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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.47 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2013
ARTIGOS
Aspectos primitivos da mente à luz da Carta 521
Primitive aspects of the mind in light of the Letter 52
Aspectos primitivos de la mente a la luz de la Carta 52
Paulo de Tarso Ubinha
Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e membro efetivo do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEPCampinas)
RESUMO
O autor apresenta o conceito psicanalítico de mente primitiva. Remete-nos às fantasias histéricas registradas em traços de memória até os seis meses de idade, ao sonho do Homem dos Lobos, referido à memória de uma cena infantil em torno de um ano e meio de idade, e a certas lembranças encobridoras em que surgem elementos sensoriais de muita nitidez sensorial. Conjetura a hipótese de que todos esses fenômenos sejam explicados pela noção de signos de percepção (Sp ou Wz) da Carta 52. A mente infantil inicialmente funciona em um registro pré-verbal, captando aspectos fragmentários sensoriais do objeto; depois os reúne em representações de coisa e atinge o nível de representações de palavras quando desenvolve a linguagem verbal. Na mente adulta persiste este modo de funcionamento mental primitivo dos signos de percepção. Dois recortes clínicos ilustram esta hipótese: o registro de um sonho composto pela imagem de partes de um corpo (Caso A) e uma sensação corporal de frio, relacionada à frieza dos cuidados maternos (Caso B).
Palavras-chave: mente primitiva; Carta 52; signos de percepção; construção.
ABSTRACT
The author presents the psychoanalytic concept of the primitive mind. He leads us to the hysterical fantasies recorded in memory traces up to the age of six months, to the dream of the Wolf Man, linked to a memory of a childhood scene which occurred at around one and a half years of age, and also to certain screen memories in which arise sensory elements of great sensory acuteness. He hypothesizes that all these phenomena are explained by the notion of signs of perception (Wz or Sp) of the Letter 52. The child's mind works initially in a pre-verbal sensory register, capturing fragmentary aspects of the object and gathering them in thing representations, until the level of word representations is reached when he or she develops verbal language. In the adult mind, the primitive operating mode of the signs of perception continues. Two clinical fragments illustrate this hypothesis: the record of a dream composed by the image of body parts (Case A) and a bodily sensation of cold, associated with the coldness of maternal care (Case B).
Keywords: primitive mind; Letter 52; signs of perception; construction.
RESUMEN
El autor presenta el concepto psicoanalítico de la mente primitiva. Nos lleva a las fantasías histéricas registradas en trazos de la memoria hasta los 6 meses de edad, al sueño del Hombre de los Lobos, vinculado a la memoria de una escena infantil en torno a 1 año y medio de edad, y a ciertos recuerdos encubridores en los que surgen elementos sensoriales de mucha nitidez sensorial. Hace conjeturas sobre la hipótesis de que todos estos fenómenos se explican por la noción de signos de percepción (Sp o Wz) de la Carta 52. La mente infantil trabaja inicialmente en un registro sensorial preverbal, capturando aspectos fragmentarios del objeto; luego los reúne en representaciones de cosa y alcanza el nivel de las representaciones de palabras cuando desarrolla el lenguaje verbal. En la mente adulta persiste este modo de funcionamiento mental primitivo de los signos de percepción. Dos recortes clínicos ilustran esta hipótesis: el registro de un sueño compuesto por la imagen de partes de un cuerpo (Caso A) y una sensación corporal de frío, relacionada con la frialdad de la atención materna (Caso B).
Palabras clave: mente primitiva; Carta 52; signos de percepción; construcción.
Conceito de mente primitiva
A partir do pressuposto de que haja um processo de desenvolvimento mental, tanto em nível individual como cultural, mente primitiva refere-se aos primeiros estágios de desenvolvimento mental, seja de um indivíduo, seja de uma cultura. Freud, em "Totem e tabu" (1912-1913/1974), nos fala da mente primitiva dos povos, portanto em um critério antropológico cultural, mas também utiliza a expressão para se referir à mente infantil.
Talvez, em um sentido mais estrito, em psicanálise, a referência mais comum se atenha à concepção de um processo de funcionamento mental do indivíduo, mais especificamente, do analisando, do qual se inferem os estágios evolutivos dos processos mentais desde a infância.
Isso implica situar o conceito psicanalítico segundo um critério clínico, do qual se infere uma teoria do desenvolvimento mental, em termos psicogenéticos (contribuição da psicanálise à psicologia evolutiva).
Embora a predominância do critério clínico, não se deve entender que mente primitiva nos remeta ao conceito de mente patológica ou de patologia mental, ainda que possamos considerar que um funcionamento mental patológico possa trazer resquícios de um estágio evolutivo anterior que interfere no funcionamento atual da mente.
O fato de a linguagem se desenvolver mais tardiamente à própria compreensão de modos não verbais de comunicação também apoia a ideia de um funcionamento mental mais primitivo, entendido como uma fase anterior ao estabelecimento do pensamento verbal. Neste sentido, fala-se em comunicação mental primitiva para apontar para uma época em que a comunicação entre a criança e o mundo, e especialmente com a mãe, se faz de forma não verbal.
Aspectos do conceito em Freud
Na Carta 59 de sua correspondência com Fliess, já em 1897, Freud (1950/1977) se refere à existência de fantasias histéricas, remontadas a coisas ouvidas pelas crianças na mais tenra idade, surpreendentemente dos seis aos sete meses em diante, e só compreendidas mais tarde. Essas fantasias histéricas, que remontam a coisas ouvidas pelas crianças em idades tão recuadas, só virão a ser compreendidas mais tarde, ou seja, acrescentamos nós, compreendidas après-coup, por posterioridade. Em nota de rodapé, o editor nos remete à confrontação com a observação da relação sexual entre os pais pelo Homem dos Lobos, quando tinha um ano e meio de idade.
Freud não o diz, mas julgamos legítimo retomar a Carta 52 (1950/1977) e postularmos que aqui se trata de uma forma de registro pré-verbal, correspondente aos signos de percepção (Wahrnehmungszeichen). A resposta do Homem dos Lobos a essa cena traumática teria sido a evacuação, que mais tarde estaria na base de um de seus sintomas psicossomáticos. Temos aqui, pois, a nosso ver, a descrição da linguagem infantil pré-verbal, em que a percepção se faz fragmentariamente pelos signos de percepção, meras "indicações de realidade", e se expressa por mecanismos primitivos de natureza corporal, a atuação psicossomática (descarga no corpo do excesso de estimulação mental). A descrição da experiência da dor no "Projeto" (1950[1895]/1977) mostra-nos que, em Freud, o psicossomático está na origem. As primeiras experiências só se podem expressar e comunicar por meio das vias motoras e secretórias do choro; mas elas também já encontraram uma manifestação mais primitiva através da experiência da angústia, descarga no corpo por vias vegetativas somato-viscerais: pulsação cardíaca, ritmo respiratório, sudorese, abalos motores, traduzidos no linguajar do paciente como queixas de palpitação, falta de ar, suores e tremores.
Na Carta 52, Freud coloca a hipótese de diferentes níveis de inscrição das experiências no aparelho mental, reconhecendo pelo menos três:
(1) Signo de percepção (Wahrnehmungszeichen);
(2) O inconsciente, grafado como Ics ou Ub (Unbewusstsein);
(3) O pré-consciente, grafado como Pcs ou Vb (Vorbewusstsein).
Na visualização do esquema, tal como desenhado na Carta 52, fica-se surpreendido, como sinaliza com propriedade Laplanche (1993), por encontrar, antes do inconsciente (Ics), um sistema de inscrição que lhe é anterior, mas que, como o próprio Freud estabelece, não tendo possibilidade de acesso à consciência, é também inconsciente.
No primeiro nível, esses depósitos perceptivos se inscrevem por simultaneidade, como restos metonímicos, segundo Laplanche.
Se tomamos as duas primeiras linhas da Figura 9 desta carta, vemos que, no período de vida de zero a quatro anos, o sistema notacional é Wz, signos de percepção, o que corresponde a inscrições por simultaneidade ou contiguidade, ou seja, algo correspondente a uma linguagem metonímica pré-verbal, que só poderia ser expresso por resíduos mnêmicos fragmentários ou sensações erógenas isoladas.
Detendo-nos mais detalhadamente neste quadro, vemos que, nos períodos seguintes, continua presente o símbolo Wz: na faixa etária entre quatro e oito anos operam as inscrições Wz + Ub, e na faixa seguinte, todas elas, Wz + Ub + Vb. Embora a cronologia na segunda linha seja discutível, retemos a ideia de diferentes períodos de desenvolvimento na primeira linha do gráfico.
Em outras épocas do desenvolvimento mental aparecem outras formas de inscrição Ub e Vb (ou Ics e Pcs), mas é de se notar que uma forma de inscrição mais tardia não implica o cessar das outras, o que nos leva a pensar que, mesmo na idade adulta, em determinadas circunstâncias, a mente pode funcionar em registros mais primitivos.
É possível que a plena luz da consciência diurna e cotidiana exerça uma fiscalização que só a penumbra da noite logra ludibriar, permitindo a emergência das formas de funcionamento mental mais precoces, reveladas no produto bizarro, enigmático e confuso dos sonhos. É assim que surgem nos sonhos imagens que atestam o funcionamento por meio de signos de percepção, como veremos no fragmento clínico do Caso A.
É bem verdade que Freud, na Carta 52, adverte que o signo de percepção "é praticamente incapaz de assomar à consciência" (Freud, 1950/1977, p. 318). Neste caso, não poderiam ser lembrados, apenas construídos, como aconteceu no caso do Homem dos Lobos, e isso ficará definitivamente posto no texto tardio "Construções em análise" (Freud, 1937/1975).
Todavia, segundo nos parece, "praticamente incapaz" não implica uma declaração peremptória de total impossibilidade de surgimento dessas inscrições à consciência, e nisso manifestamos nossa concordância com Laplanche:
Mas, às vezes, pederíamos dizer: o inconsciente retorna em pessoa; retorna de maneira aluci-natória, e sob que forma? Sob a forma de resíduos por contiguidade, resíduos metonímicos. Em outras palavras, não é a lembrança da infância que retorna, mas este ou aquele pequeno traço ligado, por contiguidade, a essa lembrança - a cor de um objeto, a disposição de um quarto, um odor, um afeto... a lembrança mesma não retorna (1993, p. 40).
Essa forma de impressão fragmentária, metonímica, será exemplificada no primeiro recorte clínico deste trabalho.
Em "Lembranças encobridoras" (1899/1976), Freud descreve as lembranças ultraclaras (überdeutlich), exemplificadas pela cor amarela do vestido de Gisele Fluss, na recordação encobridora apresentada no artigo em questão, a qual pode corresponder a um Sp (Wz).
De que natureza seriam as inscrições neste registro inicial de Wz? Não encontraremos uma resposta explícita a essa questão em Freud, e teremos de deduzi-la a partir de outros textos freudianos que, embora sem menção direta aos signos de percepção, permitem fazer a inferência por algumas características típicas deles. Destaca-se entre estas o seu caráter metonímico, correspondente, na linguagem associacionista empregada por Freud na época, aos fragmentos de memória resultantes das associações por simultaneidade e contiguidade.
Na publicação oficial de sua obra, a precocidade das experiências infantis é apontada na reconstrução do sonho do Homem dos Lobos, revelando a observação do coito dos pais na posição a tergo, com apenas um ano e meio de idade (Freud, 1918[1914]/1976). Neste trabalho, Freud elabora suas interpretações não com base na rememoração de um fato, mas por meio de uma construção, a partir de detalhes suscitados pelo processo de livre associação do Homem dos Lobos sobre a narrativa de um sonho tardio, posterior à data da cena primária, ocorrido pela primeira vez aos quatro anos de idade.
Ainda nesta narrativa de uma neurose infantil, Freud assevera que o funcionamento mental de uma criança tem características próprias e não se pode falar em uma separação nítida e bem delimitada entre consciente e inconsciente, como no adulto, nem mesmo se tem um pré-consciente propriamente dito, pois se encontra em formação, na medida em que a linguagem verbal está em desenvolvimento. O pré-consciente, como estabelecido no artigo metapsicológico sobre o inconsciente (Freud, 1915/1974), é constituído por representações de palavras. O que emerge como uma percepção na consciência de uma criança tem aspectos bem distintos da percepção consciente de um adulto, pelo fato de que esta demarcação entre o que é consciente e o que é inconsciente não fica bem diferenciada na mente infantil.
Se retornarmos à Figura 9 da Carta 52, nela veremos que o que ocorre no primeiro período do desenvolvimento fica submetido ao registro Wz e a nenhum outro. Portanto, podemos concluir que essas fantasias tão recuadas cronologicamente só podem ter sido inscritas como signos de percepção, e só a posteriori viriam a encontrar outro tipo de transcrição que permitisse sua rememoração consciente. Neste ponto, concordamos com Roudinesco e Plon, em seu Dicionário (1998), quando assinalam que para Freud só há uma noção de fantasia, mas ela pode se inscrever em diferentes registros, sofrendo traduções ao passar de um a outro. Assim, a diferença entre fantasia inconsciente ou consciente está somente em uma questão de nível de inscrição da cena a que se referem.
Retomamos a observação de Freud logo no início de sua Carta 52, de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas é registrada em diferentes espécies de indicações ou, mais apropriadamente, de signos, desdobrando-se em vários tempos.
Ora, isso permite entender claramente que a inscrição Wz do período inicial da vida mental jamais desaparece, mas continua operante pelo resto da vida. Em todos nós persiste esse nível de registro de experiências e penso que isso pode ser provado pelo material de certos sonhos trazidos por nossos pacientes adultos (cf. ilustração clínica adiante), em que figuras fragmentárias ou meras sensações ou impressões sensíveis ultraclaras, muito vívidas, denunciam sua origem neste estrato mais profundo da atividade mental.
O que se passa antes do Ub (Ics), instituído pelo recalque primário?
Recuando ao "Projeto" (1950[1895]/1977), aqui podemos identificar a experiência de satisfação primordial, da qual surgirá a experiência do desejo ( Wunsch), sempre buscando recuperar o primeiro objeto de satisfação, em uma busca interminável e frustrante, pois o pleno gozo jamais será alcançado. A reativação da marca - Wz, conforme entendemos - da primeira experiência de satisfação se faz alucinatoriamente (satisfação aluci-natória do desejo), segundo a regência do princípio do prazer, até que venha a se impor o princípio da realidade, levando à procura do objeto externo capaz de oferecer essa satisfação real de desejo buscada.
Mas essa primeira inscrição não se faz como um engrama, uma cópia do objeto de satisfação, mas pela retenção de aspectos parciais do objeto, segundo associações de simul-taneidade e contiguidade. São resíduos mnêmicos: o cheiro da mãe, o calor de seu colo, o gosto do leite, uma tonalidade, sensações táteis prazerosas...
No próprio texto da Carta 52, Freud descreve experiências remotas, só passíveis de terem uma inscrição de sinal perceptivo, contando o caso de um paciente que ainda choramingava durante o sono, como o fazia no colo da mãe, falecida quando ele tinha vinte e dois meses. Aqui temos um ato onírico remetendo a uma sensação infantil pregressa. O que está manifesto ao nível consciente como um sintoma pode deitar suas raízes nas profundezas dos signos de percepção. É de Freud o exemplo de um paciente com ataques de sono (narcolep-sia), cuja causa se referia a "algo de sexual" que lhe foi feito durante o sono.
Generalizando, ele atribui certos ataques de vertigem ou de choro ao apelo a uma pessoa pré-histórica inigualável e inesquecível, cujos primeiros traços mnêmicos estão no mais primitivo dos registros.
Algumas características podem ser arroladas, de tudo que ficou aqui reunido, como material que aponta para as primeiras inscrições:
(1) O fato de as lembranças atuais a que se referem aparecerem como fragmentos de cenas ou partes do corpo ou de uma coisa;
(2) O fato de essas lembranças surgirem de forma muito vívida, "ultraclaras";
(3) O fato de serem inacessíveis à consciência do sonhador, a não ser desta forma fragmentária, sendo necessário um trabalho de construção para resgatá-las;
(4) O fato de geralmente serem de natureza visual, podendo ter também o caráter da sensação de um cheiro ou de um gosto inexplicáveis, assumindo um aspecto alucinatório;
(5) O fato de, sendo experiências parciais, representarem um todo, o que marca sua natureza de linguagem metonímica.
Todos esses fatos reiterados nos permitem estabelecer uma espécie de lei de funcionamento da primeira inscrição ou Lei da Wz, que me atrevo a enunciar como segue:
Toda vez que uma lembrança apresentar-se à mente, seja como sintoma, imagem onírica, parapraxia, chiste ou recordação encobridora, na forma de um fragmento de intensa vivacidade sensorial que, enquanto linguagem metonímica, remete a um signo de percepção (Wahrnehmungszeichen), podemos identificar a operação mental do primeiro nível de inscrição das vivências emocionais, geralmente intensas e somente acessíveis a um nível de inscrição subsequente como resíduos mnêmicos, que requerem tradução por um processo de construção.
Resta indagar: por que é necessária a construção? A resposta é que o simples acesso ao primeiro nível de inscrição não é capaz de despertar uma lembrança completa porque, neste nível, jamais se inscreve uma cena total, mas sensações isoladas ligadas entre si por mera contiguidade ou simultaneidade. A ligação causal só se faz no segundo registro (Ics/Ub), e a tradução verbal apenas no terceiro e último (Pcs/Vb). Como se pode notar, esse é o trajeto de um processo de simbolização a partir da mais primitiva forma de expressão e comunicação pré-verbal até a retradução em palavras: dizer o indizível, falar sobre o que não alcançou inscrição verbal.
Ilustrações clínicas
Caso A
Informações pertinentes (antecedentes históricos do caso): um rapaz descreve um caso de amor tórrido com uma jovem, que quase pôs em risco seu noivado; ainda que com dificuldade, ele optou por manter o compromisso com sua noiva.
Em uma sessão subsequente, traz um sonho.
Antecedentes do sonho: foi a uma festa com sua noiva e lá encontrou a moça com quem tivera aquela paixão intensa. Ela estava provocadora, insinuando-se para os homens, em atitude sedutora até para com o anfitrião. Achou que ela também o provocava, mas ele mal podia olhá-la, pois estava acompanhado da noiva. Lembra-se bem dela dançando, de seus exageros, sua atitude erótica.
O sonho: após contar sobre a festa, diz que teve um sonho muito curto, em que só aparecia um traseiro e uma cara, e ele imaginava-se tendo relações anais e orais. A cara era indistinta. A seguir, veio a imagem de seu irmão. Enquanto tinha o sonho, ficou muito excitado e teve uma polução, o que o deixou envergonhado.
Antes do relato deste sonho, depois de descrever a festa, diz que sua noiva o elogiou pela maneira como ele reagiu, pois ela notara como fulana se comportara e como ele não se deixou capturar pelas insinuações da tal moça. Na verdade, confessa-me agora, a moça também o excitara, e muito, mas ele disfarçou bem; conseguiu controlar seus impulsos. No dia seguinte, porém, não conseguia deixar de pensar nela, e com muito desejo. Foi terrível; não alcançava afastá-la da mente.
Interpretação: embora conscientemente e por sua vontade racional tivesse afastado a moça sedutora, inconscientemente ele ainda mantinha uma excitação erótica forte, que se traduziu no sonho pelas figuras do traseiro e da boca com que fazia sexo - possivelmente, partes do corpo da dançarina sensual que o excitavam durante a dança, a se ressaltar ora a parte de trás, ora a boca, ora um pedaço de perna, ora os seios.
O rapaz confirma que, de fato, como não pudesse fixar o olhar na figura dançante da moça, pois sua noiva poderia perceber, ele dava umas olhadas furtivas, e as coisas apareciam só em pedaços, como flashes.
Comentários: o traseiro e a cara, no sonho, seriam "signos de percepção" (Wahrnehmungszeichen)?
O que pretendo discutir é se a apresentação, no sonho, das figuras de partes do corpo não reproduz um modo de funcionamento primitivo, que nunca deixa de estar presente na mente de todos nós e que se traduz pela construção de pedaços de sensações, de que resulta algo fragmentado - às vezes, simples coloridos, sons, odores ou um gosto na boca, referidos por nossos pacientes. Esses fragmentos podem remeter-nos a experiências passadas, passíveis não de serem recordadas, mas reconstruídas pelo trabalho analítico.
São apenas signos de percepção, que não deixam traços mnêmicos; são "restos metonímicos", como diz Laplanche (1993), um modo de funcionamento mental que antecede a aquisição da fala pela criança, mas que não desaparece na mente adulta, podendo esta funcionar eventualmente neste registro de inscrição. Isto pode ocorrer nos psicóticos, mas também em qualquer pessoa normal, durante estados especiais de consciência: nos sonhos, nos devaneios, em um estado regressivo propiciado pela sessão analítica, mediante a livre associação do paciente e o estado de abstinência do analista - não se impregnar pelos seus desejos e suas próprias memórias, como enfatiza Bion (1963/1966), fazendo eco às recomendações técnicas de Freud. Não se trata de regredir a uma lembrança do passado, mas de a mente funcionar de um modo regressivo.
Caso B
A paciente queixa-se de que vem se sentindo fria - os pés, as pernas, as mãos, a barriga. Foi ao ginecologista, que lhe disse ser um problema de origem emocional e lhe prescreveu um ansiolítico.
Foi também ao endocrinologista, pois come pouco e não emagrece, e este esclareceu que não adiantava fazer dieta ou tomar remédios para diminuir o apetite porque deveria ter algum problema psicológico, visto que com pessoas que têm esse tipo de problema costuma acontecer isso, de não comer e não emagrecer.
Indaga o que fazer, pois já está em terapia, toma consciência dos conflitos e procura resolvê-los. Nada respondo, embora seja óbvia a resistência transferencial sob a forma de censura crítica à ineficácia da psicoterapia e/ou do terapeuta.
Conta que está tendo outra compreensão sobre sua mãe. Ela a perdeu aos oito anos de idade, talvez por isso seja difícil construir vínculos - acabou de fazer, precisamente, um ataque ao vínculo terapêutico. A mãe, pelo que se lembra, não tinha uma amiga; quando ficava brava com ela, deixava de falar-lhe durante dias; o mesmo fazia com o marido, pai da paciente, quando se desentendiam.
- Ela a punha no gelo - assinalo.
Sem me responder, prossegue, discursando sobre aspectos de sua relação com a mãe, ficando claro que tinham um relacionamento distante - e ficando implícito que culpa a mãe, que a castigava com o silêncio, que era incapaz de ter amigas e que parecia não se importar muito com ela.
Digo-lhe que, no linguajar comum, usamos a sensação de frio para falar de uma relação fria e distante, e ela me conta como a mãe a "punha no gelo". Isto é muito diferente da atmosfera calorosa de um lar, do aquecimento de um bebê - logo que nasce, ao ser envolvido em panos -, do contato das pessoas, pele a pele.
Ela se emociona e, chorando amargamente, conta que, quando criança, às vezes, depois de brincar, sentia frio ao entrar na sua casa, de uma forma que nunca mais sentiu ao entrar noutras casas.
- Frio que você agora sente em seu corpo, na sua própria casa de carne e osso...
Ela se admira dessas coisas e me diz que nunca lhe havia ocorrido fazer associação entre o frio e a relação distante de sua mãe.
- Mas em seu corpo fizeram-se essas associações, de forma inconsciente. Esse tipo de ligação nem sempre os médicos fazem, mas os poetas sabem falar muito bem disso, da temperatura das emoções, da frieza dos relacionamentos.
Ela sorri, aliviada.
Comentários: essa curiosa linguagem dos órgãos sempre nos surpreende, embora sejam inúmeras as expressões que indiquem sentimentos através do corpo: sentir um aperto no peito, um nó na garganta, um frio na barriga, um arrepio de terror, o estômago embrulhado (nojo), a cabeça estourando (raiva, preocupação) etc. Rapidamente tomamos como mero sentido figurado e minimizamos o caráter expressivo das emoções que essas alusões ao corpo sinalizam. Essas construções verbais perdem seu significado afetivo e, por via desse esvaziamento, referem-se ao corpo para justamente negar um sentimento penoso, uma dor insuportável, uma emoção condenável. Uma escuta analítica cuidadosa pode recuperar estes vínculos perdidos e fazer aflorar a emoção expelida, com um efeito catártico notável, como se nota nesta vinheta clínica.
Sigamos os movimentos da sessão: inauguram-se com a queixa da sensação física de frio nos pés, pernas, mãos, barriga e o diagnóstico médico de se tratar de problema emocional. Já estava implícito que também se queixa do psicoterapeuta: se a paciente está fazendo terapia, como lhe ocorrem sintomas de origem emocional? A cobrança insiste através da reiteração, com outro exemplo: não come e não emagrece e o endocrinologista atribui o fato a questões psicológicas.
De novo! Então, para que serve a psicoterapia? Ela não o diz desta forma, mas o faz indiretamente, suavizando a interpelação com uma pergunta: o que fazer? Já faz terapia, toma consciência dos conflitos e tenta resolvê-los. Quer dizer, a parte dela ela faz, mas de que lhe serve tudo isso?
Resolvo aguardar, em vez de lhe apresentar essa interpretação, talvez por pressentir que soaria como retaliação - ou talvez fosse mesmo, espécie de atuação do analista através da interpretação de suas próprias emoções em estado bruto, não digeridas; resistência do analista!
A verdade é que essa contenção provou ser continente, tanto que a paciente livremente traz uma recordação infantil em que surgirá exatamente a frieza da mãe, sem amigas, que punha a ela e ao pai "no gelo", usando o silêncio, corte da relação, como castigo.
O breve comentário que fiz - "Ela a punha no gelo" - passa batido, talvez em função de uma rejeição ou por não lhe ser possível aceitá-lo tão prontamente. Também há a possibilidade de que a forma abreviada e direta da frase funcione como uma estocada, algo intrusivo, que é prontamente afastado, dada a intensidade da dor que pode provocar.
No entanto, continua no mesmo assunto, o significado insiste e só será plenamente capturado mediante uma interpretação mais empática do analista, que agora sim pode ser assimilada, compreendida e abreagida emotivamente.
Não se trata de metáforas, sempre possíveis de translação de sentido, mas de uma linguagem corporal sob a forma de signos de percepção (Wz), que resistem à intelecção pela interpretação verbal, requerendo uma revivescência emocional libertadora do jugo da marca corpórea. No dizer de Babo (2001), o corpo alia uma indeterminação sempre flutuante entre a dimensão semiótica que o atravessa e a dimensão emotiva que o movimenta.
A resistência dos sintomas psicossomáticos à interpretação verbal deve-se, segundo pensamos, ao fato de os signos de percepção acontecerem em um período anterior à linguagem, de forma que, embora tenham a natureza de signos, não dispõem de representações-palavra para traduzi-los. Comportam-se como significantes flutuantes, o correspondente linguístico do Reprüsentanz freudiano.
Para que produzam efeito terapêutico, as interpretações de sintomas psicossomáticos não devem cingir-se à mera tradução, mas reproduzir uma interação analista-anali-sando similar à relação mãe-bebê, sendo o analista avatar da figura materna, o cuidador experiente capaz de promover a elucidação empática do sofrimento do paciente (Freud, 1950[1895]/1977).
Conclusão
Os dois casos clínicos apresentados postulam a permanência do pensamento primitivo no nível das primeiras inscrições (Niederschrift), que poderão ser transcritas (Umschrift) em outros registros. Acreditamos que outros autores psicanalíticos se aproximaram desta noção dos processos mais precoces do desenvolvimento mental, como fazem pensar os conceitos de ideograma (Bion, 1934) e pictograma afetivo (Aulagnier, 1979). Winnicott fala da catalogação, registros mnêmicos especialmente sensoriais; embora lhe atribua um papel mais patológico, faz a ressalva de que a catalogação pode ser uma ação benéfica, desde que dure apenas o suficiente para dar conta momentaneamente de uma desordem ambiental. Mas mesmo assim ele afirma que se trata de uma maneira especialmente falsa (Abram, 2007). Já nos referimos aos traços metonímicos originários, de Laplanche (1993).
Os artistas podem ser sensibilizados por signos perceptivos e traduzi-los em suas obras: o fulgor das cores de Van Gogh, o abstracionismo de Malevitch em sua simplicidade extrema, como Branco sobre branco, Quadrado vermelho e Quadrado negro sobre branco; no cinema, o monocromatismo vermelho da tela na transição entre algumas cenas de Gritos e sussurros, do cineasta Ingmar Bergman, são exemplos de expressões no nível da primeiridade de Peirce (2005). São qualissignos icônicos remáticos: coloridos (vermelhidão, brancura) que remetem a um objeto, ainda que indeterminado, de que constituem a essência, como possibilidade lógica (pode ser isso ou aquilo).
O signo, no nível da primeiridade, abre-se para muitas possibilidades lógicas de interpretação e se aproxima do conceito de significante flutuante (Lévi-Strauss, 2003) ou significante primordial (Lacan, 1966), o equivalente ao Reprüsentanz de Freud (1915/1974).
A presente questão do irrepresentável pode encontrar apoio na concepção dos signos perceptivos, nome mais apropriado do que indicação de realidade, traço ou marca mnêmica, pois está mais próximo do polo sensorial e, insiste Freud, não se deve confundir memória e percepção. Como se produzem essas inscrições primeiras não o sabemos.
Para responder à questão sobre o que pode haver antes do inconsciente não é adequado, segundo pensamos, falar em filogênese quando nos referimos às fantasias originárias, pois estas de fato se reportam, em "Totem e tabu" (Freud, 1912-1913/1974), a uma antropo-gênese mitológica, assentada na castração original pelo pai despótico e no crime inaugural do parricídio, que persiste na cultura totêmica sob formas simbólicas. Trata-se, pois, de um fenômeno de linguagem.
Mas há em Freud algo que remonta verdadeiramente ao biológico, enquanto entendido como um processo histórico natural, portanto, evolutivo e genético. É o que aparece na ideia de repressão orgânica, aventada nas Cartas 55 e 75 (Freud, 1950/1977), cuja ausência explicitaria certas perversões bastante primitivas, como o prazer experimentado pelo cheiro do cabelo, do suor e dos excrementos (fezes e urina), ou ainda pelo odor do sangue. Insiste-se, como se vê, no modelo de que onde falta a repressão, surge a perversão, sendo esta o negativo da neurose.
A repressão orgânica estaria relacionada ao alcance da bípede estação do homem, que, afastando seu nariz do chão, promoveria o apagamento da fruição dos odores captados pelo aparelho de olfação a partir do solo. Ela estaria assim ligada a um processo evolutivo que bloqueou o prazer emanado das sensações mais elementares do olfato e do gosto, fazendo aparecer em seu lugar os sentimentos de repugnância. Nos animais esta inibição não se nota, bem como nas crianças, que brincam com as fezes e tudo levam à boca, sem nenhum sentimento repulsivo, justificando o atributo de perverso polimorfo para caracterizar a sexualidade infantil.
Os órficos diziam soma-sema para significar que o corpo era um túmulo (sema). Mas Platão, no Crátilo, joga com o duplo sentido das palavras "soma" e "sema" ao considerar que, se por um lado o corpo é sepultura, por outro tem o significado de sinal, pois através dele a alma se expressa (Santos, 1999).
A atualidade supratemporal de Platão nos permite reafirmar que corpo = sema, base de nossa pretendida - espero não pretensiosa - psicossemática psicanalítica, que postula o corpo como algo vivo e significante. Mesmo o corpo falecido de um cadáver pode ser diversamente significado por um interpretante.
Referências
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Aulagnier, P. (1979). A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado (M. C. Pellegrino, trad.). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
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Correspondência:
Paulo de Tarso Ubinha
Avenida Engenheiro Carlos Stevenson, 508
13092-132 Campinas, SP
Tel.: (19) 3253-7173
ptgoog@gmail.com
Recebido em 3.12.2012
Aceito em 8.2.2013
1 Artigo baseado no trabalho aprovado pelos sponsors da International Psychoanalytical Association (IPA) junto ao GEPCampinas para promoção a membro efetivo em 2012.