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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.46 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2012

 

RESENHAS

 

Ressentimento terminável e interminável: psicanálise e literatura

 

 

Inês Zulema Sucar

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP

 

 

Luis Kancyper
Editora: Lumen, Buenos Aires, 2010, 253 pp.
Resenhado por: Inês Zulema Sucar

Há que se ter maior rapidez em acalmar um ressentimento que em apagar um incêndio, porque as consequências do primeiro são infinitamente mais perigosas que os resultados do último; o incêndio acaba abraçando no máximo algumas casas, enquanto que o ressentimento pode causar guerras cruéis com a ruína e a destruição total dos povos. (p. 14)
Heráclito de Éfeso (540 a. C.- 470 a. C.)

Esse alerta da Antiguidade parece ter servido de bússola para o autor, que convoca o leitor para acompanhá-lo na fascinante tarefa de sondar os labirintos da natureza humana. Pelo entrelaçamento bem sucedido entre psicanálise e literatura, essa publicação foi declarada como interesse cultural pela Legislatura da Cidade Autônoma de Buenos Aires.

O título do livro, por associação, imediatamente nos remete a Freud e já antecipa a consistente presença dos conceitos psicanalíticos freudianos. Solidamente embasados, estes serão ampliados no texto com contribuições de Klein, Lacan, Green, Winnicott, Baranger e de outros psicanalistas, além dos interessantes posicionamentos do próprio autor. Pensadores como Hanna Arendt, Hegel, Aristóteles, Derrida, Ricoeur são alguns dos que também participam. Kancyper enriquece o conteúdo ao utilizar, como contraponto, produções literárias de Albert Camus, Jorge Luis Borges, Franz Kafka e Sándor Márai.

Luis Kancyper, psicanalista da apa - Asociación Psicoanalítica Argentina, é autor de um grande número de publicações, tendo algumas delas traduzidas para o português e o italiano. Realizou também a compilação e organização de outras importantes obras da psicanálise argentina. Neste volume, temas já abordados em seus artigos e livros são aprofundados e vistos por outros ângulos. A adolescência, as relações fraternas, a confrontação de gerações, o ressentimento e o remorso, ao serem revisitados, ganham nova roupagem.

Ainda que no prólogo o autor proponha inverter a relação habitual entre a obra literária e a psicanálise, fazendo a literatura interrogar a psicanálise até dotá-la de novos instrumentos de escuta e compreensão, percebemos a constante e enriquecedora presença da metapsicologia e da clínica psicanalítica dialogando com a literatura.

O livro, dividido em cinco capítulos, enfoca principalmente o rancor, eleito como afeto-chave para realçar o poder do mesmo no ressentimento, no remorso e no remoer-se - um ruminar indigesto de uma afronta que não cessa -, e é utilizado para abordar essa temática nos personagens que povoam o mundo literário dos vários escritores apresentados e também nas referências da clínica psicanalítica. Isso torna a leitura inquietante, estimulante e prazerosa. O leitor é mantido em suspensão, com sua atenção capturada, o que enriquece e amplia o entendimento dos fragmentos das interessantes produções literárias que ilustram e colocam em pauta os tormentos e conflitos que afligem a alma humana, bem como dos conceitos psicanalíticos que acompanham a compreensão dos mesmos. São explicitadas reflexões e ações que podem ocorrer no indivíduo e nos grupos de relação a que ele pertence.

Ampliando a abrangência das reflexões sobre os temas propostos, surgem questões que envolvem as diferentes possibilidades de tolerar e lidar com a frustração. O autor cita diferentes tipos de memórias. Ao diferenciar as memórias do rancor, do terror e da dor, refere quais são as respectivas repercussões afetivas e as oscilações das mesmas no ser humano e na sua vida relacional. Conhecer o ressentimento, o trauma e a cisão nas suas relações, com a resignificação e a his-torização, que serão abordados e diferenciados, acompanham a trama literária e a compreensão psicanalítica correspondente.

Assim, o capítulo 1, "Ressentimento interminável em comparações fraternas", apresenta a peça teatral de Albert Camus, O malentendido. O início da leitura causa forte impacto emocional e nos conduz a fatos dramáticos. Kancyper realça que essa produção, uma tragédia moderna, abre para a psicanálise uma multiplicidade de sentidos, pela dinâmica fraterna nas relações intrapsíquicas e interpessoais, mas esclarece que irá ater-se em focalizar o espírito fratricida subjacente na dimensão humana, quando nessa relação não foi possível desenvolver a transcendência, a solidariedade e a amizade. Através de Calígula, outra obra de Camus, ainda relacionada à dinâmica fraterna, o conceito de "unicato" é introduzido, termo de base política, pouco conhecido e que o autor traz à luz para apontar os aspectos narcísicos e as fantasias de ser o eleito e único, invencível e imortal, o que em um grupo fraterno pode acirrar a inveja e o ciúmes entre irmãos.

Da obra de Borges, amplamente apresentada na bibliografia, o autor utiliza principalmente "A memória de Shakespeare", um conto crepuscular do literato argentino para, como diz Kancyper, colocá-lo no divã e ilustrar como os personagens borgeanos se remoem, sofrem por remorderem-se de vergonha e culpa, como um pesar interno que produz na alma o ter realizado uma má ação. Embasado no Dicionário crítico etimológico, o autor explicita que:

Remorder, ou morder reiteradamente, provém do latim mordere. Dessa mesma raiz derivam: mordida, mordisco, mordacidade, mordaz (Corominas, 1980). Mordaz denota corrosão, aspereza, causticidade, sarcasmo. Mordaça é um lenço ou instrumento que se aplica à boca para impedir a fala.

O remorder é a inquietude que desperta a lembrança de uma dívida, crescida clandestinamente na escuridão. Dívida singular, repetitiva, que se caracteriza por ser sempre pródiga em novas atormentadas desforras, revertidas sobre a própria pessoa.

Esta dívida põe em evidência o acionar de um castigador interno, que cumpre suas funções de tortura no próprio sujeito, com eficiência e fidelidade, em forma alternada ou permanente (p. 77).

Os personagens de Borges, também como se observa na clínica psicanalítica, adoecem de uma dívida não paga por não terem conseguido satisfazer as aspirações não cumpridas de certos ideais de outros, o que os retêm em relações imaginárias duais. O autor aponta mais na direção paterna, e alerta para a importância nessa dinâmica da observação dos três vértices do triângulo edípico, dos fenômenos progressivos e regressivos e dos entrelaçamentos que prendem o indivíduo na prevalência das relações pré-edípicas sobre as edípicas. Por serem relações parento-filiais alienantes, impedem o indivíduo de chegar à triangulação, podendo o narcisismo parental estabelecer uma relação simbiótica, com suas consequências na vida pessoal de cada indivíduo. O conceito de campo auxilia na compreensão das relações familiares, geracionais e grupais.

Culpabilidade encobridora na obra de Kafka é o capítulo em que o autor propõe reordenar as identificações em Freud e Kafka. Recorre a conceitos winnicottianos para mostrar como os personagens kafkanianos sofreram de déficit no processo de narcisização, sentem-se insignificantes para os pais e pouco investidos do afeto parental por falhas estruturais nas suas vinculações iniciais. Afirma que os mesmos se encontram privados de liberdade em suas realidades psíquica e externa, têm sentimentos de desvalia e que são vistos como os anti-heróis, permanentemente culpados diante do pai. Em virtude disso, não conseguem entender nem valorizar a própria subjetividade, sendo um constante desafio para a teoria e a técnica psicanalíticas, pelos frequentes fracassos que ocorrem nos processos psicanalíticos com pacientes com essa problemática. Pacientes desesperançados, que tentam derrotar e matar o potencial terapêutico do analista. Kancyper chama a atenção para o fato de que o analista pode participar inconscientemente e de forma conjunta nesse embate, com certas "páginas mal encadernadas" de sua própria história, criando-se uma mortífera fantasia inconsciente no campo analítico de dois gladiadores, em que um deve morrer. Além dos textos de Kafka, um exemplo clínico acompanha as considerações sobre o tema.

A novela As brasas, de Sándor Márai, relata o reencontro de dois homens de 75 anos, amigos inseparáveis na juventude, e que estiveram afastados por 41 anos e 43 dias. Desenrola-se numa trama altamente tensa, porém permite uma saída mais otimista e ilustra a possibilidade de como um ressentimento interminável pode se transformar em terminável. Para que isso ocorra, é necessário que profundas capacidades psíquicas de perdão e amizade, superando o rancor, tenham sido desenvolvidas. Ao poder resignificar a dor, é possível estabelecer o luto e permitir aos personagens sobreviverem e liberarem-se de um destino trágico. Essa difícil conquista se dará através da renúncia ao impulso de revidar, na mesma intensidade, o ter se sentido atingido e ferido no seu narcisismo, e buscar a vingança pela injúria sofrida. O tema da fantasia gemelar é abordado para introduzir a proposta de que, em relações dessa natureza, o outro não é investido como um sujeito diferenciado, mas, sim, como se o outro fosse parte de si mesmo, como propôs Freud. O conceito de gêmeo imaginário de Bion também é mencionado. É bastante interessante acompanhar Kancyper rastrear diferentes vértices de conceitos psicanalíticos para ilustrar como esse conto expõe a presença da memória do rancor e da paixão em uma amizade gemelar, nas batalhas e oscilações que ocorrem, flutuando entre o fratricídio e a confraternidade.

Pelo abundante material oferecido, essa publicação poderá servir para consultas. Possui, para facilitar a tarefa, além da extensa bibliografia utilizada pelo autor, um índice de autores, que guiará o leitor na localização do texto citações tanto dos literatos como dos psicanalistas ou dos filósofos. Há também um índice temático, que certamente será útil para situar e retomar os conceitos psicanalíticos. Tomar contato com os temas, transitar entre os textos da literatura, os exemplos da clínica e a elaboração dos conceitos psicanalíticos levarão o leitor a sair enriquecido e a sentir-se estimulado a querer conhecer mais, ou rever de modo acurado, com um novo olhar, tanto a produção literária como as questões psicanalíticas apresentadas.

 

 

Correspondência:
Inês Zulema Sucar
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Av. Doutor Cardoso de Melo 1.450, cj. 203
04548-005 São Paulo, SP
Tel.: 11 3045 1105
inesucar@uol.com.br

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