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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo Mar. 2016

 

EM PAUTA

 

 

O Messias: uma contribuição para o estudo psicanalítico da manifestação psicossomática1

 

The Messiah: a contribution to the psychoanalytic study of psychosomatic manifestation

 

El Mesías: una contribución para el estudio psicoanalítico de la manifestación psicosomática

 

 

Yutaka Kubo (in memoriam)

Médico formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, membro efetivo e analista com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

 

 


RESUMO

Baseado na teoria psicanalítica da dualidade dos instintos, o de vida e o de morte, o autor propõe uma concepção para a apreensão e o estudo da manifestação psicossomática. Esta poderia ser consequência, expressão e também defesa contra a percepção da ação simultânea dos dois instintos. Vista assim, a manifestação psicossomática teria um caráter integrativo. O autor tenta consubstanciar esta maneira de ver com argumentos e material clínico apresentados no trabalho.

Palavras-chave: psicossomatização; percepção; instinto de vida; instinto de morte; integração.


ABSTRACT

Based on the dual instinct theory - life and death drives -, the author presents a concept to understand and study the psychosomatic manifestation. This might be the result, expression, and defense against the perception of the simultaneous action of the two instincts. If seen in this way, psychosomatic manifestation would have an integrative feature. The author attempts to consubstantiate this way of seeing by bringing some arguments and clinical material to this paper.

Keywords: psychosomatization; perception; life drive, death drive; integration.


RESUMEN

Basado en la teoría psicoanalítica de la dualidad de los instintos, el de la vida y el de la muerte, el autor propone una concepción para la captura y el estudio de la manifestación psicosomática. Esta podría ser la consecuencia, expresión y también defensa contra la percepción de la acción simultánea de los dos instintos. Vista de esta forma, la manifestación psicosomática tendría un carácter integrador. El autor intenta corroborar esta manera de ver con argumentos y material clínico presentados en el trabajo.

Palabras clave: psicosomatización; percepción; instinto de vida; instinto de muerte; integración.


 

 

1. O rei Herodes

Evangelho Segundo São Mateus narra a seguinte história no capítulo 2, versículos 1 a 3:

Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia em dias do rei Herodes, eis que vieram uns magos do Oriente a Jerusalém. E perguntaram: Onde está o recém-nascido rei dos judeus? Porque vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo. Tendo ouvido isto, alarmou-se o rei Herodes, e, com ele, toda Jerusalém.

É este o anúncio do nascimento do Messias. Por que então o alarme de toda Jerusalém, juntamente com o rei Herodes? Este teria motivo de sentir-se ameaçado pelo nascimento do rei dos judeus, capaz de destroná-lo. Mas onde reside o motivo de alarme de toda Jerusalém? A vinda do Messias é um acontecimento prenhe de comoção violenta, assim expressa pelas próprias palavras de Jesus, registradas no mesmo Evangelho, capítulo 10, versículos 34 a 36:

Não penseis que vim trazer paz à terra: não vim trazer paz, mas a espada. Pois vim causar divisão entre o homem e seu pai, entre filha e sua mãe e entre nora e sua sogra. Assim os inimigos do homem serão os da sua própria casa.

A teoria psicanalítica dos instintos estabelece que toda a atividade humana é regida por dois instintos, de vida e de morte, trabalhando em conjunto, "harmoniosamente". O instinto de vida tem por função criar e construir, sendo representado no âmbito mental pelo sentimento de amor; o de morte provoca a destruição, sendo sua manifestação mental o ódio.

Segundo esta teoria, todo o acontecimento contém ou é constituído de dois elementos opostos: amor e construção de um lado, ódio e destruição do outro. Assim, o nascimento do Messias é uma boa-nova, acontecimento de bem-aventurança sem precedentes, e ao mesmo tempo causa de desastre e de comoção catastrófica. Os dois instintos podem se separar, isto é, pode ocorrer a defusão dos instintos, provocando a cisão, cindindo então amor e ódio, construção e destruição, como dois processos independentes e separados.

Vejamos como prossegue a narração de São Mateus, no capítulo 2, versículos 7 a 12:

Com isto, Herodes, tendo chamado secretamente os magos, inquiriu deles, com precisão, quanto ao tempo em que a estrela aparecera. E enviando-os a Belém, disse-lhes: Ide informar-vos cuidadosamente a respeito do menino, e quando o tiverdes encontrado, avisai-me para eu também ir adorá-lo. Depois de ouvirem o rei, partiram; e eis que a estrela que viram no Oriente os precedia, até que, chegando, parou sobre onde estava o menino. E vendo eles a estrela, alegraram-se com grande e intenso júbilo. Entrando em casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, adoraram-no; e abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra. Sendo por divina advertência prevenidos em sonhos para não voltarem à presença de Herodes, regressaram por outro caminho à sua terra.

Prossegue ainda a narração, agora no versículo 16 do mesmo capítulo: "Vendo-se iludido pelos magos, enfureceu-se Herodes grandemente e mandou matar todos os meninos de Belém e de todos os seus arredores, de dois anos para baixo, conforme o tempo do qual com precisão se informara dos magos."

É este o relato da defusão dos instintos. Os reis magos ficam com o instinto de vida e se encarregam do aspecto de amor pelo nascimento do menino Jesus. O rei Herodes é ameaçado pelo mesmo acontecimento e, a fim de se defender desta ameaça, pratica infanticídio em massa, pensando destruir o recém-nascido rei dos judeus. É ele representante do instinto de morte, de ódio. Os reis magos praticam os atos de amor graças à negação do ódio; o rei Herodes mata e destrói, concretiza o ódio, negando o amor. Ambos são produtos de cisão e de negação, embora os reis magos tenham ficado com a parcela melhor, do ponto de vista prático, sendo até hoje objeto de amor e simpatia, enquanto o rei Herodes acabou como receptáculo de hostilidade de toda a cristandade.

Uma vez defusionados, os dois instintos permanecem afastados um do outro, sem se encontrar, pela divina Providência, como relata o Evangelho, pois a mente humana dificilmente suporta a junção, a integração dos instintos.

 

2. O rei Édipo

O rei Laio é cientificado pelo oráculo de Delfos: "Seu filho matá-lo-á e irá dormir com sua esposa."

Este oráculo já é produto de defusão dos instintos: não há menção do aspecto alvissareiro do nascimento do menino, de um novo ser. Não existem reis magos a adorar a vinda do Messias.

Neste domínio de ódio e de completa negação de amor, Laio age como Herodes: manda matar sumariamente o recém-nascido. Nada perturba seu ato destrutivo, já que não há amor.

O intento do rei Laio é, porém, obstado pelo sentimento de amor do pastor encarregado de sacrificar o menino. O amor, poupando a vida do menino, vem a ser fator de morte do rei Laio.

O pastor caridoso terá tido conhecimento do oráculo de Delfos? Teria previsto a morte posterior de Laio por sua causa? Talvez não. O pastor pratica o ato de amor no desconhecimento ou na negação de ódio.

Édipo mata o rei Laio na encruzilhada de Tebas, sem conhecer sua paternidade. Realiza, assim, a maldição do oráculo de Delfos, sem que este ato o perturbe, pois o crime foi praticado na ausência ou negação de amor.

Édipo vem a se tornar rei, governa bem seu país, desposa Jocasta, constitui família, ama e é amado pelo pai adotivo, crendo-o pai verdadeiro. Floresce o amor, reina a paz.

Esta paz é desfeita quando o rei Édipo é forçado a tomar conhecimento da verdade do ocorrido, do seu genocídio, da hostilidade do rei Laio, mandando matar seu filho. Dito de outro modo, a paz é desfeita quando a percepção se impõe. A negação, seja de amor, seja de ódio, só é possível na ausência de percepção da realidade. Inversamente, a presença de percepção impossibilita o mecanismo de negação. O que não é percebido não existe; existe quando percebido.

Desta forma, o rei Édipo é de súbito colocado diante do ódio e do amor ao mesmo tempo. A infelicidade de Édipo consiste em ter sido forçado a juntar dentro de si dois instintos, de vida e de morte, que Deus, na sua divina e infinita sabedoria, separou, afastou, colocou em receptáculos distintos que não se encontram, como descrito na seção anterior. Esta junção não é suportada por Édipo. Produz-se a convulsão destrutiva. O rei Édipo mutila seu próprio corpo - talvez, por um lado, como expressão da violência do encontro de dois instintos e, por outro, como tentativa vã de anular de novo a percepção. A automutilação não basta para conter toda a violência: exila-se, não há lugar para a conjunção amor-ódio.

Simples proximidade ou encontro de instintos não resulta em integração.

 

3. O relacionamento mãe-filho

Uma senhora grávida padece de hiperêmese grave nos três primeiros meses de gravidez. Durante o dia, é acometida de náuseas e vômitos incoercíveis, que a impedem de alimentar-se; sofre de intenso mal-estar e astenia profunda, sendo obrigada a permanecer acamada, sem poder desenvolver qualquer espécie de atividade.

Às nove horas da noite, aproximadamente, toda esta sintomatologia desaparece, sente-se bem, com ótima disposição; alimenta-se com gosto, abundantemente, e entrega-se feliz e jubilosa à confecção do enxoval da criança esperada.

Um novo ser é concebido. O Messias está por vir.

Durante o dia, o corpo da mulher é atormentado pelo ataque violento do embrião e feto que contém. Será isso a manifestação da agressão hostil sofrida pela futura mãe e, ao mesmo tempo, a expressão do ódio desta contra seu filho que ainda nem nasceu?

À noite, há a manifestação, a expressão de outros sentimentos. A mulher revela sentir-se gratificada pela vinda de um novo ser, que lhe traz bem-aventurança e felicidade, e dedica todo o amor à criança esperada.

Esta senhora expressa, desta forma, algum grau de percepção da existência concomitante de dois sentimentos opostos, o amor e o ódio. A coexistência é transformada em alternância no tempo, dia e noite. Diria que há cisão e separação dos instintos. É de se notar, porém, o fato de que esta cisão é tão radical como a relatada na primeira seção. Embora cindidos, os dois instintos estão contidos no mesmo receptáculo, futura mãe, não havendo aquele distanciamento enorme no espaço físico concreto nem a separação em receptáculos distintos que nunca se encontram. Esta aproximação no espaço físico concreto simbolizaria a aproximação dentro do espaço mental.

Com base no exposto, penso ainda poder supor que há algum grau de percepção da realidade psíquica por parte desta futura mãe, a percepção da presença de ódio e de amor diante da gravidez. Por que então não produz a convulsão destrutiva observada na seção precedente?

Em primeiro lugar, teremos que apontar alguma alteração na qualidade de sentimentos, de ódio e de amor. Aqui, o ódio não é tão radical como nos casos anteriores: produz apenas morte simbólica; o amor também não é tão puro, a ponto de excluir peremptoriamente a presença de qualquer traço de ódio na mesma pessoa. O ódio é menos ódio, e o amor, menos amor. Os sentimentos estão mais mitigados.

Em segundo lugar, a percepção não é tão clara, graças à existência de algum grau de cisão e, mais importante para o nosso estudo, ao uso de elemento psicossomático para abrandar o efeito do encontro de dois instintos opostos. A manifestação psicossomática é, ao mesmo tempo, expressão de percepção da coexistência amor-ódio e defesa contra esta percepção.

Citarei mais um exemplo, passível da mesma interpretação.

Uma senhora dá à luz um menino normal e sadio, a termo, de parto fácil, depois de uma gestação sem incidentes.

Logo após o parto, a mãe constata, com grande consternação, a ausência de lactação. O recém-nascido é criado à mamadeira, bem-aceita desde o início, o que promove crescimento somatopsíquico favorável. O relacionamento mãe-filho é excelente, podendo a mãe gozar da maternidade feliz, gratificante, diante do menino vivo e alegre.

Nesta senhora, a agalactia, a manifestação física, também seria resultante de algum grau de percepção do sentimento de perseguição e de ódio. O impulso destrutivo, genocídico do recém-nascido, provavelmente incrementado pela intuição da existência de agressão, ganha expressão na sintomatologia somática. Para esta senhora, porém, seu ódio não chega a se concretizar através do filicídio: permanece dentro dos limites do assassínio simbólico. Encontrando na agalactia a expressão apropriada de ódio, pode fazer uso livre de seu sentimento de cura.

É possível supor que o recém-nascido, não sendo amamentado no seio, pôde livrar-se da angústia genocídica, conseguindo assim ter desenvolvimento favorável.

Inegável a presença de algum grau de percepção de sentimento de ódio nesta senhora. Já foi mencionado o sentimento de consternação experimentado ao tomar conhecimento de sua agalactia.

 

4. A situação analítica

Uma senhora casada, de meia-idade, após vários anos de análise, qualificada por ela como tendo sido muito bem aproveitada, começa a apresentar sintomatologia somática, caracterizada por dores na coluna lombar cérvico-dorsal, suficientemente intensas para torná-la incapacitada para seus afazeres domésticos. Esta sintomatologia é rebelde ao tratamento habitual conservador, sendo indicada intervenção cirúrgica, rejeitada pela analisanda.

Como foi mencionado, a analisanda acha ter aproveitado bem a análise, sentindo-se agora feliz, com grande capacidade para o trabalho que a gratifica. Lembra-se de ter tido sintomatologia semelhante logo após o casamento, desaparecendo algum tempo depois, de modo imperceptível.

Como interpretar o fato aqui mencionado?

Usando a linguagem grosseira, há a possibilidade de considerar as manifestações somáticas como consequência ou expressão da patologia mental, esperando a "cura" através do processo psicanalítico. Segundo este ponto de vista, o aparecimento ou reaparecimento da sintomatologia somática deveria ser considerado como fracasso ou, no mínimo, ineficácia do processo analítico. A analisanda obteve progresso mental pela análise. Difícil pensar em fracasso. Diz a analisanda que teve sintomatologia semelhante logo após o casamento; significaria estar se sentindo agora casada com o analista, tão íntimo e verdadeiro o vínculo existente entre os dois. Se assim é, não poderia pensar em ineficácia nem em fracasso da análise - pelo contrário, pensaria em seu êxito.

Nas seções anteriores, apresentamos a hipótese de que a manifestação somática seria a consequência, a expressão e também a defesa contra a percepção da realidade psíquica, da presença de amor e de ódio no seu relacionamento.

Na situação analítica, o analista nasce para a analisanda e esta para o analista. Este relacionamento é pleno de amor e de ódio. Vários anos de trabalho analítico teriam conduzido a analisanda a ter percepção deste fato. Daí o reaparecimento de manifestação somática. Um relacionamento em que existe ao mesmo tempo o amor e o ódio é relacionamento integral, total e verdadeiro, isto é, casamento.

A hipótese provisória para futuros estudos e pesquisas é esta: a manifestação psicossomática, se ainda não é integração, poderia ser prenuncio desta, pois denota a presença de algum grau de percepção da realidade psíquica, com a atenuação do mecanismo de cisão e de negação.

 

Nota

1 Trabalho original publicado em 1983: Revista Brasileira de Psicanálise, 17(1),53-61.

 

Referência

A Bíblia Sagrada. (1960). Rio de Janeiro: Sociedade Bíblica do Brasil.         [ Links ]

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