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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2018

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE: MOVIMENTO ARTICULAÇÃO

 

Movimento Articulação1: pensando a ética complexa

 

Articulation Movement: thinking about complex ethics

 

Movimiento Articulación: pensando la ética compleja

 

Le Mouvement Articulation: reflexion sur l'ethique complexe

 

 

Gustavo SoaresI; Valéria QuadrosII

IPsiquiatra e psicanalista. Membro associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). Membro pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA). Membro titular da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (APRS). Coordenador, professor e supervisor da disciplina Fundamentos da Técnica em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica, e coordenador do Programa de Psicoterapia Psicanalítica da residência em psiquiatria da Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul
IIPsicanalista. Membro pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA)

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo nasce da experiência de participar do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras. Propomos uma reflexão a respeito das origens do Movimento e qual projeto ético o sustenta. Nesse sentido, buscamos explicitar o que entendemos por ética/ética complexa e sua relação com a tentativa de regulamentação da psicanálise. Recorremos aos textos fundantes de Freud e às contribuições dos pensadores da complexidade para postular que a ética está implicada com a função psicanalítica da personalidade. Esta concepção, relacionada ao objeto complexo, enseja uma abertura para novas reflexões sobre os destinos da psicanálise.

Palavras-chave: Movimento Articulação, ética complexa, história da psicanálise, formação em psicanálise, regulamentação da psicanálise


ABSTRACT

This paper results from the authors' experience of taking part in the Articulation Movement of Brazilian Entities of Psychoanalysis. The authors propose a reflection on the roots of the Movement and which ethical project is the basis for it. To this end, their purpose is to explain what they understand as Ethics, Complex Ethics, and its relation to the attempt to regulate Psychoanalysis. They use Freud's founding writings and the contributions that were brought by the thinkers of complexity in order to postulate that ethics is entangled in the psychoanalytic function of personality. This conception, connected with the “complex object”, triggers new reflections on the future of Psychoanalysis.

Keywords: Articulation Movement, complex ethics, history of psychoanalysis, training in psychoanalysis, regulation of psychoanalysis


RESUMEN

El presente artículo nace de la experiencia de participar en el Movimiento Articulación de las Entidades Psicoanalíticas Brasileñas. Proponemos una reflexión sobre los orígenes del Movimiento y qué proyecto ético lo sustenta. En este sentido, buscamos explicitar lo que entendemos por ética/ética compleja y su relación con los intentos de regulación del psicoanálisis. Recurrimos a los textos base de Freud y a las contribuciones de los pensadores de la complejidad para postular que la ética está implicada con la función psicoanalítica de la personalidad. Esta concepción, relacionada con el “objeto complejo”, conlleva a una apertura para nuevas reflexiones sobre los destinos del psicoanálisis.

Palabras clave: Movimiento Articulación, ética compleja, historia del psicoanálisis, formación en psicoanálisis, reglamentación del psicoanálisis


RÉSUMÉ

Cet article naît de l'expérience de participer au Mouvement Articulation des Organismes Psychanalytiques Brésiliens. Nous proposons une réflexion relative aux origines du Mouvement et qui vise à comprendre quel projet éthique le soutient. Dans ce sens, nous voulons définir ce que nous comprenons par éthique complexe et le rapport de celle-ci avec la tentative de règlementation de la psychanalyse. Nous avons recouru aux textes fondamentaux de Freud et aux contributions des penseurs qui étudient la complexité, pour postuler que l'éthique est mêlée à la fonction psychanalytique de la personnalité. Cette conception, en rapport avec “l'objet complexe”, donne lieu à une ouverture sur des réflexions concernant les destins de la psychanalyse.

Mots-clés: mouvement articulation, éthique complexe, histoire de la psychanalyse, formation en psychanalyse, réglementation de la psychanalyse


 

 

Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras

Como sabemos, o Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras organizou-se na virada deste século, e hoje, quase 20 anos depois, o consideramos consolidado. As circunstâncias da sua criação foram amplamente descritas no livro Ofício do psicanalista (Alberti, Amendoeira, Lannes, Lopes & Rocha, 2009), que constitui um valioso documento histórico. Como psicanalistas engajados com os objetivos do Articulação, porém participando de maneira efetiva há pouco mais de três anos, nos permitimos escrever de forma livre sobre esse movimento, como uma oportunidade de apropriação das razões que levaram à sua criação, fato muito mais complexo do que a simples criação de um movimento político em defesa da psicanálise. Nossa reflexão detém-se em definir qual projeto ético nos representa e por que a regulamentação da psicanálise é deletéria para sua prática.

 

Psicanálise no Brasil: surgimento, formação, regulamentação

Os acontecimentos atuais encontram suas origens no passado. Desse modo, fizemos um breve recorte do surgimento da psicanálise em nosso país, a fim de destacar elementos importantes para o objetivo deste texto.

A psicanálise passa a ser mencionada no Brasil ainda no século XIX - quase que simultaneamente a seu nascimento - nas aulas do psiquiatra baiano Juliano Moreira, na Faculdade de Medicina de Salvador e, mais tarde, no Hospital de Alienados no Rio de Janeiro. Nesse período, o interesse dos médicos psiquiatras fica centrado na teoria. É o médico paulista Durval Marcondes quem, no começo dos anos 1920, inicia a prática clínica da psicanálise. Em 1927, escreve uma carta a Freud comunicando a fundação, junto com Franco da Rocha, da Sociedade Brasileira de Psicanálise, a primeira da América Latina. Extinta pouco tempo depois, é somente no final da década de 1930, com a chegada a São Paulo da psicanalista alemã Adelheid Koch, que começam as tratativas para criar uma instituição ligada à Associação Psicanalítica Internacional (IPA) (Moretzsohn, 2015).

Observamos que, desde esse início, a psicanálise enquanto formação e prática esteve sempre acompanhada por uma disputa pela sua “oficialidade” e pelo seu domínio através das Sociedades/grupos que a introduziram em nosso país. Até a década de 1960, os embates aconteciam entre grupos chancelados pela IPA, a associação fundada por Freud em 1910 com o objetivo de

promover e apoiar a ciência da psicanálise, tanto como psicologia pura como em sua aplicação à medicina e às ciências mentais, e cultivar o apoio mútuo entre os seus membros para que fossem desenvolvidos todos os esforços no sentido da aquisição e difusão de conhecimentos psicanalíticos. (Freud, 1914/1974b, p. 57)

É importante destacar o projeto ético de troca entre colegas e de expansão do conhecimento.

Dos anos 1950 e 1960, escolhemos dois fatos que ilustram essa busca por hegemonia, seja entre grupos, entre Sociedades ou mesmo entre categorias profissionais, especialmente os médicos. O primeiro é o reconhecimento das sociedades psicanalíticas no Brasil pela IPA - uma espécie de início oficial da formação e da prática da psicanálise. O segundo, concomitante ao anterior, é o aparecimento do único documento normativo sobre a prática e a formação psicanalítica, chamado Aviso Ministerial n.° 257 do Ministério da Saúde, que poderia ser interpretado como uma tentativa de regulamentar a psicanálise:

1. É lícito a centros de estudos, bem como a qualquer instituto ou centro igualmente credenciado pela Associação Psicanalítica Internacional [itálico nosso], contratar os serviços especializados de psicanalistas leigos cuja formação tenha sido reconhecida pela associação.

2. Esses psicanalistas leigos poderão exercer suas especialidades em todas as suas aplicações, dentro ou fora do instituto que os contrate, desde que os clientes de que se ocupem lhes sejam enviados por indicação escrita do médico diplomado, sob cuja responsabilidade ficarão [itálico nosso].

3. As presentes normas comunicadas para os devidos fins ao Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina regularão o assunto até que lei especial estatua a respeito. (citado por Lannes, 2009, p. 36)

Sem forma de lei, esse aviso ministerial não produziu um efeito prático importante.

Os fatos mencionados poderiam ser interpretados, por um lado, como uma maneira de busca de oficialidade por parte das Sociedades componentes da IPA e, por outro lado, através do aviso ministerial, como uma tentativa de regulamentação, conferindo grande poder aos médicos (embora se permitisse a prática aos leigos, eles seriam chancelados pelos médicos). Um esforço para proteger o saber psicanalítico e sua prática ou a procura por um poder hegemônico?

A história das tentativas de regulamentação da psicanálise no Brasil é amplamente citada e comentada no primeiro livro do Movimento Articulação, em especial por Edson Soares Lannes. Acompanhando esse percurso, alguns fatos chamam a atenção. Por exemplo, em 1975, em plena ditadura militar, surgiu um projeto de lei que propunha a “alforria” à psicanálise, não mais restringindo sua prática a médicos e psicólogos, determinando um prazo para que as instituições psicanalíticas já existentes requeressem seu reconhecimento oficial. Esse projeto encontrou oposição nas Sociedades ligadas à IPA e terminou sendo retirado por seu autor. Também podemos citar o parecer do Conselho de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, de 2000, sobre o exercício da psicanálise:

A psicanálise é uma atividade assistencial que não é privativa de determinada profissão. Sua prática deve se orientar pelas determinações das diversas instituições responsáveis pela formação analítica dos postulantes que a elas se afiliarem. Recomenda que a psicanálise não deva ser regulamentada pelo poder público, deixando às diferentes sociedades ou associações o papel de estabelecer os critérios que considerem adequados para o exercício da psicanálise. (citado por Lannes, 2009, p. 37)

Essa proposição parece ser um dos primeiros manifestos contra a regulamentação da psicanálise pelo poder público.

 

O chamado

Foi no ano 2000 que recebemos um e-mail, quase imperativo, para que nos inscrevéssemos na Sociedade ou Colégio de Psicanalistas do Brasil, algo desse tipo, já com anuidade definida. Observamos que nosso nome constava numa lista publicada na Internet, assim como o de vários colegas. O chamado estava vinculado à Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil (SPOB), um grupo de pessoas estranhas ao nosso campo interno da psicanálise e que oferecia formação psicanalítica. O método de formação proposto na época durava de duas semanas a trés meses, e os cursos aconteciam nos fins de semana. Havia inclusive faixas de propaganda numa importante avenida de Porto Alegre.

Esse chamado ecoou amplamente entre as instituições psicanalíticas brasileiras, resultando numa ação de resistência. Nascia aí o embrião do Movimento: a mobilização e a convocação com o objetivo de barrar essa prática totalmente distorcida do que entendíamos como formação psicanalítica. Em dezembro daquele ano, o fato destacado - e que pressionou por uma ação imediata - foi a tramitação na Câmara Federal de um projeto do deputado Eber Silva, da bancada evangélica do Rio de Janeiro, para regulamentar a psicanálise como profissão. Portanto, ao longo do ano 2000 e no início de 2001, foi sendo gestado o Movimento, um grupo de entidades psicanalíticas brasileiras que se erguia para defender a não regulamentação da psicanálise.

O que tinha mudado? O que se observa pela literatura é que, até o ano 2000, as disputas se davam entre as instituições ligadas à IPA e as que haviam sido criadas a partir da década de 1960, não só no Brasil, mas no mundo, em especial as decorrentes do movimento lacaniano. Assim, até esse ano, as querelas se restringiam ao campo interno. O que se identificou como fato novo foi que, nesse momento, o “inimigo” veio de fora do nosso campo analítico - campo externo, estranho -, atacando todos os princípios que tínhamos assimilado a partir de Freud. Era sem dúvida um ataque mortífero à psicanálise, ao ser psicanalista e a como ele se forma. O que aconteceu foi um fenômeno parecido a quando um país é atacado por outro, o que obriga todas as regiões do Estado, por mais diferentes que sejam, a se unir e a tomar a defesa dele como objetivo comum.

As instituições partícipes do Movimento Articulação, através dos seus representantes em reuniões, seguem desde então “em vigília”, zelosas em manter um posicionamento de defesa da psicanálise, diante de reiteradas ameaças de grupos alheios de regulamentá-la.

 

Outras articulações

Gostaríamos de compartilhar a hipótese de que a história do Articulação se entrelaça à de outro movimento, os Estados Gerais da Psicanálise, que no mesmo ano de 2000 realizava seu encontro inaugural em Paris. Em pesquisa na Internet, localizamos alguns elementos que favoreceram essa associação.

Numa página dos Estados Gerais encontra-se o pedido de que seja divulgado até a data de 30 de abril de 2000 o texto ali apresentado, um esboço do que viria a ser o primeiro manifesto do Movimento Articulação, aprovado em reunião de mesma data (“Manifesto das entidades brasileiras de psicanálise”, 2000). O fato de essa convocação ter utilizado uma página dos Estados Gerais nos leva a pensar que, naquela ocasião, se articulavam movimentos dentro da psicanálise, no Brasil e no exterior, pautados por uma nova posição ética. Pela primeira vez, as instituições brasileiras que se reconheciam, a si e entre si, como psicanalíticas reuniam-se em torno de um objetivo comum, qual seja, o de defender a psicanálise.

René Major, articulador dos Estados Gerais, numa entrevista por ocasião da segunda convocação, em 2003, com sede no Rio de Janeiro, fala dos motivos da criação desse fórum: “O principal motivo veio do esquecimento, do recalcamento e mesmo da ignorância intrínseca da política no movimento psicanalítico. A história da psicanálise no Brasil teve um papel desencadeador dessa tomada de consciência”. Acrescenta que a decisão se deu em 1997, em Paris, quando do lançamento do livro Não conte a ninguém, da psicanalista Helena Besserman Vianna, o qual ele mesmo havia prefaciado. O livro narra os nefastos acontecimentos ocorridos na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro durante a ditadura militar no Brasil, sendo a autora a protagonista da denúncia. Para o devido esclarecimento das circunstâncias - um dos membros da instituição, Amílcar Lobo, colaborava com a tortura de presos políticos - foi necessário aguardar a determinação democrática de Horacio Etchegoyen, primeiro latino-americano a presidir a IPA (1993-1997). Continua René Major:

Tivemos que tomar conhecimento dos sintomas que pode produzir na realidade a implicação desconhecida da dimensão política na transmissão da experiência analítica e nas instituições psicanalíticas. Os sintomas que se manifestaram no Rio não eram apenas locais ou regionais, mas internacionais, pois diziam respeito a todo o movimento desde a Segunda Guerra.

A questão da ética no bojo das instituições psicanalíticas é uma convocação permanente.

Em detalhado relatório do encontro de Paris, Sonia Alberti (2000) testemunha a pluralidade de opiniões e participações de colegas, o que primeiramente lhe pareceu uma Babel, impressão que depois foi se modificando. Em suas palavras:

Os Estados Gerais da Psicanálise se instituem assim num lugar em que, independentemente das escolhas particulares, as barreiras entre escolas e instituições de formação deixam de se exercer como um impedimento à criação de uma comunidade psicanalítica internacional, para terem um papel definitivo no fortalecimento da própria psicanálise e da sua presença no século XXI.

Guardadas as diferenças, poderíamos transpor essas palavras para o Movimento Articulação, pois este se caracterizou, desde a sua fundação, pela convivência entre colegas com singulares modelos de formação psicanalítica. Tal fato assume considerável significado quando lembramos que eram justamente as divergências quanto a critérios de formação que criavam um profundo abismo de reconhecimento.

Será que foi apenas diante de um “inimigo comum” que se deu o inédito acontecimento de aproximação e compartilhamento? Talvez já viesse se processando algo novo no campo analítico internacional, que desembocaria em movimentos como os Estados Gerais e o Articulação. Esse algo, pensamos, se enlaça com a ética.

Nas palavras de Sonia Alberti surge explicitamente o que seria a definição do Movimento:

Um movimento criado em 2000, que visa defender a psicanálise tal como Sigmund Freud a conceituou, diante dos campos de poder - tanto econômico quanto político - estabelecidos no final do século XX, a fim de garantir um espaço no qual ela possa seguir com seu crescimento e consolidação de acordo com sua ética genuína [itálicos nossos], sua relação particular com a ciência e sua eficácia, que nem sempre se reduz à terapêutica. (2009, p. 7)

 

Projeto ético-político do Movimento/grupo

O Movimento Articulação se compõe atualmente de 18 instituições que representam suas Associações ou Sociedades, o que lhe confere uma abrangência muito maior. Tendo em vista as diferenças já mencionadas, o que nos sustenta enquanto grupo de trabalho é o fato de adotarmos uma tolerância à diversidade e à diferença. Entendemos diferença como a define Derrida: “Não é uma distinção, uma essência ou uma oposição, mas um movimento de espaçamento, um 'devir-espaço' do tempo, um 'devir-tempo' do espaço, é uma referência à alteridade, a uma heterogeneidade que não é primordialmente oposicional [itálico nosso] (citado por Sigal, 2017, p. 40).

A premissa do Movimento é não se constituir como uma instituição/associação. As diferenças observadas nas instituições que o compõem não são necessariamente oposicionais, ou pelo menos há uma busca pelo respeito a essa diversidade. São notórias as diferenças de compreensão de cada colega acerca da psicanálise, da prática, dos pressupostos teóricos e dos aspectos da formação analítica, ainda que o chamado tripé da formação seja um consenso. Enquanto grupo, ele se constitui a cada encontro, realizado em média duas vezes por ano. É proposta uma pauta e, em caso de debates, cada representante tem direito a um voto. Assim, é eminentemente democrático, e cada reunião é organizada e presidida por uma instituição/representação em comum acordo.

Como representante do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre, um dos autores deste texto pôde recentemente vivenciar a atuação do Movimento, em face de outro projeto de lei apresentado ao Senado, o de n.° 174/2017, visando novamente regulamentar o exercício de certas práticas - entre elas, as terapias psicanalíticas - sem qualquer relação com o que a comunidade profissional, de formação científica, julga ser de garantia para essas mesmas práticas. O projeto pode ser encontrado neste link: www25.senado. leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129523.

De autoria de um senador de Roraima, Telmário Mota, o projeto aspira regulamentar “a profissão de terapeuta naturista, nas modalidades medicina oriental, terapia ayurvédica, outras terapias naturais, e terapias psicanalíticas [itálico nosso] e psicopedagógicas”. Em poucos dias, foram feitas várias articulações entre representantes institucionais do Movimento, contatos com representantes de conselhos profissionais, entidades de classe e políticos para barrar o PL, resultando na marcação de uma audiência com o senador relator do projeto. Ou seja, em vigília, a resistência havia entrado em ação contra o inimigo estrangeiro.

Reconhecendo a grande diversidade das instituições participantes, precisamos aceitar que o princípio da não hegemonia - semelhante a domínio, poder - esteja sempre incluído nessa luta, a partir de dentro, ou seja, adotado por todos os componentes do Movimento. Em algumas reuniões surgem entraves remanescentes das disputas antes mencionadas, em que diferenças de modelo e de escola são confrontadas numa busca pela unicidade: quem possui a verdadeira psicanálise?

Pensamos que essas questões são recorrentes na história da psicanálise. Freud, em “A história do movimento psicanalítico”, ao falar a respeito da criação da IPA, diz:

Julguei necessário formar uma associação oficial porque temia os abusos a que a psicanálise estaria sujeita logo que se tornasse popular. Deveria haver alguma sede cuja função seria declarar: “Todas essas tolices nada têm que ver com a análise; isso não é psicanálise”. (1914/1974b, p. 57)

O Movimento Articulação é uma evidência desse cuidado e de que essa responsabilidade compete a todos nós. No entanto, ao mesmo tempo que precisamos discutir sobre o que não se abriria mão quanto ao essencial na psicanálise, algumas vezes podemos ser tentados a desprezar posições contrárias à nossa.

Lembramos um comentário de Bion, ao se referir ao pensamento intermediário à ação: “É como se a reação fosse 'aqui está algo que não compreendo - vou matar'. Mas uns poucos poderiam dizer 'eis aqui algo que não compreendo - vou descobrir'” (1974, p. 60). Participar do Movimento Articulação pressupõe um exercício contínuo de autoanálise das nossas questões narcísicas - o narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 1930/1974c). O essencial do Movimento é impedir qualquer tentativa de regulamentação da psicanálise.

 

Ética complexa vs. regulamentação da psicanálise

A psicanálise, desde Freud, é um saber e uma prática subversivos, em que a questão central é a busca de verdade, e o sujeito que a percorre o faz numa direção única e singular. Esse deve ser o projeto ético-político a nos guiar no Movimento. Cabe explicitar o que entendemos por ética e sua relação com a tentativa de regulamentar a psicanálise.

O tema da ética e da moral está sempre presente na psicanálise, na sua prática e nas instituições. Quando se aborda a questão da formação analítica e a possibilidade de regulamentar a psicanálise, isso se torna ainda mais relevante.

Na literatura, seja filosófica, seja psicanalítica, faz-se difícil estabelecer uma diferença nítida entre ética e moral, mas é possível apresentar alguns parâmetros e discutir algumas diferenças. Propomos que a ética está implicada com a função psicanalítica da personalidade (Bion, 1962/1966), e a moral com um sistema de normas ou regras. A ética está sempre por construir, aceita a pluralidade, enquanto a moral tende ao fechamento e, portanto, à intolerância.

Os romanos, ao traduzirem a palavra grega ethos (ética) como mos/mores (costumes), de onde se origina a palavra moral, criaram certa confusão conceitual. A ética que propomos está diretamente relacionada ao inconsciente e não pode ser regida por leis externas.

A ética, da maneira que é apresentada aqui, como função psicanalítica da personalidade, relaciona-se ao interior do ser humano. Sendo a norteadora das suas ações, provocará consequências diretas no outro. Estando ligada ao interior do homem, é necessário que este perceba suas emoções, a partir do seu aparelho de pensar (Bion, 1962/1994), e as defina ante o social, pautando sua conduta. Tal qual a função psicanalítica da personalidade, a ética está sujeita às incertezas e à complexidade, é tolerante com a diferença e torna o indivíduo um sujeito autônomo e socialmente responsável pelos seus atos.

Em A interpretação dos sonhos, Freud se pergunta sobre o sentido moral no que sonhamos, e em 1925 afirma:

Obviamente, temos de nos considerar responsáveis pelos impulsos maus dos próprios sonhos. Que mais se pode fazer com eles? ... Se procuro classificar os impulsos presentes em mim, segundo padrões sociais, em bons e maus, tenho de assumir responsabilidade por ambos os tipos. (1974a, p. 165)

A construção ética é constante ao longo da trajetória de cada indivíduo, e permeia a própria história da humanidade. Nos dias atuais, por exemplo, os avanços tecnológicos - gestação in vitro, células-tronco, entre outros -obrigam que o sujeito pense e decida sobre sua posição diante das mudanças. Portanto, a ética não se define a priori.

A concepção de ética a partir desse vértice está relacionada ao desenvolvimento do que é denominado objeto complexo. Este surge na metade do século XX, criando o pensar complexo e tendo grande influência na teoria e prática psicanalítica atual. É oriundo da contribuição de vários pensadores: Morin, com a teoria da complexidade; Heisenberg, com o princípio da incerteza na física quântica; Varela e Maturana, com a enação e a autopoiese; entre outros autores de ciências afins. O objeto complexo, cabe ressaltar, não substitui o objeto simples, presente até a metade do século XX e relacionado ao modelo positivista, mas agrega este a um novo modelo. Da mesma forma que outras áreas do conhecimento, também a psicanálise se vale dessa mudança de paradigma como um novo referencial (Chuster, Soares & Trachtenberg, 2014).

Morin (2005) introduz a ideia de ética complexa/complexidade da ética, que nos ajuda a pensar na pergunta que seguidamente muitos se fazem: “Por que não regulamentar a psicanálise?”.

Como na psicanálise, mas trabalhando com outros referenciais, Morin diz que a ética se manifesta em nós de maneira imperativa como exigência moral, e que esse imperativo se origina numa fonte interior do indivíduo. Afirma que indivíduo, sociedade e espécie são uma tríade inseparável. Os paradigmas propostos pela complexidade e pelo princípio da incerteza influem na concepção de ética que está sendo apresentada aqui. Sendo a ética da ordem da interioridade do humano, sua manifestação se fará visível através das ações do ser humano. Assim, Morin valoriza o ato, a ação. Diz ele: “Mesmo supondo-se a consciência do bem e do dever, a ética encontra dificuldades sem solução na simples consciência do 'fazer bem', do 'agir pelo bem', do 'cumprir o seu dever'” (2005, p. 40).

Nesse momento, introduz a ideia de ecologia da ação, segundo a qual a complexidade e a incerteza tornam problemático definir uma ação ética, pois a ação muitas vezes escapa à vontade do seu autor. Aqui novamente podemos fazer um paralelo com a psicanálise, entendendo que a complexidade ética se relaciona ao inconsciente, função psicanalítica da personalidade, bem como ao contexto sociocultural, em que o indivíduo está inserido. Dessa forma, a complexidade ética surge no plano da ação.

Seguindo nessa direção, a ecologia da ação se depara com duas variáveis imponderáveis, que Morin denomina de mediocridade da pessoa e futuro é sempre incerto. Exemplifica a mediocridade com o caso de Eichmann, mencionado por Hannah Arendt como um burocrata comum que, com o nazismo, se tornou um torturador cruel, obedecendo ordens, sendo assim instrumento e executor das maiores atrocidades que um ser humano pode praticar. A outra questão se refere a uma ação que é considerada boa, mas que, pela imprevisibilidade do futuro, pode vir a ser uma catástrofe: “Aos riscos de desastre da boa intenção e da boa ação soma-se a incerteza [itálico nosso] absoluta do resultado final da ação ética. Nenhuma ação tem garantia de seguir o rumo da sua intenção” (Morin, 2005, p. 46).

Sustentamos que o denominado por Morin de mediocridade está relacionado na psicanálise ao aparelho de pensar e à função psicanalítica da personalidade, possibilidades a serem desenvolvidas através da análise pessoal. Ou seja, a mediocridade seria o fracasso dessas funções. O pensar é sentido como perigoso, pois implica a tomada de des-cisões, muitas vezes enfrentando um pensamento hegemônico e/ou um futuro incerto. O que produz o mal nessas circunstâncias é o vazio de pensamentos.

Morin menciona a possibilidade de ilusões éticas, o que a nosso ver estaria relacionado a uma falha na função psicanalítica da personalidade e à não inclusão de um pensar complexo. O autor cita Théo Klein:

A ética não é um relógio suíço cujo movimento nunca se desajusta. É uma criação permanente, um equilíbrio sempre prestes a ser rompido, um tremor que nos convida a todo instante à inquietude do questionamento e à busca da boa resposta. (2005, p. 55)

Ao introduzir a proposição de ética complexa, a moral passa a ser equacionada a uma ética simples, que pode ser relacionada ao modelo de pensar vigente até a metade do século XX, do positivismo. A noção de ética complexa e a tentativa de estabelecer uma diferença entre ética e moral permitem que uma não se defina sem a outra, ou seja, numa relação dialética, onde uma não está, está a outra. Essa é a base do pensar complexo, regido pelo princípio da incerteza e que trará influências importantes ao desenvolvimento da teoria e da prática analíticas.

Seguindo Kant em seu princípio ético “Age unicamente de acordo com a máxima que possa se tornar uma lei universal”, Morin (2005) diz que a interpretação dessa lei constitui um dever moral que proíbe fazer ao outro aquilo que não desejamos que seja feito a nós mesmos; essa máxima não permite exceção do ponto de vista ético.

Nessa visão, a moral torna-se um conjunto de regras a ser cumprido: “Faça o que o dever manda fazer”. Uma obediência automática, o cumprimento de um mandato, assim seria a ética simples. Regida pelo positivismo, seria binária na sua concepção de bem e mal, justo e injusto. Como avançar a partir de uma realidade complexa, na medida em que estamos apresentando a ética como ligada ao interior do indivíduo, ao inconsciente, à sua função psicanalítica? Mais ainda: ao agregar o princípio da incerteza no pensar humano, como definir a ética?

Essas questões nos levam novamente à complexidade ética e principalmente à sua ação, dificultando sua definição, pois além das questões levantadas incluímos o contexto político, social, biológico, ou seja, a cultura na qual o sujeito está inserido.

Nessa lógica precisamos aceitar o bem no mal e o mal no bem; que o pior e o melhor estão simultaneamente no ser humano, não são excludentes. Segundo Morin: “A complexidade ética deve tornar-se lei universal, comportando problemática, incerteza, antagonismos internos, pluralidades. Assumir a incerteza do destino humano conduz a assumir a incerteza ética. Assumir a incerteza ética conduz a assumir a incerteza do destino humano” (2005, p. 58).

No “campo externo do inimigo”, como já se o nomeou, encontramos elementos que escancaram a confusão existente entre moral, ética e manual de prescrições. Na Internet estão disponíveis sites que oferecem formação analítica em cursos breves, utilizando expressões próprias à linguagem da psicanálise, como curso de analista didata ou psicanalista com formação datríade psicanalítica. Buscam mimetizar o mesmo padrão visual dos endereços eletrônicos de instituições psicanalíticas, fazendo uso de imagens dos pioneiros, geralmente de Freud. Em certo site, podemos encontrar nosso nome na lista dos “psicanalistas”. A cópia, a colagem, a impostura. Não faltam ali os códigos de ética: “Escrevemos o presente código de ética objetivando dar um referencial para todos aqueles que fizeram formação psicanalítica e/ou em psicoterapias diversas, e que querem ter uma conduta moral [itálicos nossos] para desenvolver trabalhos em seu campo psicoterapêutico”. O autor dedica sua obra a “Deus, arquiteto do universo” (“Código de ética”, s.d.).

Regulamentar a prática psicanalítica e a psicanálise seria estabelecer um conjunto de normas e regras, uma ética simples, que aboliria as transformações necessárias pelas quais passa o analista em sua formação, tendo como pilar sua própria análise pessoal, locus do desenvolvimento da função psicanalítica da personalidade.

À medida que grupos alheios ao campo interno da psicanálise tentam regulamentar sua prática e formação, fazendo uso de pressupostos analíticos e oferecendo-os, como análise pessoal, seminários e supervisão, como se fosse o tripé proposto por Freud e como se fosse também uma maneira de tornar mais acessível a psicanálise, precisamos dar atenção ao desejo de domínio, de possuir a psicanálise.

 

Ética e psicanálise vs. regulamentação

Freud descobriu e revelou o inconsciente, os desejos inconscientes, tomando os sonhos como via régia para conhecê-los. Apresentou o mito de Édipo como central em sua compreensão do humano. Descobriu a transferência e, assim, criou uma prática analítica singular, diferente de qualquer outra práxis psicológica, inaugurando uma ética psicanalítica própria, constituída a partir do inconsciente.

As recomendações escritas e publicadas por Freud nos anos 1910 passaram a significar a ética da psicanálise. Tais recomendações foram forjadas pela função psicanalítica de Freud, o seu inconsciente, a partir da sua experiência pessoal. O que eram recomendações foram sendo transformadas, gradativamente, em regras, embora Freud não desejasse escrever um manual da técnica analítica, como lhe fora solicitado pelo establishment da época. A sua ética pessoal não permitia que o fizesse. Ele havia criado as recomendações pela própria experiência da sua prática, entendendo que muito ainda teria que se avançar na teoria e na prática da psicanálise.

Freud, o homem, o cientista, era um ser da complexidade. Percebeu a resistência do analista, e não apenas a do analisado: “Ele não pode tolerar quaisquer resistências em si próprio que ocultem da sua consciência o que foi percebido pelo inconsciente” (Freud, 1912/1974d, p. 154). Portanto, ciente dos perigos decorrentes da prática clínica, recomendou o principal pilar ético de uma formação analítica: a análise para aqueles que desejavam tornar-se analistas; mais ainda: recomendou reanálises, quantas fossem necessárias. As regras não são suficientes sob a égide do inconsciente; o método fracassa ante qualquer tentativa de um regramento moral.

Mais tarde, a partir do Instituto da Sociedade Psicanalítica de Berlim, foram estabelecidas regras para a formação de candidatos, criando o assim nomeado tripé da formação: análise pessoal, prática clínica supervisionada e seminários de teoria psicanalítica. Ao longo das décadas seguintes, a maneira como as instituições lidaram com essas regras gerou discussões importantes. Alguns psicanalistas as puseram em questão em suas respectivas Sociedades, desde S. Ferenczi, um dos fundadores da IPA, com suas proposições de elasticidade da técnica, passando por M. Balint e S. Bernfeld, até J. Lacan, que promoveu mudanças significativas na condução da formação de analistas e nas relações institucionais.

A grande diferença, porém, é que todo esse movimento, suscitando tantas questões, se dá dentro do chamado campo interno analítico - portanto, entre pares, por mais díspares que pareçam. Como ficaríamos se o Estado regulasse a psicanálise e ditasse o que é ou o que não é psicanálise? Quem respondería pela psicanálise ou a transmitiria? Quais critérios seriam estabelecidos? Quais profissionais poderiam reivindicar ser psicanalistas? Acrescente-se a questão da laicidade do Estado, uma garantia democrática. No momento, os grupos que lideram a tentativa de regulamentação pretendem vincular uma prática profissional a crenças religiosas. Quais são as suas motivações é algo que ainda está por ser decifrado. Podemos supor o interesse na chamada “cura gay”, assim como no mercado religioso, com a “formação” de milhares de analistas, como costumam noticiar.

O Movimento tem muitos desafios pela frente. Que seus componentes permaneçam na posição de aceitar suas diferenças; que não se petrifiquem num grupo “dono da verdade”, passando a ser os guardiões da moral e dos bons costumes, da “verdadeira” psicanálise, mas que assumam uma posição de ética complexa e sempre em vigília. Somos contra a regulamentação da psicanálise pelo Estado por entender que este não tem os elementos necessários para se responsabilizar pela formação de analistas. Qualquer grupo ou instituição que fizer essa mesma tentativa encontrará o posicionamento do Articulação. Para não sermos dogmáticos e deterministas, pensamos que esse é o estado das coisas neste momento. O futuro, resta-nos esperar.

 

Referências

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Correspondência:
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Recebido em 17/12/2018
Aceito em 27/12/2018

 

 

1 Este artigo é a versão expandida de um texto de igual título a ser publicado num livro do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, organizado por Ana Sigal et al., intitulado Ofício do psicanalista n, com lançamento previsto para 2019.

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