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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo Mar. 2016
EM PAUTA
Adolescência1
Teenage years
Adolescencia
Lygia Alcântara do Amaral (in memoriam)
Formação na Faculdade de Higiene de São Paulo, cofundadora da Sociedade Brasileira de Psicanálise, membro efetivo e analista com funções didáticas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
RESUMO
Através do estudo de dois casos clínicos, a analista tece considerações em torno da passagem da fase da latência para a maturidade - o período da adolescência. Servindo-se desses casos - um em que a análise atinge pleno êxito e outro em que se vê barrada por circunstâncias prejudiciais -, o estudo em questão aborda a influência exercida pelos pais na viabilidade do tratamento analítico de adolescentes, bem como esclarece o leitor sobre a própria natureza da adolescência.
Palavras-chave: latência; adolescência; tratamento analítico.
ABSTRACT
Through the study of two clinical vignettes, the psychoanalyst makes considerations on the passage from the latency stage to the maturity - the teenage years. Using these vignettes - one, in which the analysis is absolutely successful, and another, in which detrimental circumstances stopped the analysis -, the author approaches parents’ influence in the viability of psychoanalytic treatment for teenagers. She also enlightens the reader about the own nature of adolescence.
Keywords: latency stage; teenage years; psychoanalytic treatment.
RESUMEN
A través del estudio de dos casos clínicos, la analista teje sus consideraciones en relación al paso de la etapa de latencia hacia la madurez - el período de la adolescencia. Apoyándose en estos casos - uno en el que el análisis alcanza un éxito total y otro en el que se ve impedido por circunstancias perjudiciales -, el estudio aborda la influencia que ejercen los padres en la viabilidad del tratamiento analítico de adolescentes, así como aclara al lector sobre la propia naturaleza de la adolescencia.
Palabras clave: latencia; adolescencia; tratamiento analítico.
O período de transição entre a infância e a idade adulta compreende duas fases distintas: a latência e a adolescência.
A latência caracteriza-se, dinamicamente, pelo mecanismo de repressão, pelo controle obsessivo dos objetos, negação da realidade psíquica, restrição de alguns aspectos do ego e expansão de outros.
Nesse período da vida, a curiosidade e o interesse do menino ou da menina voltam-se predominantemente para o mundo exterior e para os ideais técnicos, estéticos e morais. As identificações vão tomando o lugar do relacionamento primitivo da criança com seus objetos, e isto significa elaboração de angústias persecutórias e depressivas, resultando dessas atividades psíquicas certo desenvolvimento das capacidades do ego, que se identifica com os aspectos mais amadurecidos dos adultos. Os adultos vão sendo considerados indivíduos independentes, capazes de estudar, trabalhar, ter vida própria, são admirados pelas suas realizações, e assim vão sendo vistos diferentemente daqueles que serviam apenas para atender ou frustrar a criança pequena. O relacionamento se amplia.
Por outro lado, os aspectos dos conflitos primitivos da criança com seus objetos que não foram solucionados sofrem repressão. Dentre os mais atingidos pela repressão estão as angústias e fantasias em relação à sexualidade do adulto e aos sentimentos da criança ligados ao complexo de Édipo nos seus aspectos genital e pré-genital sádico.
Reforçando o mecanismo da repressão, surgem os mecanismos obsessivos de controle dos objetos e dos sentimentos.
Os mecanismos reativos de vergonha, nojo, medo, escrúpulo excessivo e limpeza exagerada ativam-se no sentido da luta defensiva contra a masturbação e contra a sexualidade dos adultos, que é abominada. Nessa luta defensiva, a cisão é reforçada, consolidam-se as figuras idealizadas e as denegridas, por exemplo, a mãe pura e o pai abjeto, ou vice-versa, o pai superior e a mãe perseguidora, ou então os pais dessexualizados e honestos de um lado, as prostitutas e malandros de outro.
A distância social e a relação com objetos externos são usadas para controlar os objetos internos.
O mecanismo obsessivo de controle onipotente não se exerce só em relação à sexualidade, mas atinge uma esfera mais ampla. Assim, tudo o que implica diferença é profundamente acentuado, mediando um abismo quase intransponível - por exemplo, entre o real e o imaginário, o corpo e a mente, adulto e criança, feminino e masculino, idealizado e persecutorio. Os aspectos diferentes são considerados antagônicos e rigidamente mantidos afastados.
Nesse clima, a vida psíquica do menino ou da menina fortalece-se nos seus aspectos racional e intelectual e sofre alterações no sentido da fantasia. As fantasias ligadas aos pais como objeto de interesse são recalcadas e o imaginário desenvolve-se em relação ao homem fantástico e ao homem-máquina, às comunicações interplanetárias, aos acontecimentos extra-humanos; o homem admirado é o homem-tocha, o invencível, o invulnerável. Os sentimentos de ternura, de carinho são substituídos pelo ideal de insensibilidade, de superação dos sentimentos que causam dor.
O interesse quase que exclusivo do menino ou da menina no período da latência pelos da mesma idade e pelas aventuras extraordinárias favorece o afastamento em relação ao adulto. O adulto é mantido à distância, sob reserva. Controlando a realidade externa, evita o estímulo erótico e as possíveis frustações são contornadas.
No mundo interno, os pais são mantidos separados e onipotentemente controlados. Recalcando as fantasias dos pais sadicamente unidos, surgem as fantasias dos pais dessexualizados, que são elemento perturbador, pois são concebidos como ultraexigentes, continuamente exigindo trabalho, aprendizado, realizações, apenas para o seu engrandecimento, sem a menor consideração para com os filhos. Esses pais internos devem ser aplacados e são sentidos como verdadeiros monstros na sua insaciabilidade ilimitada.
Conforme o grau de repressão das ansiedades, das fantasias, e de êxito dos mecanismos de controle obsessivo sobre os objetos e sobre a vida psíquica, o período de latência torna-se mais ou menos satisfatório no sentido de garantir um clima propício ao desenvolvimento do ego no seu contato com vários aspectos do mundo exterior.
Pode-se dizer que no período da latência o complexo de Édipo foi contornado. Devido à repressão das fantasias, à negação da realidade psíquica, ao êxito dos mecanismos obsessivos e maníacos, o ego vai-se expandindo no sentido de novas aquisições, da resolução de certas angústias, e assim o ego fortalecido consolida os ganhos para enfrentar os embates da adolescência.
Quando a menina ou o menino parece ter obtido estabilidade no sentido de ter a sua individualidade, de pertencer a um grupo estável, de ter eliminado a masturbação, o estímulo fisiológico, acarretando as manifestações sexuais secundárias, rompe o equilíbrio obtido com muito esforço.
A experiência da puberdade traz consigo uma avalancha de sentimentos contraditórios. As modificações do próprio corpo, ambicionadas mas temidas, são recebidas com satisfação e desconfiança. Há para a menina, por exemplo, o pesar de não mais poder alimentar a esperança de se transformar em menino. Ao mesmo tempo que experimenta a decepção dessa fantasia, vem a satisfação de estar vencendo outras - por exemplo, o medo de não se realizar como mulher, de ter o seu interior destruído, de não ser capaz de ter filhos. O aparecimento da menarquia e o crescimento dos seios são recebidos com satisfação misturada com desconfiança. No momento em que há a possibilidade real de ser mulher, surge a dúvida de encontrar quem a queira, é o período do desejo urgente do casamento e o pavor de ficar solteira. A menina-moça torna-se mais feminina e mais maternal, como a própria mãe. Confiante nas suas capacidades, surge o medo de superar a mãe e ter sentimentos de pena por aquela que não é mais jovem.
O menino alegra-se com as manifestações de sua sexualidade, o seu temor de ter sido prejudicado pelo onanismo é aliviado, pois não acarretou efeitos danosos como os que apareciam nas fantasias de castração. O desenvolvimento do próprio corpo e a força muscular exercitada no período da latência também lhe causam satisfações e medo. É o medo de usar as suas capacidades físicas e intelectuais devido às fantasias infantis, há muito acalentadas e reprimidas, de represálias contra os adultos odiados.
Reivindicar para si o que, como criança, sentiu ter-lhe sido impiedosamente negado entra em conflito com os sentimentos de amor e consideração, pois na sua fantasia sente o pai como temeroso de não suportar o crescimento, a vitalidade do filho. O pai não é apenas o rival do tempo de criança, mas também o amigo que sempre o amparou, trabalhou e o socorreu quando indefeso. Crescer é muito penoso.
Os sentimentos conflitivos levam o adolescente a rejubilar-se e a odiar o próprio crescimento, principalmente quando compara o seu florescimento com o declínio dos pais. O pai de idade madura é sentido pelo adolescente em decadência rápida e inevitável. Um dos meios para impedir esta catástrofe é a parada de crescimento; a renúncia a ser adulto é o alto preço que paga para manter os pais vivos. Essa fantasia surge como necessidade onipotente de deter os danos irreparáveis que, em sua fantasia, seu crescimento causa aos pais.
A experiência da puberdade é sentida como algo desejado, que jamais poderia ser alcançado e que veio mais rapidamente do que se esperava.
Na puberdade, há a ameaça de o indivíduo não ser capaz de restabelecer o equilíbrio conseguido no período de latência.
O adolescente sofre ao verificar a precariedade do que acreditava ser certo e infalível. Não é mais possível manter a rigidez dos mecanismos obsessivos. O que estava demarcado rigidamente agora está em caos. O certo e o errado, o feminino e o masculino, o exterior e o interior, o idealizado e o persecutório, a criança e o adulto estão misturados.
Para defender-se do estado confusional de angústias persecutórias, o adolescente recorre aos mecanismos de identificação projetiva, de expulsão maníaca, e vale-se do grupo social pela integração ou pela fuga para exteriorizar a cisão do ego e dos objetos.
A inquietação, a turbulência, a instabilidade do adolescente mobilizam muita angústia nos adultos.
Não é possível falar do adolescente sem levar em consideração o ambiente em que vive. Devido à ativação das angústias persecutórias e depressivas, os adolescentes oscilam muito, e os pais, principalmente aqueles que ainda permanecem na adolescência, sentem-se terrivelmente ameaçados, desorientados, surpreendidos, decepcionados. Não suportando as próprias angústias agravadas pelos conflitos agudos do púbere, tentam usar meios coercitivos, totalmente ineficientes porque inadequados para a situação, ou abandonam os filhos ao próprio desamparo.
A atitude desorientada dos pais estimula e agrava a tendência do adolescente de sentir como se eles não quisessem o seu crescimento (o que provoca rebeldia), ou então a imaginar que está causando muita inquietação, o que o leva a querer deter seu desenvolvimento para não prejudicar os pais. Daí uma série de automutilações, de fracassos incompreensíveis.
Os pais sentem-se ameaçados pela atitude delinquencial do filho. O comportamento agressivo do adolescente coloca em evidência os erros cometidos nos primeiros tempos de vida do casal, quando, imaturos, os pais sentiam os filhos como ameaça de escravização e, portanto, controle onipotente, perda completa da liberdade. As crianças, sentidas pelos pais como equivalentes de objetos internos temidos, deviam ser controladas, tratadas com extrema severidade. Mas a criança não foi apenas equivalente ao mau objeto interno: recebeu igualmente consideração, como ser indefeso que despertou nos pais ternura e carinho e também culpa, de modo que, a par de muita severidade, ocorre concomitantemente uma tolerância excessiva.
A instabilidade emocional dos pais leva a criança a desenvolver meios para defender-se e punir inconscientemente os pais. O adolescente, na sua atitude instável, oscila também entre o tratamento severo, exigente, que dá aos pais e a culpa pelos maus-tratos que inflige a eles.
Acreditamos que as ansiedades, fantasias e defesas experimentadas na adolescência podem ser mais bem compreendidas no relato de casos da nossa experiência profissional no tratamento analítico de adolescentes.
Luísa
Dezesseis anos. Veio ao tratamento quando a mãe descobriu que a menina, até então aluna regular, obediente e muito retraída, não comparecia às aulas. A mãe foi informada por um amigo da casa, que estranhou a atitude de Luísa, vagando por ruas de um bairro distante durante o horário escolar.
Na escola, recebeu a informação da ausência da filha, que não havia aparecido desde o reinício das aulas, apesar de o pai conduzi-la diariamente e de a menina chegar em casa no horário que correspondia ao término do período escolar. A mãe ficou extremamente preocupada pelo fato de a filha estar há um mês nessa vida fictícia, e, reconhecendo que sozinha não podia lidar com a menina - que se refugiava num silêncio obstinado -, procurou o tratamento psicanalítico.
Em relação ao tratamento, os primeiros contatos foram difíceis pelo silêncio de Luísa. Era assídua, porém falava muito pouco. A interpretação das angústias persecutorias baseava-se em palavras soltas, mas que indicavam fantasias da paciente imaginando ser sua analista conivente com a mãe para fornecer-lhe e receber informações, como se o trabalho de análise não se desenvolvesse com perfeita autonomia. A analista era odiada como espiã a serviço da curiosidade materna, mas havia indícios de uma leve esperança de que o objetivo da análise fosse o de ajudá-la a compreender as próprias dificuldades, como lhe dissera a mãe.
Cada movimento de confiança após a interpretação das angústias persecutorias era imediatamente atacado. Luísa temia confiar e ser enganada. O relacionamento foi-se ampliando e Luísa pôde mostrar a extensão da confusão em que se encontrava. Seu desespero era imenso, a ideia de suicídio aparecia constantemente, pois era sentida como a única solução possível para acabar com o seu tormento; entretanto, isso lhe repugnava.
À medida que sua análise progredia, foi capaz de admitir e aceitar que estava constantemente pondo sua analista à prova: queria testar a sua discrição, sua capacidade profissional. Assim, percebendo que suas desconfianças recebiam o tratamento adequado, isto é, serviam para o trabalho analítico, foi capaz de colaborar como pessoa inteligente e, principalmente, de reconhecer seu grande desejo de viver e progredir.
Logo no início, a interpretação do que Luísa sentia ser objeto de preferência da analista - pacientes do sexo masculino - trouxe à tona o profundo ressentimento de ser mulher. Para Luísa, só os homens mereciam consideração e afeto, só eles eram bem-dotados.
O trabalho analítico permitiu a Luísa avaliar a intensidade das suas projeções na situação transferencial, e causou-lhe surpresa a identidade de situações: a mãe-analista preferindo os homens, isto é, o pai e o irmão, em detrimento dela.
Conforme foi entrando em contato com o ciúme e a rivalidade em relação aos "bem-dotados", pois tudo o que significava valor era projetado no homem, sentiu-se ameaçada pelos sentimentos de rivalidade em relação à analista e surpreendida de ter denegrido, desvalorizado a mulher. ¡mediatamente, passou a se defender do sentimento de inveja pelo trabalho analítico e a achar que tudo aquilo era uma grande farsa. As interpretações deviam ser baseadas nas informações que a analista colhia secretamente da outra analista, e a situação analítica um plano bem urdido para ela sentir a identidade das situações. Considerava tudo isto um mundo louco destinado a levá-la à loucura. A mãe fazia análise porque era louca; o pai, sadio, não precisava. Se a análise realmente tivesse valor, o irmão é quem se beneficiaria; era-lhe impossível reconhecer que a mãe desejava seu bem. Toda a inveja que sentia da mãe era negada através da desvalorização que dela fazia, projetando nela qualidades negativas, como inveja, maldade e incapacidade.
Aos poucos, fui percebendo a confusão que fazia entre o seu mundo interno e o externo, e as peculiaridades das suas convicções. Os aspectos bons, sadios e progressistas da sua personalidade não eram percebidos como seus, devido à cisão do ego e dos objetos: só os homens podiam ser assim. Quanto às mulheres, eram classificadas em dois grupos distintos: o das mães, que eram sacrificadas, recebiam maus-tratos, a sexualidade má, as preocupações com os filhos e tinham que lutar para não ficar loucas; e o das jovens amantes muito queridas, que recebiam a sexualidade sadia, joias, divertimentos e alegrias.
Luísa não podia optar por nenhum desses grupos e, com a menarquia, havia perdido a fantasia de se transformar em homem, como meio fantástico e exclusivo de acabar com os conflitos determinados pelo ódio, inveja e culpa em relação à mãe, que não era apenas odiada, mas admirada e amada.
Os seus estudos estavam prejudicados pela intensidade de conflitos. Agora que não podia mais apoiar-se em fantasias baseadas na desejada metamorfose, teria que fazer uma opção entre ser mulher sacrificada ou amante bem aquinhoada. A luta desesperada que mantinha em seu interior era também para impedir seu desenvolvimento, pois crescimento significava substituir a mãe, e esta iria fatalmente para a psicose.
Luísa fora cuidada pela avó esquizofrênica nos seus primeiros tempos, no período em que a mãe se ausentava de casa para trabalhar. Ouvia os impropérios que a avó dirigia à mãe toda vez que esta saía de casa, como se não o fizesse para trabalhar, mas para ter vida livre, encontros com homens. Assim, as fantasias sexuais da menina receberam um grande reforço na fantasia da avó psicótica.
A internação da avó num hospital psiquiátrico foi sentida por Luísa como grande perda, responsabilizando a mãe por ter agido assim, como se esta o fizesse apenas por maldade.
Aos poucos, Luísa foi compreendendo que os seus medos em relação ao próprio desenvolvimento se prendiam à fantasia de ser igual à mãe nos seus aspectos maldosos. Passou a ver outros aspectos maternos e a valorizar a mãe, o que provocou maior estreitamento entre as duas. A importância do tratamento analítico para o irmão foi lembrada por Luísa quando as dificuldades dele na escola se foram acentuando, percebidas agora devido à sua maior integração psíquica.
Durante o tratamento analítico, Luísa vivenciou e compreendeu atitudes que eram reversões do tratamento recebido quando criança.
O ciúme em relação ao pai fazia com que ela estimulasse a mãe a se cuidar e a não deixar o pai sair só. Quando criança, a mãe lidava com os próprios ciúmes fazendo a filha fiscalizar o pai, estimulando-a a sair com ele, dando-lhe assim uma penosa tarefa, que era sentida como terrível obrigação além de suas possibilidades.
A vida de Luísa foi sempre circunscrita à família. Não tinha amigos. Quando criança, sofreu profundamente ao entrar para o jardim de infância, não conseguindo ficar longe de casa. Aos poucos, foi-se adaptando à vida escolar e o curso primário decorreu sem maiores dificuldades. Terminando o primário, foi forçada a abandonar o ambiente conhecido por exigência da mãe, que desejou que ela frequentasse um colégio melhor. Os primeiros dias de ginásio foram acompanhados de um profundo ressentimento e ódio à mãe por tê-la retirado da primitiva escola. Essa mudança de colégio era sentida por Luísa como sinal do egoísmo materno, que não permitia que a filha tivesse amigos.
Luísa tinha medo de se apegar à análise, ao estudo que estava iniciando, porque temia ser descoberta pela mãe egoísta, possessiva, que não lhe permitia ter bom relacionamento com outras pessoas. À medida que foi capaz de separar as suas fantasias da realidade, recuperou o direito à vida, tornou-se eficiente colaboradora da analista, dos pais e dos professores.
O período, porém, que precedeu o início de seu tratamento psicanalítico foi muito traumatizante para ela. Esperava do pai compreensão, era o único que poderia ajudá-la, mas este, quando teve conhecimento de suas faltas, reagiu pelo afastamento, não quis saber da filha, não lhe dirigiu mais a palavra, enquanto a mãe foi ao encontro das suas angústias sem condená-la. Luísa estava perplexa com a atitude de seus pais, por não corresponder à sua expectativa, baseada na idealização do homem e na desvalorização da mulher.
Marcos
Dezenove anos incompletos. Foi encaminhado ao tratamento psicanalítico pelo médico da família, que havia ficado responsável pelo rapaz durante a viagem dos pais ao estrangeiro.
O médico se exasperava pela falta de pontualidade do adolescente em relação aos compromissos com ele e com a escola. Um acidente automobilístico causou a morte de um amigo de Marcos, que, como ele, era desmesuradamente arrojado em relação a automóveis. Angustiado por essas circunstâncias, o médico, responsável total pelo jovem, decidiu apelar para a psicoterapia.
Suas preocupações eram agravadas pela desconfiança de que Marcos estivesse bebendo por influência de más companhias. Sentia-se responsável pela saúde física do rapaz, mas este evitava qualquer aproximação.
Às dúvidas levantadas pela analista em relação ao início do tratamento na ausência dos pais, por se tratar de pessoa dependente da família, o médico informou que se achava autorizado a decidir sobre a questão por se tratar da saúde de um paciente e porque havia sido investido de plenos poderes pelo pai do rapaz.
Acrescentou que a família, embora retrógrada, era abastada, podia arcar com as despesas do tratamento e certamente iria apreciar a sua atitude diligente no desempenho das funções de médico e amigo da família.
Na primeira entrevista, Marcos declarou que ali se achava devido ao excesso de zelo da parte do médico, que se sentia bem e que o doutor estava imaginando que lhe pudesse acontecer o mesmo que acontecera a seu amigo. Afirmava que com ele as coisas se passavam de modo diverso e dizia que a analista devia ficar bem esclarecida a respeito da mania do médico de zelar excessivamente pelos outros.
Foi logo percebido que o médico, naquele momento, estava sendo usado para depósito de ansiedades de Marcos, que também mostrou o seu desprezo e hostilidade pelos que têm a mania de querer tomar conta dos outros.
Marcos era hábil na projeção de suas ansiedades. Encontrava sempre o hospedeiro capaz de englobá-las.
Ao perceber que na situação analítica havia risco para esse seu malabarismo, pois as projeções eram recebidas e trabalhadas no sentido de fazer Marcos tomar consciência de suas atitudes, sentiu-se muito ameaçado.
Sentindo-se ameaçado, passou a ameaçar o doutor, um grandíssimo medroso, que seria punido severamente pela família por não corresponder à confiança nele depositada. Naturalmente, sua clínica estaria diminuindo e esse arranjo com a analista era um meio para tirar dinheiro da família. Esse negócio escuso seria denunciado tão logo os pais regressassem. Além do mais, poderia interromper a viagem deles com um telegrama.
A arrogância de Marcos foi compreendida como um S.O.S. extremo. A analista, ameaçada pela impotência do paciente, teria que interromper seu trabalho, pois na sua arrogância ele a ameaçou de prisão, de denúncia pelo jornal, de contratar um detetive para seguir os seus passos etc. As angústias intensas mobilizadas e a elaboração delas possibilitaram o prosseguimento da análise, que se fez em clima menos ameaçador.
Passou a falar das suas dificuldades, do fracasso em seus estudos, e a preocupação revelada contrastava com a sua aparência ilusória, despreocupada e sorridente.
Marcos sofria de insônia desde os 14 anos e, para combatê-la, tomava grandes doses de conhaque, que guardava bem escondido em seu armário.
O seu relacionamento com os amigos oscilava entre extrema generosidade e crueldade excessiva. Seus livros estavam sempre emprestados e "por isso não estudava".
Se um amigo lhe pedia dinheiro, entregava-lhe a carteira. Diante do espanto do amigo, ria-se e afiançava-lhe que dinheiro nada significava para ele - a prova é que a carteira esvaziada seria recheada prontamente.
Seduzindo os amigos com suas atitudes generosas, forçava a própria avidez no objeto adequado, que assim ficava o hospedeiro da sua gula. Mas o movimento seguinte, após ter fascinado o outro com a "descoberta de uma mina de ouro", fonte inesgotável de satisfações materiais e emocionais, era de extrema crueldade. Ele se retirava bruscamente, desaparecia, não atendia mais aos apelos do amigo, agora perplexo diante de tal reviravolta.
O amigo, por motivos que eram simples pretextos, era transformado em traidor, e ele se afastava profundamente magoado pela decepção que o outro lhe havia causado. Cortava assim drasticamente qualquer possibilidade de contato, sem sequer dar ao outro possibilidade de defesa. Tornava-se uma vítima.
Sua atitude inesperada provocava confusão nos outros e foi numa atitude assim que houve o acidente de carro com o amigo.
Marcos era frio ao relatar o acidente e mostrava raiva por ter o médico manifestado preocupação de que o mesmo acontecesse a ele, preocupação vista como injusta, pois assim o médico não o diferenciava do outro. O rapaz também havia sido um dos que ele levara ao desespero e confusão pela sua magnanimidade seguida de um profundo desprezo. Tentativas do amigo em obter explicações foram infrutíferas.
Marcos não podia lidar com a culpa senão pelo mecanismo de negação onipotente e arrogância manifestado nas primeiras sessões. A negação da culpa pela morte do amigo evidenciava a urgência de ser ajudado, pois indicava também sua falta de esperança em ser compreendido.
Aos poucos, Marcos foi revelando suas fobias: não suportava ficar só e as angústias claustrofóbicas à noite levavam-no à bebida.
Foi possível a Marcos reconhecer que essa viagem dos pais era sentida como a volta de grandes angústias adormecidas, que se prendiam às primeiras separações ocorridas já no primeiro ano de vida.
A necessidade de sentir a presença dos pais e seu carinho nunca fora plenamente satisfeita. Os pais se aproximavam efusivamente e em seguida se afastavam, deixando a criança frustrada e com suas fantasias de intensa agressividade.
A mãe de Marcos tinha atitude carinhosa para com ele, mas de curta duração. Logo mandava a criança se afastar.
Identificado com o objeto interno mãe generosa e frustradora, Marcos era compelido a repetir com os amigos a situação que não fora capaz de elaborar.
A análise das ansiedades primitivas, a probabilidade de a analista receber as identificações projetivas e de elaborá-las, foi permitindo a discriminação dos objetos internos com os da realidade, podendo assim ir percebendo seus aspectos vorazes, que antes eram projetados por temor à violência deles.
Na sua fantasia, Marcos responsabilizava-se tanto pelo mongolismo do irmão como pela esterilidade materna após o nascimento deste.
O irmão, três anos mais moço do que ele, havia sido alvo de intensos ciúme e rivalidade, manifestados em fantasias sádicas.
Marcos sentia-se responsável e obrigado a zelar pelo irmão incapaz, do qual muito se envergonhava. Na sua fantasia, havia invalidado o irmão com o seu ódio, e as recomendações dos pais para proteger o irmão eram sentidas como pesado castigo do qual ele nunca poderia livrar-se.
A morte do amigo mais moço, cheio de possibilidades, trouxe-lhe a revivência da situação primitiva de grande poder maléfico que havia experimentado com a falta de desenvolvimento mental do irmão.
A análise das fantasias de onipotência destrutiva levou-o a fazer indagações sobre o mongolismo e a epilepsia.
O conhecimento de que o amigo sofria de ausências epilépticas foi um elemento da realidade que passou a considerar, o que lhe permitiu modificar a avaliação de sua onipotência e ter a medida da extensão dos ataques à própria percepção.
Um dos sinais de aproveitamento na luta em defesa de seus direitos foi o empenho que mostrou em proteger seu tratamento por ocasião do regresso dos pais.
A mesma atitude de desdém, de superficialidade evidenciada por Marcos no início do tratamento foi manifestada pelos pais, que passaram a acusar o médico de abuso de confiança.
O rapaz não precisava de tratamento psíquico, pois fora criança-modelo, dócil, um encanto, e a análise estava introduzindo desordens no rapaz, que ousava pensar diferentemente deles.
A mãe mostrou-se muito ressentida pelo fato de o médico não atender ao pai quando este o desaconselhou a continuar o tratamento. O pai, ofendido e magoado com essa falta de consideração, podia ficar doente.
O trabalho analítico, apesar dessas vicissitudes, prosseguia, permitindo a Marcos sentir como os objetos internos lesados, sofredores e tiranos faziam coro com os objetos externos, que também, pelas exigências, queriam a renúncia ao que havia empreendido.
A análise de Marcos foi interrompida por ocasião do noivado deste com uma moça de outro estado. A família encheu-se de júbilo diante da perspectiva de ter os netos ambicionados.
Infelizmente, não foi possível levar adiante a análise dessa falsa reparação. O meio foi demasiadamente sedutor e assim, pois, paciente e família da noiva conjugados numa festa maníaca forçaram a interrupção do tratamento.
O ego frágil do paciente e os parcos recursos da analista foram insuficientes para deter a onda de falsa reparação de Marcos aos seus objetos.
Marcos não tinha direito à vida. Os objetos internos prepotentes exigiam o sacrifício de capacidades que estavam começando a desabrochar com o tratamento analítico.
A invasão das fantasias primitivas não elaboradas do adolescente leva-o a atuar, muitas vezes, de maneira desastrosa, prejudicando o seu desenvolvimento e seu contato com a realidade.
É muito importante que os pais compreendam as angústias inerentes a essa época de transição entre a latência e a maturidade.
É necessário que os pais do adolescente recebam assistência psicoterapêutica durante o tratamento do filho, para evitar as interferências e atuações causadas pelas suas próprias angústias.
Pelo fato de o filho depender economicamente dos pais, estes muitas vezes exercem tirania, provocada por suas angústias, que também lhes são desconhecidas.
Nota
1 Trabalho original publicado em 1967: Revista Brasileira de Psicanálise, 1(1),94-107.
Referências
Freud, S. (1955). From the history of an infantile neurosis. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (J. Strachey, Trad., Vol. 17, pp. 7-122). London: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1918) [ Links ]
Klein, M. (1948). Contributions to psychoanalysis. London: Hogarth Press. [ Links ]
Klein, M., Heimann, P., Isaacs, S. & Riviere, J. (1952). Developments in psychoanalysis. London: Hogarth Press. [ Links ]
Klein, M., Heimann, P. & Money-Kyrle, R. (Eds.) (1955). New directions in psychoanalysis. New York: Basic Books. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1958). Collected papers: through pediatrics to psychoanalysis. London: Tavistock Publications. [ Links ]