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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2018

 

POLÍTICA

 

Política, o Outro da psicanálise: terror e radicalização

 

Politics, the Other of Psychoanalysis: terror and radicalization

 

Política, el Otro del psicoanálisis: terror y radicalización

 

La politique, l'Autre de la psychanalyse: terreur et radicalisation

 

 

Luiz Eduardo Prado de Oliveira

Professor emérito de psicopatologia e diretor de pesquisas no Centro de Pesquisa em Psicanálise, Medicina e Sociedade da Universidade de Paris 7 - Denis Diderot. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Membro titular do Espace Analytique, em Paris

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir de eventos terroristas recentes, pretende-se mostrar como os psicanalistas, já há muito tempo, têm se preocupado com o terror disseminado, desde a ascensão do nazismo até a Guerra do Vietnã, desde o pavor de mulheres e crianças diante de bombardeios até situações clínicas em que o medo se instala. Neste percurso, evocam-se diversos autores que se preocuparam com o terror e que ofereceram subsídios à psicanálise, esclarecendo suas dificuldades atuais com formas manifestas de terror social.

Palavras-chave: terror social, mercadoria, assassinato, mulheres, crianças, psicanálise


ABSTRACT

In light of recent terrorist attacks, the author's purpose is to show how psychoanalysts have long studied the issue of widespread terror. His paper examines from the rise of Nazism to the Vietnam War, from the horror that women and children experienced when attacked by bombs to psychoanalytical therapies in which fear is established. Following this path, this paper mentions authors who tackled terror, authors from whose ideas Psychoanalysis might benefit by enabling the understanding of current issues when facing manifest ways of social terror.

Keywords: social terror, merchandise, murder, women, children, Psychoanalysis


RESUMEN

A partir de los recientes acontecimientos terroristas, aquí se pretende mostrar cómo los psicoanalistas se han interesado desde siempre por el terror diseminado, desde la ascensión del nazismo hasta la guerra de Vietnam, desde el pavor de las mujeres y los niños frente a los bombardeos hasta las situaciones clínicas donde el miedo se ha instaurado. En este recorrido, el autor menciona a diversos autores que se han interesado por el terror y que podrían traer beneficios al psicoanálisis, destacando sus dificultades frente a formas manifiestas del terror social.

Palabras clave: terror social, mercancías, asesinato, mujeres, niños, psicoanálisis


RÉSUMÉ

À partir d'événements terroristes récents, cet article essaie de montrer comment depuis toujours les psychanalystes se sont souciés de la terreur disséminée: depuis l'ascension du Nazisme jusqu'à la guerre du Vietnam, depuis la frayeur des femmes et des enfants face à des bombardements, jusqu'à l'installation de la peur dans certaines situations cliniques. Ce faisant, le texte évoque différents auteurs qui se sont souciés de la terreur et qui pourraient apporter des subsides à la psychanalyse, de façon à éclairer ses difficultés actuelles face à des formes manifestes de terreur sociale.

Mots-clés: terreur sociale, marchandise, assassinat, femmes, enfants, psychanalyse


 

 

Eventos recentes na história mundial, dos ataques às Torres Gêmeas nos Estados Unidos aos assassinatos indiscriminados na Europa, trouxeram à tona o tema do terrorismo. Tais eventos provocaram horror e dor entre as populações atingidas. Muitos tentaram explicá-los, inclusive psicanalistas. Atualmente, vários deles, franceses, preocupam-se demais com a radicalização. Com esse termo, aludem ao movimento que se desenvolve entre os jovens de origem árabe dos subúrbios parisienses, e não à radicalização dos mercados de capital ou à sofisticação das armas de destruição usadas pelos exércitos dos centros mundiais de poder.

Uma consulta ao Psychoanalytic Electronic Publishing (PEP) mostra que a preocupação com o terror e o terrorismo existe desde sempre entre os psicanalistas, sendo muito variada. Em cerca de 100 artigos contendo a palavra terror no título, vemos que psicanalistas se interrogaram sobre o terror nazista e suas consequências para indivíduos e sociedades. Cabe ressaltar que não se preocuparam com os terroristas que se opuseram aos nazistas nem com os terroristas judeus que lutaram por sua instalação na Palestina, vistos por certo como combatentes legítimos. Dedicaram-se ainda ao terror das populações vietnamitas com os bombardeios norte-americanos - também considerados terroristas -, particularmente ao terror das crianças, muitas delas exiladas com os pais em países neutros escandinavos, na Grã-Bretanha ou nos próprios Estados Unidos. Os psicanalistas desses países contavam com ilustres predecessores: Anna Freud e Dorothy Burlingham publicaram War and children [Guerra e crianças] (1943), volumosos relatórios psicanalíticos, feitos a pedido do governo norte-americano, sobre as medidas a tomar para a proteção infantojuvenil; Anna Freud também abordou o terror de crianças salvas dos campos de concentração; Donald Winnicott, por sua vez, escreveu “Children in the war” [Crianças na guerra] (1943/2016b) e “Children hostels in war and peace” [Alojamentos para crianças em tempo de guerra e em tempo de paz] (1948/2016a). É como se hoje psicanalistas brasileiros trabalhassem com crianças de comunidades carentes (urbanas e rurais), que vivem em estado de guerra civil permanente, e estudassem seu terror e seus traumatismos.

No PEP, encontramos igualmente artigos sobre o terror dos náufragos vietnamitas, os chamados boat people, precursores dos náufragos atuais no Mediterrâneo, em busca das margens europeias; o terror dos povos hútu e tútsi na África, nas intermináveis guerras que assolam o continente e que lembram os pogroms contra os judeus na Europa; o terror das populações de origem africana em solo americano, terror ainda atual tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, com suas incalculáveis consequências transgeracionais moldando modos de ser e aparelhos psíquicos, o terror externo e o terror interno (Yellin & Epstein, 2013).1

Sabendo que são necessárias várias gerações, além de uma perlaboração consequente, para que um traumatismo comece a se dissolver, perguntemo-nos quantas deverão passar para que comece a se acalmar o violento traumatismo do transplante e do genocídio das populações africanas escravizadas até o fim do século XIX. A violência a que assistimos cotidianamente seria fruto desse traumatismo e dos modos de ser escravocratas, persistentes, arrogantes e cheios de menosprezo. Em nosso país, por exemplo, o número total de assassinatos foi de 59 mil em 2015, 61 mil no ano seguinte e 21 mil nos primeiros cinco meses de 2018 (“Brasil teve mais de 21 mil assassinatos”, 2018).

Ao terrorismo que tem como alvo cidadãos de descendência africana, somam-se outros, generalizados: violências policiais banalizadas; assassinatos impunes; prisões transbordando de prisioneiros; ataques repetidos contra escolas, universidades, igrejas, templos, mesquitas, sinagogas, supermercados, casas noturnas, cabarés, colônias de férias, festas populares, sindicatos e organizações de trabalhadores; crises econômicas, com bolhas especulativas imobiliárias; violentas perdas de situações sociais que pareciam estabilizadas (Soldz, 2011). Acrescente-se ainda o terror cotidiano das mulheres: sabemos que na França uma mulher é assassinada a cada três dias, e que na Europa, em 2015, mais de 200 mil crimes de natureza sexual foram denunciados, nos quais 90% das vítimas eram mulheres e 99% dos acusados eram homens. No Brasil, dados apontam meio milhão de estupros por ano (isto é, um estupro a cada 11 minutos), 10 estupros coletivos por dia, com 70% das vítimas sendo crianças ou adolescentes (Soares, 2017).

Pergunta-se: qual é a especificidade de um ato terrorista? Que outras radicalizações importam além das violências desse terror generalizado (Kahn, 2006)? Nenhum psicanalista, nenhum teórico escreve sobre isso. Laplanche (1987) abordou a sedução generalizada, ligada à generalização do trauma. Mais do que nos interrogarmos sobre o que a psicanálise elabora para compreender essa situação (provavelmente encontrando respostas decepcionantes), cumpre refletir sobre as consequências dessas circunstâncias para o pensamento em geral e para a psicanálise em particular. Qual é de fato o Outro sobre o qual tanto falamos senão o capital, ou seja, o terror? Que forclusão impera, que identificação projetiva, senão as que incidem sobre essa violência extrema e dela decorrem? O outro, a mercadoria, o objeto a, o consumo. As teses sobre a morte do pai ou sobre a pulsão de morte, para que nos servissem ainda, necessitariam uma abordagem que levasse em conta o que Michel Foucault (1969) chamou de arqueologia do saber e, mais tarde, de ontologia histórica de nós mesmos (Revel, 2010). Como articular teses sobre o assassinato do pai com a realidade gritante do assassinato de mulheres e de crianças? Em “A criança malvinda e sua pulsão de morte” (1929/1982),2 Sándor Ferenczi propõe ferramentas que nos permitem compreender melhor o assassinato de crianças e, por extensão, o de mulheres. Não obstante a doxa da leitura de Totem e tabu (Freud, 1913/2010), que faz do texto um ícone do assassinato do pai, o texto mostra a anterioridade da mãe. O que a realidade mostra é que as hordas de malvindos não cessam de aumentar.

A sedução generalizada é exercida constantemente pela mercadoria. Sua sedução e seu terror exprimem-se de formas que não cessam de se multiplicar, proliferação sem limites do objeto a, obscuro objeto do desejo, tão terrificante quanto desejado. Terror que se tem da psicanálise e da cura que pode trazer (Holloway, 2013; Sprince, 1971); terror diante do próprio desejo (Pearlman, 2005); terror permanente sentido pelas crianças (Ornstein, 2012). O terror engendra um estado de clivagem, em que o outro é o inimigo, e frequentemente também o Outro (Joannidis, 2013). Essa situação não poderia deixar de ter consequência para a própria teoria psicanalítica (Connolly, 2003). Lembro-me de ter escrito um artigo mostrando o isomorfismo entre a teoria kleiniana e as situações de terror pelas quais Melanie Klein passou, desde a Primeira Guerra Mundial até o bombardeio de Londres, e como sua teoria se aclimatou na América do Sul, onde as condições de terror social se assemelhavam, mesmo que de longe, às que tanto parecem ter marcado o pensamento da autora (Prado de Oliveira, 1981). Desapareceram hoje? Ou nos habituamos? Uma das consequências do terror, a schize especular, parece se instalar e se multiplicar entre os psicanalistas, enquanto diminui a capacidade de nos empenharmos contra o terror que nos cerca. Entre 1925 e 1930, psicanalistas da Áustria, da Alemanha e da Inglaterra multiplicaram os centros de atendimento popular, muitas vezes gratuitos, utilizando suas fortunas pessoais ou as de seus amigos. Onde estamos hoje, por exemplo, no Brasil?

Assim, parece que o terrorismo presente, em que pese o caráter espetacular de seus atos, não é mais violento do que outros terrorismos já conhecidos e ignorados. Pelo contrário, a impressão é que nossa capacidade de pensar a respeito, inclusive de modo psicanalítico, se empobreceu e nossa alienação se ampliou. Em momento nenhum nos interessamos pelo terror que sofreram os terroristas de hoje, o dilúvio de fogo dos bombardeios de seus povos e cidades. Que incidência tem sobre nós e sobre nossas capacidades analíticas a generalização do terror? Que incidência têm sobre nós e sobre nossas capacidades de pensar a generalização da miséria e a instabilidade social?

Na França, o terror tem uma história já secular. Por exemplo, Jacques Lacan menciona algumas vezes um escritor e ensaísta, Jean Paulhan, particularmente seu livro, Les fleurs de Tarbes, ou La terreur dans les lettres [As flores de Tarbes, ou O terror nas letras] (1941/1990). Durante 10 anos, Lacan o evoca. No Seminário 9 (1961-1962), sobre a identificação, menciona o prefácio feito por Paulhan, logo após à guerra, por ocasião da edição da Justine, de Sade. Lacan acredita ler entre as linhas do livro de Paulhan uma alusão a Sade e insiste que seu público leia Paulhan. Sade teria sido um terrorista, sabemos hoje, o primeiro grande terrorista; em todo caso, o primeiro desde Torquemada, grande chefe da Inquisição espanhola. Devemos comentar Paulhan de maneira extensiva para entender o que seu livro implica. No Seminário 12 (1964-1965), sobre os problemas cruciais para a psicanálise, Lacan retorna a Paulhan ao tratar da questão da proximidade entre literatura e psicanálise, vendo nele um seu predecessor. Volta a ele uma última vez no Seminário 20 (1972-1973), quando um artigo de Paulhan o estimula a se interessar vivamente pelo problema dos provérbios enquanto domínio particular do significante. Início dos anos 1960, meados dessa mesma década, início dos anos 1970: Lacan leu atentamente Paulhan.

Quem foi esse intelectual de quem pouco se fala hoje? A partir de 1925, Paulhan, então com cerca de 40 anos, dirigiu La Nouvelle Revue Française, uma revista importante, que marcou muito a vida intelectual e literária do país. Paulhan esteve então próximo dos dadaístas. Quando os nazistas invadiram a França, em 1940, Paulhan foi um dos raros escritores a entrar para a Resistência. O terror e a propaganda foram as principais armas dos que combateram o poder alemão. Tentavam aterrorizar os militares alemães, revidando assim os crimes que cometiam. Aterrorizavam os próprios franceses que colaboravam com os alemães. Para os resistentes, o terror eram os alemães, que por sua vez os consideravam terroristas. O interessante é que, após a guerra, quando os escritores comunistas começaram a aterrorizar os escritores colaboracionistas, Paulhan tomou a defesa desses últimos.

Entretanto, começara a elaborar o livro mencionado, As flores de Tarbes, já há muito tempo. A primeira versão publicada data de 1936, quando os nazistas estavam há três anos no poder, como se Paulhan previsse a forma de resistência a adotar ou como se adotasse a primeira forma de resistência de alguns alemães. Uma segunda versão do livro foi publicada em 1941, pouco depois da invasão alemã. Por que este título, As flores de Tarbes? No sudoeste da França, pouco depois de Toulouse, aos pés dos Pireneus, existe uma cidadezinha chamada Tarbes. Seu jardim se distingue de milhares de outros, similares. Conta a lenda que, na porta do jardim, encontra-se o aviso: “Proibido entrar com flores”.

Quanto ao subtítulo, O terror nas letras, muitas interpretações existem sobre seu significado. Alguns pretendem que Paulhan busca denunciar o terror exercido pela retórica. O fato é que quase cada capítulo do livro indica o terror: “As palavras dão medo”; “O terror se justifica”; “De um terror realizado”. Mesmo que um de seus subtítulos, “A retórica, ou O terror perfeito”, acentue a arte do discurso como arma privilegiada do terror, o fato é que, para Paulhan, a simples palavra já contém o terror, na medida em que pretende acaparar o real. Se os psicanalistas se interessarem por Paulhan, melhor compreenderão A violência da interpretação, obra de Piera Aulagnier, e também o lugar particular de Freud e Lacan, mestres em retórica.

A palavra terror aparece na vida política e cultural por ocasião da Revolução Francesa. Alguns consideram que a própria revolução já era terrorista. Outros acreditam que o terror começou com a instauração dos tribunais revolucionários, em março de 1793. Todos concordam, porém, em datar o final do terror em 28 de julho de 1794, quando Robespierre foi executado, como se o terror tivesse dependido de um único homem.

Em A ópera de três vinténs (1928/1997), Bertolt Brecht diz: “Que crime comete um assaltante de bancos em comparação com os crimes que cometeram os donos de bancos?” (ato 3, cena 9); “Procuro um criminoso e encontro o chefe da polícia” (ato 2, cena 6). Por analogia, que crime comete quem mata o pai em comparação com os crimes que cometeu o pai? Os desejos pedófilos de Laio (pai de Édipo) o levaram a trair a hospitalidade de seu amigo Pélops, estuprando o filho dele, Crisipo. Os pais de filhos assassinos projetam sobre eles sombras malditas.

Walter Benjamin (1921/2012) dividiu a história em dois períodos: um, anterior a Deus, quando reinava a violência; o outro, quando só Ele passou a exercê-la. O filósofo considerava os terroristas como sobreviventes da época heroica primeira, e Deus como detentor do supremo terror. Frequentemente, os psicanalistas que aparecem no PEP como estudiosos do assunto atribuem à religião uma função aterrorizante. A purificação seria uma consequência do terror; a catarse, uma das origens da psicanálise, provém do terror.

No entanto, antes de Brecht e de Benjamin, na Rússia czarista do século XIX, Fiódor Dostoiévski, acusado de terrorismo e condenado à morte, foi enviado à prisão. Acusavam-no de ter participado de um grupo que advogava o terror e cujos militantes dispunham-se a pagar com a vida por seus atos terroristas. O escritor lutava por algo maior. Com efeito, psicanalistas estudiosos do terror na Revolução Francesa vincularam terrorismo e esperança, da mesma forma que na religião. Existe de fato uma religião do terror, assim como existe uma religião dos exércitos. Ambas esperam a paz.

Os militantes islamistas que recentemente praticaram o terror na Europa vingavam-se contra os crimes de guerra perpetrados em seus países por quem os bombardeava. Pagaram todos imediatamente com a própria vida, como se buscassem essa punição. O terror era recíproco. Duas coisas impressionantes ocorreram com esses militantes: o reduzido número de suas vítimas em relação ao que poderia ter sido; a rapidez da morte que buscaram para si próprios. Reproduziam assim o que acontecera com os militantes terroristas russos, como se o assassinato engendrasse uma insuportável culpa e a consequente necessidade de expiação.

Na época heroica, um matou o pai abusivo, o outro executou a mãe, justiceira solitária, e o terceiro nada fez além de pregar. Entretanto, os deuses perdoaram Édipo e Orestes, enquanto o terror monoteísta nascente torturou e eliminou o filho de Deus, Jesus.

Winnicott (1956/1975) foi talvez o primeiro a postular que a tendência antissocial é portadora de esperança. Foi essa a posição de Benjamin e, mais tarde, também a de Giorgio Agamben em Homo sacer (1995), um de seus últimos livros. No direito romano arcaico, os homens sagrados eram aqueles que se podia matar impunemente, mas que não podiam ser sacrificados. Tais eram os exilados, os refugiados políticos, os deportados, todos aqueles que não tinham nenhum direito cívico. O homo sacer foi vítima dos bombardeios norte-americanos e europeus no Oriente Médio e alhures, foi torturado em Guantánamo e Abu Ghraib, em todas as prisões do mundo onde se tortura. O homo sacer mora nas favelas e nos campos brasileiros, às vezes em precintos de representação civil, multiplicando-se sempre que crimes continuam impunes.

Agamben leu com assiduidade Primo Levi (1946), autor singular, testemunha dos campos de concentração, onde distinguiu, entre os judeus, a categoria dos muçulmanos, aqueles para os quais nenhuma esperança restava e cuja eliminação era iminente. A comparação entre judeus e muçulmanos, nessas circunstâncias, é curiosa. Em situações extremas, eles se identificam. Os terroristas de hoje, combatentes de suas causas, são os que escaparam aos assassinatos de massa conduzidos por poderes soberanos.

Cecília Meireles, entre outros poemas, escreveu o Romanceiro da Inconfidência (1953/2008), cantando os que hoje seriam considerados terroristas:

A terra tão rica

e - ó almas inertes! -

o povo tão pobre...

Ninguém que proteste! (p. 106)

O terrorista almeja vingar a todos. Quando todas as esferas do poder estão ocupadas pelo terror, é ingênuo não denunciá-lo e pretender que outros sejam os terroristas. Ainda com Cecília:

(Palpita a noite repleta

de fantasmas, de presságios)

E as ideias. (p. 93)

A violência de indivíduos ou de pequenos grupos sempre foi considerada terrorista, ao contrário da violência exercida pelos exércitos, embora as mortes e os demais danos provocados por esses últimos sejam incomparavelmente maiores.

Do ponto de vista da psicanálise, podemos considerar que, sem se restringir a elas, o terror aparece em situações dominadas pela simetria e pela especularidade, com acusações ou ameaças mútuas, das quais desaparecem a justiça ou a esperança de uma justiça, que supõem um terceiro. Deus ou a divindade, a religião, encarnam a esperança de uma justiça tão mais imaginária quanto mais irreal, ou cuja realização é adiada para após a morte. Há um radicalismo da religião e uma radicalização na escolha de uma solução religiosa, que se torna mais violenta ao esconder outra radicalização, qual seja, a dos mercados e de suas lógicas, bem reais. Uns e outros, radicalismos e radicalizações, tendem a desaparecer onde a potência da mercadoria é freada pela organização social, embora surtos de terror sejam sempre possíveis, como os atentados praticados por Anders Breivik na Noruega, em 2011.

No livro Living with terror, working with trauma [Vivendo com o terror, trabalhando com o trauma] (2006), Kahn apresenta a pergunta “O que é o terrorismo?” e enumera algumas de suas consequências, cuja principal parece ser a desintegração, podemos dizer, de corpos, de grupos sociais, de pensamentos, de emoções, através da instalação do pavor. Curiosamente, o autor estabelece um vínculo entre o terror e a futilidade. Parece pensar que esta reside no fato de que os terroristas nunca atingem seus objetivos. Os terroristas, combatentes de suas guerras, que atacaram diversos países desenvolvidos, nunca conseguiram destruir o intento belicoso dos que os atacavam, da mesma forma que os black blocs nunca conseguiram mover uma poeira do sistema que pretendiam atacar. De fato, nem os franceses nem os norte-americanos conseguiram quebrar a determinação dos vietnamitas, nem os russos nem os norte-americanos conseguiram vencer as guerras no Afeganistão, nem a paz nem a prosperidade resultaram da invasão ao Iraque, a tal ponto que podemos nos perguntar se o objetivo da guerra não é simplesmente se autoperpetu-ar, alimentando as indústrias ligadas a ela. Da mesma maneira, os terroristas bandidos que assolam o Brasil nunca conseguiram abalar as forças policiais ou militares que os atacam, nem intimidar o poder do qual elas emanam. Pelo contrário, pouco a pouco, vieram a infiltrá-las.

John Maynard Keynes, célebre economista que formulou as condições de resolução da crise de 1929, afirmou que o capitalismo necessita de indústrias que criem a destruição ou que não criem nada, e que estas viriam resolver outras crises. São a indústria bélica, a indústria espacial e também - surpresa! - a indústria da moda, em todas as suas declinações: roupas, cosméticos, decoração de interior, arquitetura, belas-artes... O terror e a guerra generalizados vão de par com a futilidade, com a inutilidade. O terror é fútil, mas também a futilidade engendra seu próprio terrorismo. Para conhecê-lo melhor, lembremo-nos de Roland Barthes (1967), que estudou o sistema da moda vestimentária. Podemos ampliá-lo, a fim de compreender o bombardeio permanente desencadeado pela televisão e pela publicidade, nas quais reina sem freios. O sistema terrorista da moda é de tal maneira invasivo, infiltra cada segundo de nosso cotidiano, que não há como existir fora dele; mesmo transformando-nos em anacoretas e cultuando o ascetismo, é duvidoso que essa renúncia escapasse a todo modismo, ainda que extrema.

Poderiamos agora retornar e interrogar a especificidade do terror que atingiu as Torres Gêmeas e as cidades da Europa, suscitando espanto e horror, como se não fosse esse o mesmo regime de terror cotidiano imposto às populações de origem dos terroristas combatentes, responsáveis por tais ataques. O poder soberano parece espantar-se e alardeia a ousadia da revolta da vida nua. Assim fazendo, esconde seu próprio terrorismo em guerras coloniais. Também instala um controle militar supostamente protetor em seus paises, realizando uma previsão de Karl Marx: um dos objetivos das guerras coloniais é desenvolver instrumentos de controle e dominação, que serão aplicados à população das metrópoles. Como a psicanálise pode trabalhar com a futilidade e com as constelações surgidas a partir dos conflitos entre colonizadores e colonizados? Certo é que, não o fazendo, corre o risco de transformar-se ela própria em sistema de moda e instrumento do terror da futilidade.

Ah, sim, e As flores de Tarbes? Paulhan quis mostrar, através da lenda de um jardim em que é proibido entrar com flores, que até mesmo levar flores ou ir a um jardim pode ser terrorista, o que sem dúvida seria o caso durante a guerra na qual lutou. O cartaz de proibição fazia parte do terror, como qualquer palavra ou significante. As flores eram as letras.

 

Referências

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Correspondência:
Luiz Eduardo Prado de Oliveira
107, Rue Mouffetard
75005 Paris, France
ledprado@gmail.com

Recebido em 13/8/2018
Aceito em 27/8/2018

 

 

1 Um artigo específico (Terr, 1989) aponta a transformação em terroristas dos que foram terrorizados.
2 Na edição brasileira, “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte”.

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