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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2018
HISTÓRIA DA PSICANÁLISE: MOVIMENTO ARTICULAÇÃO
Um desafio contemporâneo à psicanálise1: sustentar o real para que ela sobreviva
A contemporary challenge to Psychoanalysis: supporting the real to survive
Un desafío contemporáneo para el psicoanálisis: sostener lo real para que este sobreviva
Un défi contemporain à la psychanalyse: soutenir le réel pour sa survie
Samyra Assad
Analista praticante, membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise. Representante da EBP no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras
RESUMO
Neste trabalho, a autora procura fundamentar as razões pelas quais a psicanálise não pode ser regulamentada, apoiando-se nos princípios apresentados por Freud e por Lacan. A tendência à homogeneização, característica do século XXI, bem como os ideais religiosos são elementos nefastos à existência da psicanálise, uma vez que eticamente ela se opõe a servir à moral e ao Estado.
Palavras-chave: inconsciente, ética, política
ABSTRACT
The purpose of this paper is to explain, based on Freud's and Lacan's principles, the reasons why Psychoanalysis should not be under regulation. The 21st century tendency towards homogenization and the religious ideals as well are evil aspects to the existence of Psychoanalysis, if we consider that Psychoanalysis is ethically against serving morality and the State.
Keywords: unconscious, Ethics, Politics
RESUMEN
el presente trabajo busca fundamentar las razones por las cuales el psicoanálisis no puede ser reglamentado basándose en los principios presentados por Freud y Lacan. La tendencia a la homogenización característica del siglo XXI, así como los ideales religiosos, son aspectos nefastos para la existencia del psicoanálisis ya que, desde el punto de vista ético, esta se opone a estar al servicio de la moral y del Estado.
Palabras clave: inconsciente, ética, política
RÉSUMÉ
Ce travail vise à présenter les fondements des raisons par lesquelles la psychanalyse ne peut pas être règlementée en se basant sur les principes apportés par Freud et par Lacan. La tendance à l'homogénéisation caractéristique du XXIe siècle, aussi bien que les idéaux religieux sont des aspects néfastes à l'existence de la psychanalyse, vu que, du point de vue éthique, celle-là s'oppose à servir le moral et l'Etat.
Mots-clés: inconsciente, éthique, politique
Do que insiste
Entre o final do século XIX e o início do século XX, a descoberta do inconsciente por Freud - diga-se de passagem, escandalosa para a época -impulsionava-o a transmitir, através de sua clínica, especialmente a existência da sexualidade infantil, a fantasia masoquista, o acerto real no erro, entre tantas outras manifestações psíquicas na psicopatologia da vida cotidiana, na interpretação dos sonhos, enfim, no estranho familiar. Nada disso fazia parte de um discurso comum, mas evidenciava conflitos num sujeito, com sérias consequências no trabalho e no amor. O melhor lugar para um conflito era secreto, ou mesmo trazido sob a forma de segredo, inconfessável na maioria das vezes para o próprio sujeito que fazia uso de sua fala.
A partir de uma escuta, em seu esforço de cavar o que de precioso e secreto se localizava na superfície do discurso do sujeito, Freud tentava provar a existência do inconsciente e suas consequências por meio da indicação de um buraco na linguagem, de algo cuja busca pelas palavras não atingia o seu alcance. No entanto, os sonhos, os tropeços ou atos falhos, os sintomas, a negação apresentavam um caminho de corte inédito para os sujeitos que queriam se livrar de seu sofrimento - um caminho para alcançar uma verdade a partir de um furo no saber que eles traziam em suas manifestações.
Desde a descoberta da psicanálise como modo de tratar sintomas cuja formação advém do inconsciente, a importância da análise leiga esteve em jogo para qualquer ser graduado que sofresse a incidência desse tipo de tratamento e que, por alguma razão, desejasse depois praticá-lo, como aconteceu com alguns dos pacientes de Freud, que independentemente de sua formação se interessavam por isso. A formação do analista tinha em seu âmago ou mesmo dependia, enfim, da formação do inconsciente.
O próprio fundador da psicanálise, numa carta ao amigo Oskar Pfister, afirmava: “Não sei se o senhor adivinhou a ligação secreta entre A questão da análise leiga e O futuro de uma ilusão. Na primeira, quero proteger a psicanálise dos médicos; na segunda, dos sacerdotes” (Freud & Meng, 2001, p. 167). Trata-se de um antevisto, portanto, sobre o lugar da psicanálise no mundo.
O curioso é perceber que essa ênfase é simultânea à relutância diante dos apelos de um tempo que põe o sujeito sob a égide de um regime superegoico, antes de interdição - como a época de Freud demonstrou -, e agora sob a égide de um regime superegoico do gozo, da permissividade, o da civilização. Desde o início do século XX, Freud observava que “a psicanálise não é uma profissão que se preste a normas regulamentares, tampouco universitárias”. Ele dizia:
Há certas complicações com as quais as leis não se preocupam, mas que não obstante exigem consideração. Talvez venha a acontecer que nesses casos os pacientes não sejam como outros, que os leigos não sejam realmente leigos, e que os médicos não tenham exatamente as mesmas qualidades que se teria o direito de esperar deles e nas quais suas alegações devem basear-se. Se isso puder ser provado, haverá fundamentos justificáveis para exigir que a lei não seja aplicada sem modificação ao caso perante nós. (Freud, 1926/1969b, p. 210)
Ou seja, antes, a relutância da cultura (civilização) à análise leiga provinha da ciência; hoje, do Estado, enfim, não laico. Com outras roupagens, observamos insistir, desde o momento em que a psicanálise nasceu, uma tendência para tentar apagá-la em seu mais íntimo e legítimo rigor.
Da salvação pelos ideais à salvação pelos dejetos
A tese freudiana de que o sintoma ligado à verdade aloja um saber inconsciente permitiu trazer o aspecto de uma salvação pela revelação de uma verdade. Revelar o enigma dessa falha no saber, inconsciente, denotava-o como um saber não sabido. Desse modo, Freud percebia se dissolverem os sintomas dos seus pacientes como resultado do ato de falar, que inevitavelmente os conduzia ao campo da sexualidade, no tocante a algo não realizado ou evitado por uma defesa particular.
O sintoma era uma resposta ao que teria sido intraduzível simbolicamente a partir de um trauma, constituindo ele mesmo, dessa maneira, uma satisfação substitutiva. Assim, essa satisfação substitutiva apoiada numa verdade inconsciente, uma vez revelada, levava à realização de outra satisfação - um alívio, uma salvação pelo ideal. Isso permite dizer que o ideal sustentaria uma salvação simbólica, trazendo um sentido para o sintoma, ligado por sua vez à verdade. É preciso notar que aqui o ideal expressaria um rumo, uma orientação pelo sentido, um resgate do sentido pelo que não se sabia que sabia.
Não foi à toa que Freud se deteve em mitos que embasassem a expressão simbólica da existência de um pai, decisiva como ferramenta de interpretação, fundamentando uma lei para o desejo e a culpa. Com isso, foi dada para o sujeito a localização de algo em torno do qual tudo girava, e que fazia seu laço com uma realidade sexual do inconsciente.
Os mitos de Édipo e de Totem e tabu, por exemplo, traziam, sob a espécie de uma forma épica de dizer a estrutura subjetiva de linguagem, uma orientação pelo sentido, pelo pai como ideal. Expressamente, foi em um de seus últimos trabalhos, intitulado Moisés e o monoteísmo (1939/1969a), que Freud atingiu, a meu ver, o ápice de sua tentativa de transmitir a importância da existência de uma referência única e simbólica como um princípio inerente à causalidade psíquica. Diga-se de passagem, o contexto desse escrito em especial se localizava no tempo da grande guerra mundial, em que a figura de um líder, inclusive, dominava todo o mundo.
Essa ponte da psicanálise com a religião via salvação pelos ideais, pelo sentido, permite introduzir entre as duas certo aspecto de conjunção sobre o qual a doutrina psicanalítica pode se deter muito mais, dada sua importância psíquica, simbólica e estruturante, sobre a qual, entretanto, não vou me deter aqui.
Um passo a mais e esbarramos com a impossibilidade de dizer de onde vem isso, que é o mesmo que dizer da impossibilidade de nomear o lugar do silêncio de onde vêm as palavras - ou, se quiserem, do analista. Assim, essa referência simbólica cai. O discurso do mestre é o avesso do discurso analítico. A salvação passa a ser pelos dejetos. Algo fracassa, inexoravelmente, no campo do ser falante, demonstrando a experiência com o impossível de dizer, a experiência com o real.
No entanto, dizemos que é daí que advém uma invenção libertadora, literalmente do nada, que possa adquirir uma durabilidade, uma satisfação superior, quando se trata de uma salvação pelos dejetos (Miller, 2010). Guardadas as devidas proporções, o caso do mendigo que encontra um livro de biologia no lixo e se torna um médico permite ilustrar a questão do que se extrai de uma análise, quando a sucata que resta no final vira ouro, em meio a um saber fazer com isso - ou com o osso -, sobretudo quando não importa mais a verdade.
Alguns ecos da queda dos ideais na contemporaneidade
É possível observar, então, a queda da referência paterna na passagem que representa o caminho do simbólico ao real. Esse vetor se percebe tanto na trajetória de uma experiência analítica quanto na da civilização moderna, a qual se configura como um produto do discurso da ciência e do capitalismo. Ambas experimentam a queda dos ideais, da referência ao pai, resultando na falta de sentido. Isso, porém, se mostra de forma distinta em cada uma delas (experiência analítica e civilização moderna), justamente no modo de existir.
1. Do lado da civilização moderna, o progresso da ciência favorece uma subjetividade que rechaça o inconsciente, intensifica a não tolerância ao real e evita o adiamento de uma satisfação. Nessa escala progressiva, as realizáveis ficções científicas e jurídicas se tornam obsoletas rapidamente, de acordo com a necessidade atual de satisfação. É dessa forma que, na metonímia ou no deslizamento dos objetos ofertados pela ciência e dos documentos jurídicos que visam contornar situações contemporâneas nunca pensadas antes, permanece uma falta de sentido. Exacerba-se o caráter de permissividade, como já anunciavam os eventos de maio de 1968, sobretudo no refrão que gritava “É proibido proibir”.
Em contrapartida, essas são algumas das roupagens que sustentam certa sede de sentido contemporânea, ou seja, o movimento que leva ao triunfo do sentido, no que diz respeito tanto à ciência quanto à religião. Trata-se de direcionamentos que exigem o tamponamento de um furo intransponível na existência humana, que ofertam um sentido para o que de insuportável a permissividade ao gozo apresenta na civilização atual. Miller observa que, em O futuro de uma ilusão, “Freud pôs o dedo sobre o que é hoje um extraordinário significante mestre da religião: a vida” (2004, p. 12). Nisso, se me permitem dizer, é como se o globo terrestre pudesse ser transformado numa boca aberta. A propósito, Deus é o pão e a vida...
2. Do lado da experiência analítica, a falta de sentido resulta do tratamento das ficções aprisionantes do sujeito, destituindo-se assim o sentido do sintoma, ao mesmo tempo conduzindo-o a uma liberação sob a espécie de uma invenção libertadora, a partir do nada que restou disso tudo. O milagre aqui, se assim posso dizer, é que esse encontro com o que há de mais singular em cada um e que redefine um modo de vida nos permite reconhecer o tamanho da ficção que sustentou todas as nossas escolhas e sofrimentos, reduzindo-a a um engano que não abriga nenhuma correspondência, nem de significado nem de substituição, sob a égide de um discurso que não seria mais o do semblante.
É como se, no osso para o qual se conduzem as palavras que veiculam uma história, a psicanálise viesse sempre demonstrar a existência de um furo irremediável na linguagem. Inclusive, ninguém produz um sonho igual ao do outro, ninguém tropeça nas mesmas palavras em que o outro tropeçou. Há algo que, inexoravelmente, permanece sem par, configurando uma singularidade ímpar. Vê-se aí o caráter irrefutável de um ponto de solidão, incompartilhável, do qual, na maioria das vezes, o travesseiro é cúmplice, depois de todo o barulho das crenças e das leis antes buscadas para se fazer ser e existir. Há uma pedra no caminho, mesmo que nele se estenda um tapete vermelho rumo a uma lucidez medida, (ilusoriamente) esperada. Enfim, há algo insocializável, que em seu mais elevado grau ético não depende nem se submete, definitivamente, ao Outro social.
O que dizer das tentativas de medir, padronizar, regulamentar essa experiência em projetos de lei, muitas vezes por uma fatia da religião presente no Congresso brasileiro? Ou mesmo das ofertas de formação imprópria e de caráter finito veiculadas pela Internet?
O escrito e o futuro
Alguns anos atrás, quando li um discurso de Lacan dirigido aos católicos em 1974, por ocasião de um congresso em Roma, sobreveio a mim um impacto estranho: eu não sabia definir se era um susto, uma indignação, ou mesmo um impulso de lutar contra aquilo, de evitar que acontecesse. O tom de surpresa permanece quando percebo que fiz essa leitura no fim do século XX e que ela se mostra tão atual em termos do que foi antevisto em relação a uma tendência na civilização. Assim, na virada de um século para o outro, experimento então o futuro que estava escrito ali, naquele passado, nesta frase: “A religião triunfará; a psicanálise sobreviverá ou não” (Lacan, 2005, p. 78).
No entanto, atravessados o susto e a indignação, a vontade de lutar contra ou de evitar que isso acontecesse deu lugar à sustentação do desafio, o que implica preservar a psicanálise fora de uma ética moral e a serviço do Estado. Proponho, assim, três razões que, a meu ver, justificam o desafio à prática da psicanálise nos dias de hoje.
A primeira razão é que, por ter vivido uma longa experiência analítica, percebi que o discurso religioso é incompatível com esse terreno, ou seja, o real insiste, o sentido não cobre o que resta dessa experiência. A propósito, a experiência com o inconsciente permite propor uma pergunta que fundamenta a formação de um analista, produzindo-o: a que se veio e de que lugar? Não dá para alcançar isso se lá no osso, na pedra no caminho de uma análise, lá onde se instala a retirada de um amparo pela crença no Outro, se dá consistência a esse Outro. Não dá para viver a dimensão real da letra que escreve o ser falante - e que marca, de certa forma, seu destino nessa instauração do trauma da linguagem - se a substituímos pela demanda do Outro social, pondo-nos sob uma lei burocrática, que se adéqua e obedece ao patrão contemporâneo.
Para os inadvertidos do caráter irredutível do sentido da letra que escreve cada ser falante no mundo e da impossibilidade radical de fazer sua leitura contingente dentro de uma carga horária, tais candidatos podem facilmente aceitar, nessa onda de satisfação ou busca pelo sentido e pelos números, o seguinte: “Tome esta avaliação feita em dois anos, este número de horas para sua análise e supervisão. Creia que um sintoma é eliminado, e não liberado, para que você possa rapidamente sentar-se numa poltrona e receber quem vai lhe pedir ajuda. Mas não se esqueça: você tem que obedecer a um registro com carteira profissional de psicanálise, bem como à respectiva fiscalização, para se dizer um psicanalista apto a receber pacientes”.
Posso afirmar então que há um tensionamento, certo misto de surpresa e consequência, que implica, de um lado, sustentar uma intervenção no discurso social - ou seja, preservar a psicanálise fora de uma regulamentação pelo Estado - e, de outro, sustentar o que a rigor se vive numa experiência analítica, justamente ao lado do que “legitima”, entre a doutrina e a política da psicanálise, a formação do analista. Trata-se da intervenção de um singular produzido na formação do analista via sua própria experiência analítica, sobre o universal. É possível dizer que o que importa mesmo é manter a prática analítica - a formação que a sustenta - em certa ruptura com as demandas do Outro social; importa a posição do analista como um rebotalho da humanidade.
Logo, a ação que implica preservar a psicanálise fora de um charlatanismo articula, de forma especial, a importância decisiva da experiência analítica sob a égide de um tempo sem duração e um consequente movimento na civilização para conservá-la, essa experiência analítica, fora do domínio ditado pelo mestre contemporâneo, fora das falsas garantias obtidas pelas normas, pelas regras de carga horária e também pelo sentido.
A segunda razão que justificaria o desafio à prática da psicanálise nos dias de hoje se liga ao fato de que o futuro é incerto e a cada um pertence. A sobrevivência da psicanálise supõe o esvaziamento de um lugar para quem se submete a ela. Esse lugar, por sua vez, é “conquistado” a partir de uma longa experiência com o inconsciente, outra forma de falar sobre a importância de saber não saber. Sumariamente, essa é a condição para que uma causa - a causa analítica daí proveniente - favoreça a escuta de outros sujeitos sem interferir na construção do desejo inconsciente que operou na fantasia e no sintoma de cada um deles.
Assim, o analista produzido numa experiência analítica carrega um aspecto que não nos permite dizer que a psicanálise sobreviverá, mas fundamentalmente onde ela sobrevive. O analista, na verdade, é um resto dessa operação analítica e que marca o princípio de um novo discurso. Tal posição advém de acordo com a letra consentida de uma nova forma, no destino daquele que fez do ofício da psicanálise um modo de vida.
A terceira razão para o desafio atual à psicanálise provém da interferência da religião na política, decorrendo daí o nefasto interesse de regulamentar a psicanálise. Nosso objeto de trabalho é, portanto, lutar contra isso, tentar evitar que isso aconteça, sustentando a legitimidade do ofício da psicanálise fora de uma lei insensata e equivocada.
Adiante!
Há uma preocupação que a Escola Brasileira de Psicanálise tem desde o ano 2000, quando, junto a 17 instituições psicanalíticas que se reuniram sob a égide da criação de um movimento denominado Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, nos contrapusemos ao projeto de lei elaborado por um deputado e pastor evangélico, que visava regulamentar a psicanálise sob critérios burocráticos impróprios à tão cara ética psicanalítica.
De 1975 a 1980, seis projetos de lei dessa natureza foram elaborados; a este do ano 2000 seguiram-se outros três, igualmente arquivados. No antepenúltimo projeto de lei, elaborado em 2010, conseguimos, através de cartas assinadas pelas instituições envolvidas no Movimento, evitar que a psicanálise fosse inserida, dessa vez, no campo das psicoterapias. No fim do ano de 2017, estivemos diante de mais um projeto de regulamentação da psicanálise, dessa vez sob a égide das terapias naturistas.2
Das últimas décadas do século XX até hoje, podemos enumerar pelo menos 10 tentativas de regulamentar a psicanálise. Isso significa ser necessário mais preocupação a respeito, pois, em dimensões opostas, os religiosos trabalham em silêncio, até que um novo incêndio aconteça. Somos impelidos a “defender” a psicanálise, ao pôr à prova sua prática e sua doutrina, e fundamentalmente os efeitos da experiência analítica de cada um.
É evidente, no entanto, que não se trata de levantar a bandeira da psicanálise, reclamar também o seu triunfo. Talvez possamos nos limitar a dizer a que vem a psicanálise e de que lugar - uma prática que não admite nem se vale de uma autorização burocrática estatal.
O que fez nascer a psicanálise, batizada por Sigmund Freud, foi o momento em que uma paciente lhe rogou que desprezasse outros métodos intermediários e, simplesmente, a deixasse falar. O nascimento da psicanálise transformou a civilização, apontando-lhe o seu mal-estar: primeiro sob a égide de uma cultura da inibição; hoje sob a égide uma cultura da desinibição.
O triunfo do sentido
O problema que se apresenta então é saber por que alguns políticos que fizeram sua escolha pela religião evangélica se interessam em regulamentar a psicanálise. Como desfazer o equívoco crescente, que traz sérias e graves consequências, no que tange ao uso da psicanálise sob a forma de um ideal religioso, seja ele qual for? Não temos nada contra os religiosos, mas descaracterizar a psicanálise é preocupante. Sua ética própria não se assenta, sob espécie alguma, numa educação, numa crença ou numa moral. A doação de sentido tem o preço da morte do sujeito desejante.
Há vida na voz
Como introduzir uma intervenção que aponte para o resgate do ser desejante, em meio ao empuxe homogeneizante e mortífero da promessa de felicidade e completude que a religião e a ciência simulam em suas crenças e leis?
Do império do sentido e da imagem ao eco de uma voz que dê lugar ao consentimento de que nem tudo é traduzível pelo sentido - este, a meu ver, seria o percurso para sustentar o real que faz sobreviver as sutilezas da psicanálise, as quais guardam o que há de mais singular e inavaliável em cada um. Por enquanto, porém, “assistimos a um maravilhoso esforço, uma nova juventude da religião em seu esforço de afogar o real por meio do sentido” (Miller, 2004, p. 14).
Antes de concluir, deixo três pontos para reflexão, ou algumas vertentes passíveis de serem extraídas dessa tendência atual:
A ideia de uma complementação entre o espírito e o psíquico, inerente à interferência da religião sobre a psicanálise nos tempos atuais, não é o aspecto central. Os ideais religiosos fazem uso da psicanálise para o aumento dos fiéis e dos dízimos, como podemos ver num texto publicado por Amanda Massuela (2014): “Pastores brasileiros usam psicanálise para cativar fiéis evangélicos. Por meio do estudo das teorias de Freud, religiosos tentam aumentar o rebanho e o dízimo”.
A presença de uma proliferação em massa das propostas de formação em psicanálise, “garantidas” pelo papel reciclado de um diploma e veiculadas pela Internet, bem como a instalação de filiais em todo o território nacional, é preocupante, pois podemos identificar nas premissas dessas ofertas e filiais os projetos de lei para regulamentar a psicanálise até então arquivados. Essas propostas de formação estão adquirindo um caráter progressivo e irrefreável.
A direção para um movimento mais abrangente, que em seu voto evite que uma ferida indesejável e insistente se instale na laicidade de uma análise, bem como na política brasileira, é algo, enfim, que deve ser considerado.
Penso que tudo dependerá dos efeitos que uma experiência analítica traz, nos campos clínico, epistêmico e político - ou seja, dos efeitos de uma psicanálise pura sobre os ideais sociais e políticos. A meu ver, é aí que o ensinamento de Jacques Lacan no Seminário 14, A lógica da fantasia (1966-1967), encontra uma expressão que evidencia ou reforça, no contexto atual, o pivô de uma direção: “O inconsciente é a política”.
Assim, na pergunta que indica a longa e permanente trajetória da formação do analista, qual seja, “A que se veio?”, algo permanece intocável, intra-duzível, mas inegavelmente mantém e coloca em movimento o rigor de uma causa analítica. A partir da letra que redefiniu, de certo modo, um destino a ser tomado aí, eu me aproximo do real num jogo inerente à formação analítica, nesse chamado à reconquista do campo freudiano. Trata-se de algo que exprime nada mais do que a marca de um desejo, a saber, o de fazer sobreviver a psicanálise pela sustentação do real, e não por uma burocracia ou por um ideal religioso. Há um dever ético de manter a psicanálise fora da lei do Estado ou daquela que incentiva a culpa e o sacrifício.
Referências
Freud, E. L. & Meng, H. (Orgs.). (2001). Cartas entre Freud e Pfister: 1909-1939 (K. H. K. Wondracek & D. Junge, Trads.). Viçosa: Ultimato. [ Links ]
Freud, S. (1969a). Moisés e o monoteísmo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 13-161). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1939) [ Links ]
Freud, S. (1969b). A questão da análise leiga. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 20, pp. 205-293). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1926) [ Links ]
Lacan, J. (1966-1967). O seminário, livro 14: a lógica da fantasia. Texto não publicado. [ Links ]
Lacan, J. (2005). El triunfo de la religión. In J. Lacan, El triunfo de la religión: precedido de Discurso a los católicos (N. A. González, Trad., pp. 67-100). Buenos Aires: Paidós. [ Links ]
Massuela, A. (2014, 5 de setembro). Pastores brasileiros usam psicanálise para cativar fiéis evangélicos. Cult. Recuperado em 2 de jan. 2019, de operamundi.uol.com.br/samuel/37724/pastores-brasileiros-usam-psicanalise-para-cativar-fieis-evangelicos. [ Links ]
Miller, J.-A. (2004). Religião, psicanálise. Opção Lacaniana, 39,9-24. [ Links ]
Miller, J.-A. (2010). A salvação pelos dejetos. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 67,21-27. [ Links ]
Correspondência:
Samyra Assad
Rua Professor Estevão Pinto, 72/101
30220-060 Belo Horizonte, MG
Tel.: 31 99955-0121
samyra@uai.com.br
Recebido em 20/12/2018
Aceito em 22/12/2018
1 Este texto, em sua primeira versão, foi apresentado na abertura do 1.º Colóquio do Observatório Lacaniano da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), realizado em Florianópolis (SC), em 23 de agosto de 2014. O evento nasceu da preocupação com o surgimento de uma “psicanálise de Deus” em Florianópolis, apoiada pela prefeitura da cidade. Além dos colegas do Observatório, do diretor e do presidente da EBP, participaram do evento a jornalista Clara Becker, a professora de direito Jeanine Nicolazzi Philippi e um representante da Escola Letra Freudiana (RJ) no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, Mauricio Lessa. A versão atual do texto também se encontra no livro Ofício do psicanalista II (do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras), organizado por Ana Sigal, Bárbara Conte e Samyra Assad, com lançamento previsto para 2019.
2 Trata-se do PL n.° 174/2017. Um pouco mais tarde, em abril de 2018, surgiu outro projeto específico para a regulamentação da psicanálise, o PL n.° 101/2018, contra o qual nossa luta atualmente continua.