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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2018

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Do substantivo ao verbo: formulações sobre o luto na clínica contemporânea

 

From noun to verb: formulations on the mourning in the contemporary clinic

 

Del sustantivo al verbo: formulaciones acerca del duelo en la clínica contemporánea

 

Du nom au verbe: formulations sur le deuil dans la clinique contemporaine

 

 

Juliana Lang Lima

Membro do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA)

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora apresenta uma proposta de compreensão do homem contemporâneo e dos lutos com os quais ele necessita se haver em sua trajetória partindo da hipótese de que o luto atual guarda em si certas singularidades capazes de diferenciá-lo das manifestações de outrora. De forma geral, aponta o enlutamento do analisando do século XXI como algo que não se mostra na clínica com nitidez e exatidão, sendo mais perceptível através de sintomas, como sensações de vazio e depressão, do que como um processo natural da vida. Ao realizar uma nova aproximação entre luto e melancolia, incluindo aí um terceiro vértice, a depressão, busca sustentar a ideia de que o sofrimento humano na atualidade está frequentemente vinculado a uma crise em seus ideais, amplificada pela dificuldade de relação com a passagem do tempo.

Palavras-chave: luto, depressão, perda de ideais, passagem do tempo


ABSTRACT

The writing is a proposal of understanding the contemporary man and the griefs he needs to experience throughout his path. The author starts from the hypothesis that the present mourning has certain singularities which could differentiate it from past manifestations. In a general way, it points to the 21st century analysand's mourning as something that is not clearly and precisely shown in the clinical practice, something that is more perceptible through symptoms, such as feelings of emptiness and depression, than as a natural process of life. When the author offers a new approach between mourning and melancholy by including there a third vertex (depression), her purpose is to defend the idea that human suffering today is often linked to a crisis in human ideals. The difficulty of relating to the passage of time amplifies this crisis.

Keywords: mourning, depression, loss of ideals, passage of time


RESUMEN

El escrito presenta una propuesta de comprensión del hombre contemporáneo y de los lutos con los que necesita enfrentarse en su trayectoria, partiendo de la hipótesis de que el duelo actual guarda en sí ciertas singularidades capaces de diferenciarlo de las manifestaciones de antaño. En general, apunta al luto del analizando del siglo XXI como algo que no se muestra en la clínica con nitidez y exactitud, siendo más perceptible a través de síntomas, como sensaciones de vacío y depresión, que como un proceso natural de la vida. Al realizar una nueva aproximación entre luto y melancolía, incluyendo allí un tercer vértice, la depresión, se busca sostener la idea de que el sufrimiento humano en la actualidad está a menudo vinculado a una crisis en sus ideales, amplificada por su dificultad de relación con la misma el paso del tiempo.

Palabras clave: duelo, depresión, pérdida de ideales, paso del tiempo


RÉSUMÉ

L'écrit présente une proposition de compréhension de l'homme contemporain et des deuils auxquels il doit faire face sa trajectoire durant, en partant de l'hypothèse que le deuil garde en lui certaines singularités capables de le différencier des manifestations d'autrefois. De façon générale, il explique le deuil de l'analysant du XXIe siècle comme quelque chose qui ne se montre pas dans la clinique avec netteté et précision, en étant plus perceptible non comme un processus naturel de la vie, mais plutôt par les symptômes, tels que les sensations de vide et de dépression. En faisant une nouvelle approche entre le deuil et la mélancolie, y en introduisant un troisième aspect, la dépression, on cherche à soutenir l'idée que la souffrance humaine aujourd'hui est souvent liée à une crise dans ses idéaux, amplifiée par sa difficulté d'être en rapport avec le passage du temps.

Mots-clés: deuil, dépression, perte d'idéaux, passage du temps


 

 

Tem se tornado lugar-comum afirmar que habitamos uma época de narcisismos exacerbados, com predominância de sujeitos anestesiados, passivos, hipermedicados, alienados de seu desejo. É possível, no entanto, que as coisas nunca tenham sido muito diferentes disso (quiçá com outras roupagens, mas com essência por demais semelhante), estando o homem, com sua demanda pulsional constante, longe de ser considerado um ser sociável ou altruísta por natureza. Nesse sentido, além de apontar para a óbvia dificuldade de examinar um tempo do qual somos produto e agente, parece importante destacar o velho saudosismo que, ao agir como um derivado da amnésia infantil, com o prenúncio “No meu tempo era diferente”, autoriza-se todo tipo de idealização e distorção da realidade, privilegiando um tempo ido e projetando negativamente o futuro. Contudo, o escrito que aqui se apresenta, se não tem por objetivo endossar um discurso pessimista e catastrófico sobre nosso momento atual, também espera não se furtar a assinalar suas particularidades.

Das inquietudes derivadas destes tempos surge a convocação para discutir a questão do luto e suas expressões contemporâneas. A clínica psicanalítica não poderia nem deveria passar incólume pelos desafios de uma sociedade que se mostra simultaneamente apressada, exigente, promissora e grandiosa. Entre as inúmeras manifestações de vida e morte a que o humano encontra-se designado, o luto segue sendo uma espécie de enigma, podendo-se considerá-lo um intermediário entre saúde e patologia.

Partimos da hipótese de que o luto atual guarda em si certas singularidades capazes de diferenciá-lo das manifestações de outrora. De forma geral, constatamos que o enlutamento do analisando do século XXI mostra-se na clínica coberto por um véu que por vezes o obscurece, sendo mais perceptível através de sintomas, como sensações de vazio e depressão, do que como um processo natural da vida. Destacamos nesse cenário a passagem do tempo como fator de sofrimento: quando o imperativo é ser jovem e belo, a perda e a constatação da diferença tendem a ser dramaticamente vivenciadas.

Tomando como ponto inicial o conhecido texto de 1917, no qual Freud se utiliza da comparação com o luto para examinar a natureza da melancolia, realizamos uma nova aproximação entre ambos, para isso fazendo uso também de autores contemporâneos, a fim de incluir um terceiro vértice, a depressão. Seguiremos por esse caminho em busca de sustentar a ideia que norteia este texto, de que o sofrimento do homem contemporâneo está frequentemente vinculado a uma crise em seus ideais, amplificada por sua dificuldade de relação com a passagem do tempo.

 

1. Notas sobre melancolia, luto e depressão

Mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem.
(Belchior)

No centenário texto “Luto e melancolia” (1917/2006c), Freud define luto como reação diante de uma perda, não necessariamente de uma pessoa querida, como costuma aparecer no imaginário comum. Situações cotidianas, como o fracasso de uma relação amorosa, a perda de um emprego ou uma derrota no âmbito político, podem representar para o sujeito a morte de ideais, levando-o a um estado de ânimo igualmente doloroso. Enquanto na melancolia está dissipada a noção do que foi perdido e há um nítido empobrecimento do eu (o que a situa entre as neuroses narcísicas, em contraponto às neuroses de transferência), no luto o objeto faltante é facilmente apontado pelo sujeito. Na ausência das autocensuras e da expectativa de punição que caracterizam a melancolia, o luto demanda um tipo de trabalho específico,1 ou seja, um período necessário para a elaboração, através de um gradual e oscilante desligamento do objeto perdido, que resulta em deixar a libido livre para ligar-se a novos objetos posteriormente.

Ao comentar o fato de que a literatura psicanalítica pouco se ocupou das depressões neuróticas, mantendo seu foco nas psicoses depressivas, Abraham (1927/1970) aproxima depressão de neurose obsessiva, destacando a impossibilidade de amar, as tendências autoeróticas e um alto grau de ambivalência como pontos em comum entre ambas. Para o autor, a relação da melancolia com o luto estaria centrada numa questão de proporções: a primeira estaria para o segundo da mesma forma que a ansiedade generalizada para o medo comum.

Maria Rita Kehl (2009) associa-se a esse pensar indicando a depressão como sintoma social da atualidade - com sentido similar ao da melancolia descrita por Freud, mas pertencente ao campo das neuroses -, enfatizando ainda a importância de resgatá-la do terreno exclusivo da psiquiatria. Das manifestações partilhadas por ambas as afecções, poderíamos destacar fortes reações a perdas, dificuldade de separação e tendência à regressão e à ambivalência, sendo o complexo melancólico análogo a uma ferida aberta que capta toda a energia existente ao redor para se manter existindo.

Daniel Delouya (2008) lembra que o reconhecimento da perda do objeto, responsável por quadros melancólicos, também se encontra na gênese do psiquismo, marcando portanto a todos, e instaurando o nascimento de um afeto depressivo. Este, contudo, pode vir a ser desenvolvido como sensibilidade, no deixar-se tocar pelas inevitáveis experiências lastimáveis da vida, ou como predisposição à patologia, quando o abatimento e o luto conquistam territórios cada vez maiores.

Embora nem sempre evidentes, as diferenças entre melancolia e depressão seriam especialmente perceptíveis através do discurso, que no melancólico apresenta-se totalizante, negativista e fechado a questionamentos, e no depressivo denuncia um grande vazio de significações. Em consonância com o pensar dos autores mencionados, optamos por utilizar neste escrito o significante depressão para nos referir ao quadro desenvolvido por analisandos que, com frequência, encontramos na clínica atual e que padecem de um luto paradoxalmente intermitente e não vivido, tendo como objeto perdido o tempo passado, conforme ilustra a vinheta a seguir.

Adão, 68 anos, relata com mágoa e incredulidade ter sido chamado de vovô por um rapaz muito mais jovem que ele, a despeito de seus intensos esforços em aparentar menos idade, realizados por meio de sua vestimenta, de inúmeros tratamentos estéticos e ainda dos lugares que costuma frequentar. O fato, ocorrido numa breve discussão de trânsito, dispara no analisando uma profunda tristeza, tanto por perceber que seus reflexos não são mais os mesmos (o jovem, afinal, tinha razão em sua reclamação) quanto por evocar memórias de tempos em que sentia tudo poder. De uma juventude e uma adultez ricas e férteis sobreveio uma velhice com inseguranças, dívidas e privações. Para lutar contra a constatação de que a vida não lhe reserva todo o tempo que deseja, arrisca-se em relações sexuais desprotegidas, na maior parte das vezes com mulheres comprometidas e em lugares arriscados, como o carro estacionado em ruas desertas ou na beira da praia. O carro, símbolo fálico por excelência, representa o desejo de potência sentido por Adão, ao passo que o combate feroz contra o envelhecimento faz desprezar os ganhos provenientes deste - ao jogar fora o bebê com a água do banho, ignora o perigo das situações às quais se expõe, tomando-as, de forma simplista, por experiências que atestam que ele ainda está vivo. A passagem do tempo é sentida como inimiga, e o luto pela perda da juventude, não podendo ser sentido como tal, é sufocado ardilosamente numa perigosa combinação de pulsão de morte pouco domesticada com pulsão erótica pouco vitalizada.

Ainda que perdas sejam uma constante na vida do homem, nem todas são suficientemente assimiladas - ou, mais bem dito, “o valor da transitorie-dade é raro em nossa época” (Freud, 1916/2015, p. 222). Eis a passagem do tempo, inexorável, que se apresenta como um evento com contornos dramáticos ao humano e à sua tendência de recuar diante da dor. À constatação da transitoriedade monta-se uma oposição, uma vez que revela a fragilidade da existência, expondo de maneira peremptória a noção de finitude e fazendo expirar quaisquer possibilidades de onipotência. A revolta psíquica contra o luto, vivenciada tanto pelo poeta interlocutor de Freud no texto citado quanto pelo analisando cujo pequeno trecho do tratamento compartilhamos, demonstra o aprisionamento da libido a antigos objetos, ignorando a ideia de renovação contida na vida e na famosa música brasileira que escolhemos como epígrafe desta seção.

É também por esse caminho que segue Kehl (2009), ao esboçar uma ligação entre luto, temporalidade e transitoriedade, lançando a hipótese de que o homem contemporâneo está particularmente sujeito a se deprimir, quando em confronto com a cultura da velocidade da qual hoje todos fazemos parte. Fédida (2002) também associa a depressão a um desentendimento do sujeito com a temporalidade, como se houvesse um descompasso entre a aceleração externa e o singular formato interno. Segundo o autor, o deprimido sofre por ter sido submetido a precipitações e atropelos, necessitando de tempo - tempo de escuta, de descoberta de sua percepção interna das coisas, de construção de um ritmo próprio, de conciliação, de atribuir valor ao tempo.

Agamben (2007) é outro pensador contemporâneo a conferir à depressão um viés social, destacando a importância de um espaço intermediário entre narcisismo e escolha objetal. Esse local, que seria primordialmente terra de ninguém, e assim permanece, pouco preenchido, na melancolia grave, também se oferece como possibilidade de albergar importantes criações humanas, como a palavra e as formações simbólicas.

Seguindo na ideia do valor das palavras, elucidamos aqui a opção pelo nome Adão para designar o analisando antes citado: ao rememorar o primeiro homem, de acordo com a cultura judaico-cristã, realizamos uma tentativa de simbolizar e evocar algo que está nas origens do sujeito - a saber, seu narcisismo irrestrito e o consequente desejo de imortalidade. Acreditamos que Adão (e seu par, Eva, como veremos adiante) representa toda uma geração de analisandos que chegam hoje para atendimento em doloroso conflito com a passagem do tempo e com as coisas das quais se abdica a partir daí. É importante salientar que esse conflito, que a nosso ver encontra-se na base de muitos dos quadros depressivos da atualidade, não se apresenta apenas em pessoas com idade avançada, diante da constatação das inevitáveis perdas oriundas do envelhecimento. Vemos, assim, um sem-número de indivíduos aprisionados num tempo que não mais lhes pertence, sem poder usufruir o tempo atual.

Dados da Organização Mundial da Saúde (2016) mostram que a depressão já atinge pelo menos 350 milhões de pessoas, o que corresponde a 5% da população mundial e faz com que nos autorizemos a engrossar o coro dos que se referem à depressão como a expressão psicopatológica por excelência do homem atual, o mal do século XXI - como bem define Roudinesco (2000), uma estranha síndrome que atinge corpo e alma, misturando tristeza, apatia, busca por identidade e culto de si mesmo, prescindindo da ideia de que passar por lutos é uma exigência de todas as fases da vida.

 

2. Luto, corpo e amortecimento da existência

Socorro, não estou sentindo nada. Nem medo, nem calor, nem fogo. Não vai dar mais pra chorar nem pra rir.
(Arnaldo Antunes e Alice Ruiz)

Vivemos um cotidiano veloz, no qual se sobressai uma concepção utilitária da vida, concepção essa que elege como valor maior a produtividade. Aos analistas, como reflexo da cultura da pressa, chegam pedidos de tratamentos eficazes a serem executados no menor tempo e frequência possível. Tanto tristeza quanto luto tornaram-se dignos de rechaço, uma vez que a retirada libidinal exigida por esses processos compromete, ainda que momentaneamente, a produtividade do sujeito.

O tempo, diz-se por aí, anda exíguo. Curiosa contradição, quando percebemos que se vive cada vez mais, embora não necessariamente melhor, e que inúmeras pessoas procuram por análise justamente pela constatação do mau aproveitamento de seu tempo, que escoa por entre os dedos grudados numa tela de celular. Aqui poderiamos também aludir à máxima capitalista “Time is money” e depreender que, se o tempo é a moeda de maior valor dos dias atuais, sua passagem ocasionará previsível desgosto. Uma vez que nenhum minuto pode ser perdido, anuncia-se um simultâneo luto pelo passado e temor pelo futuro, cenário no qual a angústia se torna inevitável.

Numa releitura da letra freudiana, Marucco (1999) e Nasio (2005) assinalam a enfermidade do corpo como um dos destinos do luto, quando a desordem pulsional afeta as representações psíquicas de órgãos ou funções, produzindo alterações. A pulsão sexual, privada de seu objeto de satisfação, desgoverna-se, e aquilo que é experimentado no corpo denuncia um sofrimento que não pode ser percebido e vivenciado em toda a sua amplitude.

De acordo com esse pensar, Henriques (2014) apresenta-nos os sujeitos somáticos, afirmando que não se trata de novos seres, mas de pessoas que revelam novas formas de apresentação de um ideal contemporâneo, marcado, entre outros fatores, por um movimento que compreende o corpo biológico em detrimento do psicológico. É em cima desse corpo que busca agir toda uma gama de medicamentos, com a promessa de curá-lo, potencializá-lo, superar seus limites. Como observa Kehl, “junto com a medicação, o que se vende é sobretudo a esperança de que o depressivo possa rapidamente normalizar sua conduta sem ter de se indagar sobre seu desejo” (2009, p. 104).

Em contraponto a essa espécie de redescoberta do cérebro e do modelo neurobiológico, que se propõe a sepultar de uma vez por todas a psicanálise, nos apoiamos em pensadores como Roudinesco (2000) e Žižek (2010), os quais sustentam que o tempo da psicanálise está apenas chegando. Além disso, lembram que o destino não é algo predeterminado (salvo pela compulsão à repetição, diríamos nós) e que a infelicidade não se encontra inscrita na carga genética, sendo muito antes produto da história singular de cada ser.

Falemos, portanto, sobre o desejo, esse que não pode ser criado nem compreendido através de pílulas, esse que só pode surgir em meio à falta. Falemos sobre Eva, que aos 29 anos chega para análise por sentir-se muito apática e sem vontade de estabelecer interações sociais. Concluiu a graduação há seis anos, com excelente aproveitamento, mas desde então fez poucos trabalhos como freelancer e sente-se “em férias eternas”, o que desperta algum desconforto, mas não o suficiente para lhe dar um status de sofrimento. O corpo é o lugar que melhor se oferece como palco de sua dor: engorda e emagrece com alarmante frequência, tem como companhias diárias urticária, manchas na pele e refluxo, e sua vida sexual é inexistente. Por conta de uma persistente insônia, buscou um psiquiatra, mas não se adaptou à medicação, porque a fez engordar ainda mais. Com algum tempo de tratamento, chega à ideia de que, na base de seu sofrimento, está o fato de jamais ter conseguido superar a morte da tia, descrita como a única pessoa da família com quem brincava e aquela em quem podia confiar.

O luto impossível pela perda da tia querida e dos anos dourados de sua infância, relatados como a única época em que foi verdadeiramente feliz, aprisionara a libido de Eva e a enrolara ainda mais em sua rede narcísica e endogâmica, fazendo-a chegar à análise como se uma criança pequena fosse, assujeitada e desconhecendo cada recanto de si própria. A inconformidade com a transitoriedade e a idealização de um momento tido como pleno transformaram-se em combustível para sua letargia e incapacidade de assumir o protagonismo da própria vida, impedindo o desenvolvimento de seu potencial desejante, ainda tão virtual.

Almejar o retorno a uma grande satisfação experimentada outrora, num momento de predomínio de ideais de perfeição e completude, é algo que jamais desaparece no humano, o que faz da tarefa de empreender uma reorganização subjetiva algo tão difícil quanto necessário, para não submergir num narcisismo tanático (Freud, 1914/2006b). O drama relatado por Eva, portanto, diz respeito a todos, visto que na travessia de Narciso a Édipo não é facultado evitar por completo o movimento que estipula a saída de uma posição passiva em direção à atividade.

O homem atual, contudo, parece pouco se importar em ser partícipe daquilo que denominaremos gincana contemporânea, por suas infindáveis tarefas e exigências, contanto que seja preservado do luto pela implosão de seu eu ideal - e, consequentemente, da luta que daí adviria. Aferrando-se em seu lamento pela perda do tempo passado, refugia-se num mundo infantil de promessas e furta-se a desmascarar as pequenas porções de ilusão prometidas por psicofármacos, cirurgias plásticas, tratamentos estéticos ditos milagrosos ou terapias da moda. Ao esquivar-se de elaborar a dor psíquica oriunda da experiência de castração, tampouco se autoriza a batalhar por novos espaços. O indivíduo, acuado e confuso, paralisa.

 

3. “Tempo, tempo, tempo, entro num acordo contigo”

Rico é só o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira.
(Raduan Nassar)

O encontro do homem com o tempo se dá desde os primordios de sua existência - basta que pensemos nos intervalos entre presença e ausência de um cuidador, tão bem exemplificados por Freud (1920/2006a) na brincadeira de seu neto com o carretel, o famoso fort-da. No jogo de falta e aparição do objeto, cria-se um novo investimento: o próprio tempo. Assim como o curso da vida está inserido na ideia de temporalidade, o psiquismo não pode prescindir dela. Dessa forma, as diversas metáforas do aparelho psíquico incluem a noção de tempo, especialmente no cruzamento dos pontos de vista tópico e econômico.

Em sua segunda tópica, Freud (1931/1996) apresenta um eu representante do mundo externo, formado e mantido através de uma continuidade, resultante da distinção de um isso originário - esse último carregado de desejos e rejeitante da ideia de tempo. A relação do eu com o tempo nunca se dá sem conflitos e distorções, tanto pela permanente servidão do eu ao isso como pela resistência do eu à diferenciação e interrupção da continuidade, necessária em dado momento (Bianchi, 1993). Sabemos que a lei do tempo é intransigente: ele irá passar e deixar marcas, e para isso não existe remédio ou alternativa. No entanto, mesmo que uma relação realista do eu com o tempo seja algo imperativo, visto que o desejo sempre se deparará com faltas e frustrações, uma raiz nostálgica perene segue ligando o presente ao passado que contém a atemporalidade e a ilogicidade do isso.

As duas vinhetas clínicas que escolhemos para ilustrar nosso pensar carregam em si algo em comum, um grande pesar advindo da constatação dos limites que a vida impõe, mal que acomete tanto Adão quanto Eva, e também seus sucessores, de Caim e Abel a todos nós. Se lidar com a finitude do eu ideal e, em última instância, da própria vida é algo vivenciado como tão cruel ao humano, consideramos que nosso mal-estar atual seja ilustrado por esses lutos irrealizados e pela desconsideração dos ganhos que podem advir das perdas.

Embora seja um mecanismo necessário para superar o luto, a desmentida do passar do tempo também impede sua elaboração, agindo como um idealizador daquilo que já foi vivido e retendo a libido para novos investimentos fora do eu. O processo de luto consome tempo, e não há dúvidas de que esse tempo funciona como protetor do aparelho psíquico, inclusive para lhe fornecer um novo ritmo. A libertação do eu ideal, momento mítico em que o eu se julga possuidor de todas as qualidades e desprovido de angústia e conflito, só é viável mediante uma sincera e difícil renúncia ao trono, de maneira que, como sucedâneo de His Majesty the Baby, possamos descobrir um indivíduo em busca de identificações. Ademais, conhecemos a advertência de que aquele que fica impossibilitado de entregar a outro sua libido acaba por adoecer (Freud, 1914/2006b).

Lidar razoavelmente bem com a castração, contudo, requer mais do que a saída desse momento narcísico: é preciso que haja um ideal de eu a perseguir, uma projeção de futuro possível. Não obstante ser essa uma tarefa complexa desde a perspectiva individual do sujeito, a desesperança enquanto sintoma social que hoje nos acomete acaba por introduzir um acréscimo de intensidade a esse movimento, visto que uma sociedade depressiva dificilmente oferece bons modelos a seus cidadãos. É natural que um contexto atribulado nos campos da política e da economia, com ameaça de perda de direitos e violência em níveis atrozes, compreenda o uso maciço da projeção, que figura como o mecanismo mais utilizado. Assim, o que se observa nos bordões repetidos à exaustão nos últimos meses - “O Brasil não tem jeito”, “A única saída é o aeroporto”, entre outros com sentido similar - acaba sendo uma reedição do movimento de luto melancólico antes referido. Como antídoto para as frases cheias de efeito e vazias de significado, invocamos Roland Barthes (1977/1991), que assinala o estereótipo como a marca indelével da impossibilidade de deixar morrer - ou, dito por nós, do narcisismo.

Aqui também solicitamos o auxílio da arte para ilustrar nosso posicionamento teórico. Na segunda metade do século XX, a literatura latino-americana viveu um período de esplendorosa intensidade, com amplas possibilidades criativas, especialmente no que tange aos romances, que lograram afastar-se da realidade factual e permitiram-se utilizá-la de uma forma deliciosamente distorcida. Nascia então uma narrativa liberta e autônoma, que passou a servir-se da realidade em lugar de servir a ela. A criação desse movimento, conhecido como realismo mágico, é frequentemente compreendida como um contraponto aos regimes ditatoriais que dominavam a política da época, uma espécie de protesto através de palavras que almejavam transmitir ao interlocutor um anseio por liberdade.

O escritor chileno César Cuadra (2002), ao analisar esse período e a obra do expoente do movimento, Gabriel García Márquez, apresenta outra observação: a estética evasiva, em oposição ao referencial fidedignamente comprometido com a realidade, não é em nada acidental, apoiando-se numa ideologia de resistência aos avanços do movimento industrial. Isso significa dizer que a emergência e a popularidade do real maravilhoso ocorreram especialmente em zonas mais afastadas dos grandes centros, com organização econômica e social predominantemente rural, onde a indústria ainda não havia penetrado de forma irreversível. Nesses locais, as narrativas conservavam seu antigo potencial, sendo possível manter a imaginação como valor maior, algo sem dúvida revolucionário e em sintonia com as necessidades e os desejos da população.

Ao detalhe da sobrevivência da narrativa fantástica nos ocorre uma alusão aos fueros citados por Freud (2016) na clássica carta 52, de dezembro de 1896. O termo, derivado do latim forum, designa os privilégios obtidos por uma província que não se submete de todo ao Estado moderno, um local que reivindica direitos próprios. Numa linguagem psicanalítica, falaríamos de impressões psíquicas desregradas e não articuladas à trama de facilitações, um espaço em que persiste certo anacronismo, algo que não pode ser traduzido e que segue com um potencial indomável. Nesse sentido, a literatura evidencia o proposital descolamento da realidade como um movimento oposto ao concreto, realizando uma complexa união entre o fantástico e o factual, não aspirando a dissolver paradoxos, mas convocando a imaginar, a metaforizar. A ilusão desempenha um papel fundamental nessas narrativas e, segundo Cuadra (2002), toda a obra de García Márquez realiza o esforço brutal de devolver ao homem a capacidade do assombro, de se reencantar com o mundo cotidiano e se reconciliar consigo. Não à toa a Macondo de Cem anos de solidão se tornou tão popular: o peso do passado e o temor pelo futuro são temas universais, que poderiam se desenvolver numa pequena aldeia ou nas grandes metrópoles que hoje habitamos.

A literatura e a psicanálise se encontram, sobretudo, no poder que conferem às narrativas. Para encerrar este breve escrito sobre o luto na contemporaneidade, esperamos que fique clara nossa posição: é através da palavra em transferência que o substantivo pode ganhar força para transformar-se em verbo, o que denotaria a passagem de uma postura passiva para uma postura ativa, lutar para não enlutar. A constatação do luto e do vazio, em vez de uma declaração de falência, pode indicar a abertura a um possível combate, que na melhor das hipóteses levaria o sujeito a lutar, ou seja, a trabalhar com afinco numa busca desejante - movimento errante que pode conduzir por caminhos tortuosos, mas em direção à luz no fim do túnel da agonia.

 

Referências

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Correspondência:
Juliana Lang Lima
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Recebido em 11/6/2018
Aceito em 13/11/201
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1 A literatura oferece comoventes exemplos não ficcionais do árduo trabalho de luto, como O filho eterno, de Cristóvão Tezza, em que o autor busca elaborar o diagnóstico de síndrome de Down de seu primeiro filho, e Para Francisco, de Cristiana Guerra, que perdeu o marido aos sete meses de gestação e viveu de forma simultânea a viuvez e a maternidade.

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