Services on Demand
article
Indicators
Share
Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo Sep./Dec. 2014
ARTIGOS TEMÁTICOS: SEXUALIDADE E GÊNERO
De adultos a crianças: análise retrospectiva e psicanalítica de serviço ambulatorial de população com disforia de gênero-transtorno de identidade de gênero-transexualismo
From adults to children: retrospective and psychoanalytic analysis of outpatient services of the population with gender dysphoria, gender identity disorder and transsexualism
De adultos a niños: análisis retrospectivo y psicoanalítico de servicio ambulatorio a población con disforia de género-trastorno de identidad de género-transexualismo
Maya Espínola FoigelI; Daniel Augusto Mori GagliottiII; Alexandre SaadehIII
IPsicóloga, psicodramatista, psicanalista, psicóloga responsável por adultos e crianças do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS-NUFQR-IPq-HCFMUSP), pesquisadora do LIM-21 HCFMUSP
IIPsiquiatra, médico preceptor da residência em Psiquiatria do IPq-HCFMUSP, psiquiatra responsável do AMTIGOS, psiquiatra do CAPS AD II Vila Madalena
IIIPsiquiatra, psicodramatista, médico supervisor do serviço de psicoterapia do IPq-HCFMUSP, coordenador do AMTIGOS-NUFOR-IPq-HCFMUSP, professor doutor no curso de Psicologia da FACHS-PUC-SP
RESUMO
No Brasil, foi após 1997, com a publicação da padronização do Conselho Federal de Medicina, que o acompanhamento e o tratamento da população transexual se tornaram mais intensivos. O Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual - Amtigos, do Nufor-IPq-HCFMUSP foi criado em 2010; nele, pacientes com disforia de gênero são tratados seguindo as orientações da World Professional Association for Transgender Health (WPATH), adaptadas à realidade sociocultural brasileira. O Amtigos promove triagens multidisciplinares, atendimento médico psiquiátrico e psicoterapia para pacientes adultos e, mais recentemente, para adolescentes e crianças trazidos por familiares que buscam orientação e tratamento. Nossa proposta consiste em uma abordagem transdisciplinar com base em nossa experiência, para que seja provida adequada assistência psicológica, psiquiátrica e acompanhamento psicoterápico a esses pacientes. Não se trata de tutoria, mas sim de um desenvolvimento conjunto de responsabilidades por todo o processo.
Palavras-chave: transexuais; psicoterapia; transdisciplinaridade; assistência; psiquiatria.
ABSTRACT
In Brazil, it was after 1997, with the publication of the standardization of the Federal Council of Medicine, that the care and treatment of the transsexual population became more intensive. The Sexual Orientation and Gender Identity Disorder Outpatient Unit AMTIGOS-NUFOR-IPq-HCFMUSP was established in 2010; there, patients with gender dysphoria are treated following the orientations of the World Professional Association for Transgender Health WPATH, adapted to the Brazilian social and cultural reality. The amtigos promotes multidisciplinary selections, mental health care and psychotherapy for adults and, more recently, adolescents and children brought by family members seeking counseling and treatment. Our proposal consists of a transdisciplinary approach based on our experience in order to provide adequate psychological, psychiatric and psychotherapeutic assistance for these patients. It is not about tutoring, but a joint development of responsibilities for the entire process.
Keywords: transsexuals; psychotherapy; transdisciplinarity; assistance; psychiatry.
RESUMEN
En Brasil, fue después del 1997, con la publicación de la estandarización del Consejo Federal de Medicina, que el seguimiento y el tratamiento de la población transexual se tornaron más intensivos. El Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual AMTIGOS-NUFOR-IPq-HCF-MUSP fue creado en el 2010; en él, pacientes con disforia de género son tratados siguiendo las orientaciones de la World Professional Association for Transgender Health WPATH, adaptadas a la realidad sociocultural brasileña. El amtigos promueve evaluaciones multidisciplinarias, atención médica psiquiátrica y psicoterapia a pacientes adultos y, más recientemente, a adolescentes y niños traídos por familiares que buscan orientación y tratamiento. Nuestra propuesta consiste en un abordaje transdisciplinario basado en nuestra experiencia para que se proporcione una adecuada asistencia psicológica, psiquiátrica y seguimiento psicoterápico a esos pacientes. No se trata de tutoría, sino de un desarrollo conjunto de responsabilidades por todo el proceso.
Palabras clave: transexuales; psicoterapia; transdisciplinaridad; asistencia; psiquiatría.
Introdução
Em 1995, alguns raros transexuais procuravam o Projeto Sexualidade, hoje conhecido como Programa Sexualidade (Prosex), da Profa. Dra. Carmita Abdo, no Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Ainda não havia sido publicada, nessa época, a Resolução 1.482 do Conselho Federal de Medicina, que regula o processo transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Esse fato aconteceria somente em 1997 e, até então, pouco ou quase nada podia ser feito por essa população no Brasil; no máximo, a psicoterapia - uma das únicas intervenções possíveis para que o indivíduo transexual pudesse compreender sua condição e viver mais confortavelmente a frustração de que nada lhe seria oferecido em termos de saúde e transição de gênero no âmbito do SUS.
Com a publicação da Resolução, tudo começa a mudar: foi oferecida ao dr. Alexandre Saadeh, supervisor de residentes no atendimento das mais variadas problemáticas sexuais, a possibilidade de estabelecer um ambulatório dentro do Prosex específico para essa população, o qual funcionou até 2007. A partir daí, por discordância de condutas, Saadeh se desliga do Prosex e, em 2010, organiza e coloca em funcionamento o Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) do Núcleo de Psicologia e Psiquiatria Forense (Nufor) do IPq-HCFMUSP. Com proposta transdisciplinar, ou seja, que não só promova uma visão de trabalho que vá além das especificidades de cada área do conhecimento mas que produza uma visão integrada, o Amtigos inicia seu trabalho com a população adulta. Com a projeção do tema e do ambulatório, bem como com o maior interesse e divulgação social, os profissionais do Amtigos são convidados pelos mais diversos meios de comunicação para falar sobre tal assunto. Em 2010, inicia-se uma demanda por avaliação e acompanhamento de adolescentes, e posteriormente, em 2011, chega a primeira criança para realizar triagem e avaliação.
Seguindo as orientações propostas pela World Professional Association for Transgender Health (WPATH, 2012), adaptadas para a realidade brasileira, o Amtigos, até janeiro de 2014, realiza 250 triagens e conta com uma população de 209 adultos (83,6%), 33 adolescentes (13,2%) e 8 crianças (3,2%). Temos 156 indivíduos (62,4%) que preenchem o diagnóstico para disforia de gênero: 50% de mtfs (male to female) e 12,4% de FTMS (female to male) (Foigel, Gagliotti & Saadeh, 2014; Gagliotti, Foigel & Saadeh, 2014; Saadeh & Gagliotti, 2014). O protocolo adotado para transexuais adultos envolve uma primeira triagem psiquiátrica, seguida por uma entrevista psiquiátrica. A seguir, realizamos uma avaliação psicológica e discussão do caso com a equipe multidisciplinar do ambulatório. Se confirmada a hipótese diagnóstica de disforia de gênero, o indivíduo é encaminhado para psicoterapia de grupo por, no mínimo, dois anos, de acordo com as regras determinadas pelo processo transexualizador do SUS (Portaria 2.803, 2013). Nesse processo, os pacientes são encaminhados para hormonioterapia e aguardam a cirurgia de redesignação sexual, após o tempo mínimo de psicoterapia exigido. Depois de realizada a cirurgia, os pacientes continuam em psicoterapia para acompanhamento pós-cirúrgico.
Adolescentes e crianças seguem o mesmo protocolo como base, mas adaptado para as especificações da idade e de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990/2002). Até o momento, não há em outras cidades do país um ambulatório especializado na área que atenda a população transgênero com disforia de gênero numa amplitude etária tão grande como a do Amtigos, que inclui desde adultos até crianças e adolescentes. Desta forma, o ambulatório tornou-se uma referência nacional nessa área de conhecimento e também um espaço privilegiado para as pesquisas a serem desenvolvidas com foco em uma compreensão mais aprofundada do assunto.
O trabalho do Dr. Saadeh, que já tem cerca de vinte anos e se iniciou como uma oportunidade de realizar doutorado inédito em Psiquiatria, tem atualmente amplo reconhecimento, até mesmo dentro do SUS. É oferecido hoje como projeto de pesquisa, junto ao Serviço de Endocrinologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da FMUSP, para o acompanhamento de uma população de crianças e adolescentes que aguarda uma nova resolução do Conselho Federal de Medicina, reconhecimento por parte dos Conselhos Federais das outras diversas especialidades envolvidas durante o processo e, posteriormente, nova portaria do Ministério da Saúde que regulamente e autorize seu acompanhamento multidisciplinar.
Acompanhando inicialmente pacientes adultos, tem se estabelecido um longo aprendizado e uma superação de preconceitos entre pacientes e o corpo profissional que se prontificou ao atendimento. Hoje, a triagem para adultos encontra-se fechada devido ao baixíssimo número de cirurgias, que tem como consequência um aumento do número de pacientes na fila de espera com indicação para tais procedimentos. No Estado de São Paulo, o HCFMUSP é o único hospital credenciado pelo Ministério da Saúde a realizar os procedimentos cirúrgicos do processo transexualizador do SUS. A fila para os procedimentos, com quatro portas de entrada diferentes para apenas esse hospital, leva a anos de espera. Atualmente, no HCFMUSP, são realizadas doze novas cirurgias de redesignação sexual por ano.
O ambulatório é conhecido e reconhecido pela excelência de atendimento, que se reflete nas várias abordagens oferecidas: psiquiatria, psicologia (psicoterapia, realização de avaliações psicológicas e neuropsicológicas, orientação familiar e individual), psicoterapia familiar, orientação e acompanhamento social, escolar e familiar, garantia de direitos, produção científica e ensino.
O Amtigos não existe por uma única pessoa, mas sim pela crença e esforço de todos os que trabalham e colaboram no dia a dia, e pelo reconhecimento da existência do fenômeno transexual não apenas como transgressor dos valores de nossa sociedade mas também como questão pessoal, e que, por ter bases biológicas, além de psicológicas e sociais, merece ser respeitado e tratado. Não como doença no sentido estrito, mas como algo que não é escolha do indivíduo e que deve ser compreendido, cuidado e encaminhado para uma melhor qualidade de vida.
Estrutura do ambulatório
A estrutura do ambulatório está inserida em um hospital psiquiátrico de alta complexidade, referência no Brasil e no exterior. Respeitam-se, portanto, o fluxo e os estatutos do HCFMUSP. Pensando na escuta dos pacientes e nos processos transferenciais, que acreditamos terem início com a própria entrada na instituição, descrevemos aqui o fluxo ambulatorial em que estão inseridos os indivíduos que entram em contato com o Amtigos e segundo os protocolos deste.
1. Adultos (maiores de 18 anos)
O agendamento da primeira triagem ambulatorial se dá através do contato do paciente com a secretaria responsável, por e-mail, telefone ou mídias sociais. Esse primeiro acolhimento é realizado por um psiquiatra experiente do ambulatório, acompanhado por profissionais da psicologia e/ou assistência social. O paciente chega ao ambulatório e é tratado pelo gênero com o qual ele se identifica a partir do momento da primeira ligação (uso do nome social). A premissa é de respeito à autodeterminação do indivíduo.
Pacientes com hipótese diagnóstica não condizente com a especificidade do trabalho realizado pelo Amtigos são orientados e encaminhados a serviços específicos de saúde, respeitando a hierarquia do SUS. Aqueles com hipóteses diagnósticas condizentes com a especificidade do Amtigos seguem para a avaliação psiquiátrica no ambulatório.
Após anamnese psiquiátrica, o paciente é orientado sobre o fluxograma do Amtigos, são solicitados exames laboratoriais gerais e marcado retorno para checagem dos exames. Caso seja identificada comorbidade psiquiátrica ou clínica no momento da avaliação:
1. ou o paciente segue seu tratamento (psicofarmacológico) no ambulatório com consultas regulares;
2. ou é encaminhado para tratamento clínico/psiquiátrico, respeitando a hierarquia do SUS de acordo com a região onde vive.
Todos os pacientes são então encaminhados para avaliação psicológica, que consiste em uma entrevista semiestruturada. O objetivo central da avaliação é, segundo a expertise do psicólogo avaliador no assunto, complementar a anamnese realizada anteriormente e compreender a demanda daquele indivíduo.
As avaliações, psiquiátrica e psicológica, são discutidas pela equipe, que encaminhará ou não o paciente para um grupo de psicoterapia. Os psiquiatras e psicoterapeutas são responsáveis pelo paciente até a sua alta do ambulatório.
Encaminhamentos para hormonioterapia e posteriores procedimentos cirúrgicos, já previamente conversados entre os psicoterapeutas e seus pacientes, também são discutidos em equipe (supervisor, psicoterapeuta e psiquiatra). Esses pacientes têm que ter, no mínimo, dois anos completos de psicoterapia (Resolução 1.955, 2010).
Com a hipótese diagnóstica acordada entre a equipe multidisciplinar, os pacientes, tanto MTF quanto FTM, são encaminhados para a psicoterapia em grupo com abordagem psicodramática.
Cada grupo tem dois terapeutas, um homem e uma mulher, que formam juntos uma unidade funcional. A psicoterapia é compulsória, o que a priori parece incompatível com a essência de uma psicoterapia, mas no desenvolvimento do processo essa incompatibilidade aparente se dissolve e o estabelecimento de uma transferência analítica é possível para o desenvolvimento de um bom trabalho. Como no Amtigos analisamos cada caso individualmente, temos alguns pacientes que vão para psicoterapia individual, mas não são a maioria. Depois de mais ou menos um ano de grupo, os pacientes são encaminhados para a hormonioterapia com médico endocrinologista. Com indicação dos terapeutas, e completados no mínimo dois anos de psicoterapia, os pacientes são endereçados à cirurgia. O acompanhamento pós-cirúrgico é realizado tanto de forma remota, quando o paciente está em recuperação da cirurgia, quanto no seu retorno à psicoterapia por tempo indeterminado, o que também é decidido caso a caso.
2. Adolescentes (12 a 17 anos)
Os adolescentes que entram em contato com o ambulatório seguem os mesmos protocolos de entrada e avaliações dos adultos. São incluídas após a anamnese psiquiátrica inicial: avaliação com familiar ou responsável legal, isoladamente e na presença do adolescente. Os casos são discutidos junto à equipe de atendimento de adolescentes para propor plano terapêutico e encaminhamento a grupo de psicoterapia de adolescentes. Respeitando a demanda dos pais ou responsáveis, são realizados encontros psicoeducacionais e psicoterápicos em frequência estabelecida por eles mesmos.
3. Crianças (até 11 anos)
A triagem e a avaliação psiquiátrica seguem a anamnese clínica proposta pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência ((SEPIA-IPq-HCFMUSP) para a criança e seus familiares ou responsáveis legais.
O paciente segue então para avaliação psicológica e avaliação sociofamiliar, realizadas na brinquedoteca do IPq. Após todas as avaliações, ocorre a discussão do caso entre a equipe de atendimento de crianças, para formulação de plano terapêutico e acompanhamento desse paciente específico. Depois, são agendadas consultas para a criança e seus familiares para propor o plano terapêutico e a devolutiva multidisciplinar abarcando as esferas e contextos em que a criança está inserida.
Reflexões sobre a prática clínica e os pacientes
Durante os anos de funcionamento do Amtigos, fez-se necessária uma reflexão sobre o perfil psíquico desses pacientes frente à experiência dos profissionais que prestam assistência a essa população, com especificidades complexas e contradições.
A precisão diagnóstica é essencial para a definição exata de disforia de gênero, ou seja, para o transexualismo. Isto porque os candidatos a uma cirurgia de redesignação sexual nem sempre são transexuais e nem sempre apresentam melhora na qualidade de vida com a cirurgia, além de esta ser irreversível em muitos casos e, em outros, de difícil reversão (Saadeh, 2004).
O cuidado clínico na realização do diagnóstico e na elucidação dos diagnósticos diferenciais é etapa fundamental para o trabalho médico, psicológico e social que se pretenda fazer, pois a busca de um instrumento objetivo de elucidação diagnóstica ainda não se mostrou frutífera.
As manifestações dos transtornos de identidade de gênero são muito parecidas, sendo o transexualismo uma das possibilidades existentes. Tal fato, pela sua complexidade, acabou gerando terminologias muitas vezes confusas a esse respeito.
Hoje, em termos de critérios diagnósticos, temos três referências importantes: o DSM-5 (American Psychiatric Association, 2013), a CID-10 (Organização Mundial de Saúde, 1993) e os Standards of care for gender identity disorders, sétima edição, da antiga The Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association HBIGDA (2001), e atual WPATH (2012).
São considerados cinco centros que cumprem os requisitos do Ministério da Saúde para o assim chamado processo transexualizador: o Convênio Universidade Estadual do Rio de Janeiro e Universidade Federal do Rio de Janeiro; a Universidade Federal de Goiás; a Universidade Federal do Rio Grande do Sul; o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco; o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Muito ainda há a ser feito. Em nosso país, estamos apenas iniciando o acompanhamento dessa população. As primeiras cirurgias realizadas de forma oficial e legal no país têm menos de vinte anos. O seguimento é fundamental para legitimar esse procedimento em termos científicos.
Automutilações, incluindo tentativas de suicídio, são em média 43% mais frequentes em transexuais que já relataram ideação suicida em algum momento de suas vidas. Altas taxas de prevalência de tentativas de suicídio e ideação suicida foram relacionadas a sentimentos de inadequação de seu papel de gênero, chegando a 32%. São fatores de risco para automutilação, ideação suicida e tentativas de suicídio: idade inferior a 25 anos, depressão, abuso de substâncias, abuso sexual e discriminação social (Terada et al., 2011).
Causar ou ser vítima de violência e doenças sexualmente transmissíveis também pode acometer mais essa população; além disso, os altos níveis de abandono escolar e desemprego, especialmente em idades mais jovens, resultam em maior marginalização social dos transexuais (Terada et al., 2012).
A principal característica do trabalho psíquico com essa população é vencer o preconceito e superar o trabalho com as diferenças. Entender a pluralidade sexual é questão básica na formação psíquica de todos.
O objetivo geral da psicoterapia é encontrar formas de maximizar o bem-estar psicológico, a qualidade de vida e a autorrealização do indivíduo. A psicoterapia não se destina a alterar a identidade de gênero de uma pessoa, e sim a ajudar um indivíduo a explorar as questões de gênero e encontrar formas de aliviar a disforia de gênero, se presente. Geralmente, o objetivo principal do tratamento é ajudar as pessoas transexuais a alcançar conforto a longo prazo na expressão da sua identidade, com chances realistas de sucesso nas relações, na educação e no trabalho. A terapia pode consistir em psicoterapia individual, de casal, familiar ou grupal, sendo esta última particularmente importante para incentivar o apoio de pares (Saadeh, 2004).
A angústia do paciente em relação à sua genitália está entre as principais queixas dos transexuais ao chegar ao serviço, uma vez que é a partir dela que seu gênero é socialmente determinado. Tal sentimento ocorre justamente por uma disparidade entre o gênero imposto e o gênero com o qual ele se identifica, iniciando um desconforto difuso.
Passa pela história de vida desses pacientes uma confusão entre identidade de gênero e orientação sexual. Identidade de gênero define-se como a identidade, harmonia e persistência da individualidade de alguém como masculina (homem), feminina (mulher) ou ambivalente, em maior ou menor grau, e especialmente como ela é experimentada por sua própria consciência e comportamento; identidade de gênero é a experiência privada do papel de gênero, e papel de gênero é a expressão pública da identidade de gênero. Já a orientação sexual define-se como o gênero pelo qual o indivíduo sente atração, desejo e resposta sexual, podendo ser dirigida a apenas um gênero (masculino ou feminino), a ambos ou a nenhum. Considera-se que nem identidade de gênero nem a orientação sexual são escolhas conscientes (Money & Ehrhardt, 1996).
Muitos trazem em sua aparência e discurso um estereótipo em relação ao gênero com o qual o paciente se identifica. Assumem, então, características do gênero identificado de forma caricata e com padrões predefinidos. Considera-se uma forma de autoafirmação que se baseia num desequilíbrio psíquico para o lado oposto do que é imposto pela sociedade. São muitas vezes tratados como pertencentes ao seu gênero designado ao nascimento, mesmo já vivenciando um papel de gênero diferente.
A internet e as mídias sociais são um divisor de águas no que diz respeito ao rápido acesso a um grande número de informações. Ficam claras, no trabalho com esses pacientes, as diferenças geracionais. Crianças, adolescentes e adultos jovens chegam ao ambulatorio muitas vezes já tendo interagido virtualmente com outros transexuais de sua faixa etária, possibilitando uma maior integração e autoaceitação. Conseguem ampliar sua rede social com pessoas que possuem os mesmos interesses ou ideais. Os pacientes transgêneros são menos estereotipados, mais bem informados. Por outro lado, conseguem ter fácil acesso a prescrições médicas, medicações e técnicas de modificação corporal sem acompanhamento especializado, não sendo raros os casos com consequências desastrosas para a saúde desses indivíduos.
Muitos pacientes adultos que chegam ao ambulatório já tendo realizado a transição para o gênero desejado se apresentam com discurso pronto e estereotipado para convencer a equipe de que são transexuais. Têm como fim a tentativa de adiantar suas avaliações e encaminhamentos à hormonioterapia ou aos procedimentos cirúrgicos. Faz-se necessário romper com essa primeira resistência, tentando conhecer aquele indivíduo e acolhendo seu sofrimento e suas dúvidas.
Dentro desse trabalho, escuta-se o paciente em seu discurso e associação livre, dando ênfase aos seus desejos, conflitos e sofrimentos psíquicos. São aflorados questionamentos que possam promover a reflexão a respeito do que é trazido para a sessão: vivências, comportamentos, afetos, medos e ideais. Busca-se interpretá-los, quando oportuno, mostrando-lhes o porquê de determinadas atitudes e ideias.
Os principais sofrimentos que aparecem no discurso do paciente transexual são relacionados à dicotomia autopreconceito versus dificuldade de lidar com o seu meio social. Por exemplo:
♦ observação da fala e da postura no que diz respeito aos estereótipos e ideais criados em relação ao corpo e atitudes sociais (identidade construída a partir de referências sociais de determinado gênero);
♦ "Sou diferente por ser um transexual?";
♦ "Me sinto anormal";
♦ busca obsessiva pela heteronormatividade;
♦ questionamentos e argumentações quanto às fantasias narcísicas que criam a respeito de sua identidade:
□ integração de afeto e discurso;
□ revelação dos conflitos inconscientes;
□ mostra das dificuldades do paciente de lidar com quem é;
□ conscientização e certeza do que implica o processo de mudança corporal, principalmente a cirurgia, etapa irreversível do processo.
Uma etapa importante do processo psicoterápico consiste em trabalhar a questão solidão versus identificação: muitas vezes, os pacientes sofrem com solidão e isolamento social, familiar ou em seus empregos; é no grupo de terapia que surgem as possibilidades tanto de se identificar com outras pessoas que passam por vivências semelhantes quanto de se espelhar nessas semelhanças, abrindo-se a possiblidade para enxergar no outro suas próprias vivências e dificuldades.
Devido a esse importante fato, a psicoterapia de grupo psicodramática é a principal opção como abordagem teórica. O psicodrama foi criado a partir do trabalho com grupos de minorias, e tem como base as relações estabelecidas dentro de um determinado grupo. Somado a isso, o grande volume de pacientes em relação ao escasso número de profissionais especializados no tema também propicia essa escolha.
Alguns dos assuntos abordados no grupo psicoterápico:
♦ suportar a espera para a cirurgia;
♦ asseio pessoal/higiene da genitália (que, por ser determinante do gênero imposto pela sociedade, é muitas vezes malcuidada pelos pacientes);
♦ doenças sexualmente transmissíveis (dsts);
♦ entender procedimentos anteriores realizados sem a devida supervisão médica (silicone industrial, excesso de hormônios) e encaminhar, dentro do próprio hospital, para procedimentos complementares que se façam necessários;
♦ preparar-se para as possíveis frustrações e riscos à saúde após a cirurgia (morte, bolsa de colostomia, fístulas, impossibilidade de orgasmo);
♦ autopreconceito: trabalhar a ojeriza do paciente em relação a si próprio;
♦ inserção desses indivíduos numa sociedade machista e transfóbica;
♦ inserção em instituições educacionais e mercado de trabalho - uma vez que não tenham mais preconceito em relação a eles mesmos, torna-se possível sair dos guetos em que se é aceito e se aventurar por novos ambientes;
♦ trabalhar com a possibilidade de relações amorosas e afetivas independentemente da orientação sexual;
♦ trabalhar as vivências de exclusão sofridas dentro da família e no meio social e sua repercussão na estrutura psíquica do indivíduo;
♦ trabalhar e entender conflitos pessoais.
Considerações finais
Um acompanhamento psíquico precoce e correto, que vise cuidado, atenção e escuta, é extremamente importante para a população transexual. Um dos grandes desafios é a busca pelo equilíbrio entre as regras estabelecidas pelo SUS, com inúmeras falhas, e o respeito à individualidade desses pacientes. O processo de psicoterapia ocorre de modo compulsório com pessoas que o aceitam porque buscam procedimentos cirúrgicos e estéticos com os quais não podem arcar, devido a seus altos custos. É essencial ressaltar que esse processo psicoterápico tem como objetivos gerais:
♦ a abordagem e a diminuição do sofrimento físico e psíquico;
♦ orientação ao paciente e seus familiares, ou responsáveis legais, quanto a todos os riscos e benefícios dos procedimentos desejados;
♦ identificação de complicadores ou fatores de risco sociais;
♦ acompanhamento durante todo o processo transexualizador.
Trata-se, portanto, de um dos passos para o alívio do sofrimento dessa população, promoção de cuidados de saúde e sua justa integração social de maneira sadia e produtiva. Compreender, junto com o paciente, essa escolha de adentrar o processo, essa disposição e esse desejo. Não, porém, de forma a satisfazê-lo e pronto, mas na forma adulta de sustentá-lo em sintonia com seus preceitos e história de vida.
A máxima dos tempos atuais preconiza que as frustrações "devem ser evitadas". Cresce-se com as frustrações. Não será quando se quer que a cirurgia vai ser realizada, mas quando houver possibilidade e maturidade para lidar com os riscos e sequelas cirúrgicas e, principalmente, psíquicas. Não se trata de tutoria, mas sim de um desenvolvimento conjunto de responsabilidades por todo o processo.
Afinal, como no livro A menina aprisionada (Zanonato & Prado, 2013):
a menina aprisionada já não aguentava mais a sua vida. De tão triste, chegou a pensar que viver não valia a pena. Não entendia por que as pessoas não conseguiam vê-la como ela era, não tomavam conhecimento de sua existência, faziam de conta que ela não existia...
Então pensou: - Vou fugir dessa prisão!
Desse dia em diante, começou a planejar sua fuga. Como poderia fazer isso? Pensou consigo mesma:
- Vou achar uma saída!
E assim fez. Esgueirou-se por alguns caminhos dentro do corpo do menino e chegou até a sala de seus pensamentos. Ali chegando, tomou o caminho de suas palavras e encontrou uma saída. Ela começou a se fazer ouvir.
Referências
American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders - DSM 5 (5th ed.). Washington, DC: American Psychiatric Publishing. [ Links ]
Estatuto da Criança e do Adolescente. (2002). Rio de Janeiro: Imprensa Oficial. (Lei Federal n. 8.069, 13 jul. 1990) [ Links ]
Foigel, M. E., Gagliotti, D. A. M. & Saadeh, A. (2014). Epidemiological and social demographic characteristics of gender dysphoria in a population of adults, adolescents and children at a public hospital in Brazil. Trabalho apresentado no WPATH Biennial International Symposium, Transgender Health from Global Perspective, 14-18 fev. 2014, Bangkok, Tailândia. [ Links ]
Gagliotti D. A. M., Foigel. M. E. & Saadeh, A. (2014). Características sociodemográficas e epidemiológicas de pacientes com Disforia de Gênero do amtigos-nufor-ipq-hcfmusp. Trabalho apresentado no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, A psiquiatria e os avanços da neurociência, 15-18 out. 2014, Brasilia, DF. [ Links ]
The Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association. (2001). Standards of care of gender identity disorders (6th version). [ Links ]
Money, J. & Ehrhardt, A. A. (1996). Man & woman, boy & girl. New Jersey: Jason Aronson. [ Links ]
Organização Mundial de Saúde. (1993). Classificação de transtornos mentais e do comportamento da CID-10: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: OMS. [ Links ]
Portaria n. 2.803. (2013, 20 nov.). Diário Oficial da União, n. 225, seção 1. [ Links ]
Resolução n. 1.482. (1997, 10 set.). Jornal do Cremesp, ano 17, n. 123, p. 13. [ Links ]
Resolução n. 1.955. (2010, 3 set.). Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM n. 1.652/02. Diário Oficial da União, pp. 109-110. [ Links ]
Saadeh, A. (2004). Transtorno de identidade sexual: um estudo psicopatológico de transexualismo masculino e feminino. Tese de doutorado, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo. [ Links ]
Saadeh, A. & Gagliotti D. A. M. (2014). Epidemiological and social demographic characteristics of gender dysphoria in an ambulatory population in São Paulo, Brazil. Trabalho apresentado no American Psychiatric Association's 167th Annual Meeting, 3-7 mai. 2014, Nova York, NY, EUA. [ Links ]
Terada, S. et al. (2011). Suicidal ideation among patients with gender identity disorders. Psychiatry Research, 190,159-162. [ Links ]
Terada, S. et al. (2012). School refusal by patients with gender identity disorder. General Hospital Psychiatry, 34,299-303. [ Links ]
World Professional Association for Transgender Health. (2012). Standards of care for gender identity disorders (7th version). [ Links ]
Zanonato, A. & Prado, L. (2013). A menina aprisionada. Porto Alegre: Sinopsys. [ Links ]
Correspondência:
Maya Espinola Foigel
Rua Dr. Virgilio de Carvalho Pinto,
382, ap. 162
05415-020 São Paulo, SP
mayafoigel@yahoo.com
Daniel Augusto Mori Gagliotti
Rua: Capote Valente, 467, ap. 131
05409-001 São Paulo, SP
danimori_medusp@yahoo.com.br
Alexandre Saadeh
Rua Domicio da Gama, 82
05015- 030 São Paulo, SP
alesaadeh@yahoo.com.br
Recebido em 26.11.2014
Aceito em 10.12.2014