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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo Apr./June 2016

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Silvana Rea

Editora

 

 

Diz o jovem agregado Inácio, no conto machadiano "Uns braços", que da casa que o abrigara não conseguia fugir porque se sentia "agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina". E continua, explicando ao leitor, que de tão belos e cheios, de tão bonitos e frescos, estes braços fechavam-lhe um parêntesis no difícil período que vivia (Assis, 2004, pp. 43 e 46).

Cito Machado de Assis porque esta passagem aborda a fascinação pelos braços nus de Severina associada a um recurso ortográfico, o parêntesis. Mas "braços entre parêntesis" é mais que ortografia - é linguagem poética. Porque são braços que fecham um abraço que contém e ao mesmo tempo cria um espaço retirado do momento de dificuldade; um oásis do qual escapar seria o equivalente à morte.

Ora, desde que Freud iniciou o seu trabalho com as pacientes histéricas, o conhecimento do corpo não se traduz apenas pelos processos orgânicos - a conversão, entendida como linguagem, apresenta um corpo que se comunica a partir de outra ordem. Como linguagem, portanto, o corpo torna-se um significante, ainda que muitas vezes em nossas clínicas, depois que o corpo torna-se "palavrizável", ele seja deixado de lado.

De fato, por muito tempo na história o corpo foi esquecido, visto que a disciplina histórica acalentava a ideia de que ele pertencia à natureza, e não à cultura. Mas o corpo é cultura. Ele tem história, faz parte dela e até a constitui, como as estruturas econômicas, sociais e representações mentais das quais ele é produto e agente (Le Goff & Truong, 2006). Como nos diz Aulagnier (1994), da mesma maneira que não há corpo sem sombra, não há corpo sem história.

Desde os primórdios, o ser humano apresenta uma preocupação com o corpo que o leva a retocá-lo de múltiplas maneiras: tatuagem, escarificações e, mais recentemente, maquiagem e cirurgias plásticas estéticas. O homem não nasce com um arcabouço instintivo suficiente, e sim com uma pele muito fina e frágil, necessitando de uma proteção artificial de natureza física, térmica, de contato e, acima de tudo, simbólica (Thévoz, 1984).

Mas sabemos que, a partir da modernidade, ocorre uma ruptura com as tradições e uma consequente inoperância das instituições para oferecer significados e referências sociais. Em um ambiente pleno de incertezas, o investimento corporal conquista um estatuto identitário sem precedentes.

Vivemos hoje em um mundo que se torna cada vez mais abstrato, de relações virtuais e ausentes, como observa Le Breton (2009) ao afirmar que as novas tecnologias, com seus discursos, nos fazem sonhar com um corpo tão perfeito quanto o computador e nos convidam a considerar a sua qualidade carnal como algo que, por ser imperfeito, deveria ser descartado. O homem contemporâneo pensa seu corpo como material e matéria falha, corrigível e, por fim, dispensável.

Proposta reiterada parcialmente por Ortega (2008), que aponta o paradoxo da rejeição do corpo - corpo que é o atestado de nossa existência - em prol de um ideal midiático padronizado e sem carnalidade. E mais: não podendo mudar o mundo, resta-nos mudar o corpo, o único espaço remanescente de criação e de utopia. A experiência de um corpo falido leva à necessidade de completá-lo por iniciativa pessoal, com intervenções que conduzem a uma recriação de si.

Nesta perspectiva, Eagleton (1998) afirma que, justamente por estarmos diante de relações abstratas e virtuais, o corpo nos dá alguma certeza sensorial, constituindo formas de falar do humano e um acesso pelo qual o homem pode alcançar sua interioridade.

Todas estas abordagens, concordantes ou não, mostram que o corpo é uma preocupação contemporânea e está no centro das discussões multidisciplinares. Lugar onde sou, local de significação e sentido, sujeito e objeto das representações, ele é sede daquilo que sinto, aprendo e memorizo. É simultaneamente possibilidade e condição daquilo que experimento e de como entendo o que experimento. Ele é lugar de existência, dá lugar à existência e é o ser da existência, o que exige que se olhe a experiência do sujeito com novos olhos (Nancy, 2000).

Isso nos leva a pensar qual o lugar do corpo em nossas clínicas. Quais seriam as experiências que ocorrem neste encontro de dois corpos - do analista e do analisando - e de suas respectivas histórias? Como o conhecimento sensível delas participa? Como a psicanálise nos auxilia a compreender as diversas construções e organizações dos corpos contemporâneos?

Afinal, o corpo nos apresenta um tipo de produção que propõe a expansão de nossa escuta a diferentes modos de simbolização que merecem ser entendidos como tais.

Pois, como argumenta Pontalis (1988), acreditamos que é a memória que nos assegura certa continuidade, mas é o nosso corpo que,

apesar de rupturas, desordens, mudanças de toda natureza, faz com que possamos reconhecer esta vida como nossa, fazer decorrer de um mesmo ponto reportar ao mesmo prenome "eu", atos, emoções e pensamentos, chegar a confundir o mundo com o olhar que sobre ele depositamos. (p. 129)

 

Referências

Assis, M. de (2004). Uns braços. In M. de Assis, Várias histórias (pp. 37-53). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Aulagnier, P. et al. (1994). Cuerpo, historia, interpretación. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Eagleton, T. (1998). As ilusões do pós-modernismo (E. Barbosa, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Le Breton, D. (2009, 7 de maio). "Tudo o que está no mundo passa pelo corpo". Entrevista com David Le Breton. Recuperado em 9 jun. 2016, de http://www. ihu.unisinos.br/noticias/noticias-arquivadas/22047--%Ó0tudo-o-que-esta-no-mundo-passa-pelo-corpo%Ó0--entrevista-com-david-le-breton.         [ Links ]

Le Goff, J. & Truong, N. (2006). Uma história do corpo na Idade Média (M. F. Peres, Trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Nancy, J.-L. (2000). Corpus (T. Maia, Trad.). Lisboa: Vega Passagens.         [ Links ]

Ortega, F. (2008). O corpo incerto. Rio de Janeiro: Garamond.         [ Links ]

Pontalis, J.-B. (1988). O amor dos começos (S. Senra, Trad.). Rio de Janeiro: Globo.         [ Links ]

Thévoz, M. (1984). Le corps peint. Genève: Skira.         [ Links ]

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