De fato, o campo transferencial criado com a colaboração da criança-no-adulto de ambos acaba por enlouquecer os dois:
◆ De um lado teremos um sujeito desmesuradamente intimidado, subserviente e siderado, cuja atitude exclui o poderoso do pacto social. A partir dessa posição subjetiva, ele não deseja, não se autoriza e não se atreve a sinalizar ao primeiro os limites da sua onipotência.
◆ De outro, temos um sujeito que passa a sentir que pode tudo e que não tem nada a perder. Certo tipo de corrupção é um sintoma da desmesura dessa posição subjetiva.
Para que o poderoso não enlouqueça no exercício do poder é preciso que a sociedade lhe sinalize clara e continuamente, a partir de uma posição subjetiva madura - como vem fazendo cada vez mais -, os seus limites, funcionando como agente da castração. Mais cedo ou mais tarde nos agradecerá. Ou, pelo menos, deveria.
Referências
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Correspondência:
Marion Minerbo
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Tel.: 11 3898-0074
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Recebido em 01/08/2011
Aceito em 22/11/2011