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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2018
PROJETOS E PESQUISAS
Clínica institucional: abrigar o desamparo
Institutional practice: giving shelter to helplessness
Clínica institucional: abrigar el desamparo
Clinique institutionnelle: abriter le désarroi
Moisés Rodrigues da Silva Júnior
Médico, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, diretor de Projetos Terapêuticos
RESUMO
Por ser demasiado humana, a clínica institucional envolve sempre pares em oposição: a força da vida institucional e a força de erupção da desmedida; o enquadre e sua aparente imobilidade e os movimentos vitais em direção ao futuro; os espaços físicos e simbólicos e os processos; as intermináveis repetições e o novo; a preservação e a criação (nela incluída a destruição necessária). É intrigante o movimento de construção e desenvolvimento de projetos de vida. Não se trata de mediações que eliminem as oposições ou que cedam a elas, deixando-se paralisar em um dos polos. Retomando Bleger e fazendo-o conversar com Winnicott, abordamos o vínculo paradoxal entre o imóvel do enquadre analítico e a mobilidade necessária aos processos implicados no tratamento. Nossa proposta é que a correlação positiva entre vida e projetos compartilhados é uma construção que vale a pena ser feita. Favorecer e articular projetos que têm valor de vida é nossa meta clínica institucional.
Palavras-chave: clínica institucional, sincrético, campo intermediário, experiência, projeto
ABSTRACT
Because of its excessive humanity, institutional (clinical) practice always involves opposed pairs: the strength of institutional life and the strength of the eruption of excess; framing and its apparent stillness and the vital movements towards the future; the physical and symbolic spaces and the processes; the endless repetitions e the new; the preservation and the creation (which includes the necessary destruction). The movement of construction and development of life projects is intriguing. It is not about mediations which either remove oppositions or surrender to them, and then, let themselves paralyze in one of the poles. Back to Bleger's work, the author connects it with Winnicott's in order to deal with the paradoxical bound between the stillness of the analytic framing and the mobility that is needed to the processes the treatment implies. The author proposes that the positive correlation between life and shared projects is a construction that is worth being done. Favoring and articulating projects with value of life is our goal with institutional practice.
Keywords: institutional practice, syncretic, intermediate field, experience, project
RESUMEN
Por ser demasiado humana, la clínica institucional involucra siempre pares opuestos: la fuerza de la vida institucional y la fuerza de erupción desmedida; encajar y su aparente inmovilidad y los movimientos vitales en dirección al futuro; los espacios físicos y simbólicos y los procesos; las interminables repeticiones y lo nuevo; la preservación y la creación (incluida en ella la destrucción necesaria). Es intrigante el movimiento de construcción y desarrollo de proyectos de vida. No se trata de mediaciones que eliminen las oposiciones o que cedan a ellas, dejándose paralizar por uno de los polos. Retomando a Bleger y haciendo que converse con Winnicott, abordamos el vínculo paradójico entre lo inmóvil del encaje analítico y la movilidad necesaria para los procesos implicados en el tratamiento. Nuestra propuesta es que la correlación positiva entre vida y proyectos compartidos es una construcción que vale la pena realizar. Favorecer y articular proyectos que tienen valor de vida es nuestra meta clínica institucional.
Palabras clave: clínica institucional, sincrético, campo intermediario, experiencia, proyecto
RÉSUMÉ
En étant trop humaine, la clinique institutionnelle concerne toujours des paires en opposition: la force de la vie institutionnelle et la force de l'éruption de la démesure; le cadre analytique et son apparente immobilité et les mouvements vitaux vers l'avenir; les espaces physiques et symboliques et les processus ; les répétitions interminables et le nouveau ; la préservation et la création (y compris la destruction nécessaire). Ce qui est intrigant, c'est le mouvement de construction et de développement de projets de vie. Il ne s'agit pas de médiations qui éliminent les oppositions ou qui cèdent à elles, en se laissant paralyser sur un des pôles. En reprenant Bleger et le faisant dialoguer avec Winnicott, nous abordons le lien paradoxal entre l'immobilité du cadre analytique et la mobilité nécessaire aux processus impliqués dans la cure. Ce que nous voulons proposer, c'est que la corrélation positive entre la vie et les projets partagés est une construction qui vaut la peine d'être accomplie. Favoriser et articuler des projets qui ont une valeur de vie, voici notre but institutionnel.
Mots-clés: clinique institutionnelle, syncrétique, champ intermédiaire, expérience, projet
Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo de uma ponte, mas pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro.
(Manoel de Barros, “Ruína”)
No Projetos Terapêuticos, trabalhamos com clínica institucional, ocupados permanentemente em singularizar nossas intervenções terapêuticas, em buscar a melhor forma de abordar e tratar o sofrimento de pessoas, de situações familiares e grupais.
Neste texto, apresento referências teórico-clínicas que fundamentam nossa prática. Na condução de casos de desmedida, é preciso lançar mão da montagem de dispositivos de atendimento sem perder a especificidade da escuta analítica, como uma tensão que deve ser sustentada, pois viabiliza um dinamismo necessário ao trabalho.
Os casos que demandam tratamento em instituição são aqueles em que os recursos do sujeito e o seu entorno não foram eficazes para impedir o transbordamento violento da subjetividade para o campo social. A situação oculta muito mais do que desvela, e a palavra aponta para a incerteza de haver um segredo, de não haver nenhum ou de haver vários. De qualquer forma, impõe sistematicamente um tipo de desassossego difuso, divergente, centrífugo, orientado para a inconstância e a permanente transformação das referências e das formas visíveis, estando cada palavra ao mesmo tempo animada e arruinada, preenchida e esvaziada, pela possibilidade de que haja uma segunda palavra, ou uma terceira, ou nada.
Diferentemente das vezes em que estamos diante de sujeitos capazes de abordar discursivamente o próprio sofrimento, de imaginar e falar das razões de suas dores e males, e de tomar uma ação a partir da compreensão de sua própria história, nas situações de desmedida somos convocados a formas muito primitivas de experiência subjetiva, de ordem imediata, motora e sensorial, próprias dos primórdios da vida psíquica. Portador de uma experiência que não pode ser acessada linguisticamente, o sujeito se apresenta ligado ao mundo através da experiência direta (não discursiva), característica das formas primárias de relação com o ambiente.
Os eventos iniciais relevantes, especialmente marcantes, são impossíveis de serem transpostos de maneira igualmente forte no registro da palavra. A experiência com a linguagem verbal eventualmente emergirá no tempo futuro contra o pano de fundo mais amplo e originário das experiências compartilhadas. De acordo com Dewey (1938/2008), um universo de experiência é precondição para um universo de discurso.
Nesse contexto, encontramos reiteradamente a errância dos sujeitos como uma forma singular de trânsito e ocupação de espaços, assim como a vivência de aniquilamento e despersonalização como um sinal de instabilidade na constituição psíquica. São situações que exigem a instauração de um enquadre voltado para a construção de bordas e delimitações que permitam regular as desmesuras do sujeito.
Vale a pena lembrar como Bleger inicia o texto em que propõe a noção de enquadre:
Winnicott define o setting como “a soma de todos os detalhes da técnica”. Proponho, por razões que se explicitarão no desenvolvimento do tema, a adoção do termo situação psicanalítica para a totalidade dos fenômenos envolvidos na relação terapêutica entre analista e paciente. Tal situação abarca fenômenos que constituem um processo, ou seja, o que é objeto de nossos estudos, análises e interpretações; mas inclui também um enquadramento, isto é, um não processo, constituído pelas constantes, pelos marcos, em cujo interior se desenvolve o processo. ... Incluímos no enquadramento psicanalítico o papel do analista, o conjunto de fatores espaciais (ambiente) e temporais, e parte da técnica, na qual se inclui o estabelecimento e a manutenção de horários, honorários, interrupções planejadas etc. (1967/1977, p. 311)
Numa nota de rodapé ao termo técnica, diz ainda que “o enquadramento corresponde mais a uma estratégia que à técnica” (p. 325).
Na concepção de Bleger, uma relação que se estende por um longo período, com a manutenção de um conjunto de normas ou atitudes, não é outra coisa senão a própria instituição. Logo, o enquadre é parte da identidade do sujeito. Segundo o autor, “a identidade é sempre - total ou parcialmente -grupal ou institucional, isto é, pelo menos uma parte da identidade é sempre configurada pela pertinência a um grupo, a uma instituição” (p. 313).
Nossos pacientes, os da desmedida, não podem agir com base nos modelos já apropriados, os enquadres mais amplos e que funcionam como metaenquadres para uma sociabilidade por interação: os modelos, as regras e as normas sociais, jurídicas, políticas, culturais, religiosas e ideológicas, que regem a todos e são os referentes para estabelecer o enquadre das organizações, dos pequenos grupos, das famílias, dos casais e do sujeito. Eles se acham numa situação de regressão a níveis de uma sociabilidade sincrética, não constituída por inter-relação ou interação, exigindo antes uma dissolução das individualidades.
Para Bleger, o enquadre proposto para o tratamento se compõe necessariamente de um enquadre trazido pelo paciente, a partir do que ele projeta sobre o analista com base em seu mundo fantasmático. Na clínica institucional, definida em seu aspecto relacional, “o enquadre do paciente é sua fusão mais primitiva com o corpo da mãe” (Bleger, 1967/1977, p. 318), e assim deve ser acolhido, para que se restabeleça a simbiose original, mas justamente para modificá-la. O sofrimento é intenso nessas situações, e a desesperança domina o sujeito.
A dor emocional reduz a vida, limita a liberdade do sujeito, o qual permanentemente aspira por um “voltar a ser normal”, retomar uma atividade interrompida ou pelo menos uma atividade valorizada por ele ou por seu meio social - nada mais que o projetar de um futuro a partir do passado, em busca de um resgate da “saúde”.
Para nós, a doença não é uma variação da dimensão de saúde, mas outra dimensão de vida, potência de criação de novas formas de ser. A vida tem uma característica fundamental: ela é uma atividade contra a inércia e a indiferença. Insistimos nesse aspecto porque ele nos permite compreender o eu enquanto projeto e o ideal do eu enquanto meta visada pelo eu, que o lança sempre para a frente, num movimento em direção a.
O eu não é um estado, mas um fazer-se; é um processo. O projeto é a construção de uma imagem ideal que o eu propõe a si mesmo no futuro, que não pode coincidir com a imagem que o sujeito constrói dele no presente; é uma abertura no tempo para a possibilidade de um vir a ser no futuro, que uma vez alcançado deverá tornar-se fonte de um novo projeto. Entre o eu futuro e o eu presente, deve persistir uma diferença, num movimento que só terminará com a morte.
Projetos de vida são parte dos diferentes projetos humanos, na tentativa de transpor seus limites, para afastá-los ou para negá-los. Entendemos a interação entre sujeito e projeto como irredutível, complementar e indissociável.
Nossa proposta é que a correlação positiva entre vida e projetos compartilhados é uma construção que vale a pena ser feita. Favorecer e articular projetos que têm valor de vida é nossa meta clínica. Tentamos fazer da pedra que sempre existirá no meio do caminho, como nos lembra Drummond, não uma impossibilidade, mas um bom motivo para prosseguir em nossa aventura.
Nessas situações, o uso da interpretação tem um alcance limitado, impondo-se então a construção de uma clínica do cuidado, em que o manejo passa a ser a forma primordial de intervenção. Essa passagem exige instrumentos teóricos e clínicos que permitam a abordagem do complexo campo das experiências pré-linguísticas ou não discursivas.
Ética dos cuidados: possibilidade de futuros
A prática se legitima por meio de uma ética dos cuidados, referência necessária à condição de existência do sujeito, pela qual se pode abordar não somente a experiência da desmedida, mas também a de um tratamento possível dela a partir da relação com o outro. É por essa razão que substituímos o termo curar por cuidar, que significa ocupar-se aqui e agora da vida concreta e cotidiana que alimenta o estado de necessidade do sujeito.
Consideramos imprescindível ao tratamento uma relação com o outro, não a entendendo a partir da inclusão social, e sim a partir de um laço social possível. Em 1942, Winnicott estava num encontro quando subitamente disse: “O bebê não existe”. O indivíduo passou, então, a ser considerado não uma unidade, mas uma estrutura ambiente-indivíduo:
Se me for apresentado um bebê, certamente também me será apresentado alguém que cuida desse bebê. ... Podemos entrever os cuidados próprios a esse par. ... Antes das relações objetais, a unidade não é o indivíduo. A unidade é a estrutura ambiente-indivíduo. O centro de gravidade do ser não se coloca no indivíduo, mas sim no todo da estrutura. (Winnicott, 1952/1988a, p. 208)
Projeto e experiência: em direção ao futuro
A palavra projeto vem de projetar, lançar-se para a frente, dando a ideia de movimento, de mudança. A origem etimológica do termo confirma a forma de entendê-lo: “Vem do latim projectu, particípio passado do verbo projicere, que significa lançar para diante” (Veiga, 1996, p. 12), representando o laço entre presente e futuro, sendo a marca da passagem do presente para o futuro.
Num estudo sobre a antropologia do projeto, Boutinet (2002) explica que o termo obteve reconhecimento no fim do século xvii, e que a primeira tentativa de formalizar um projeto foi através da criação arquitetônica, com um sentido semelhante ao que nele se reconhece atualmente.
Numa tentativa de síntese, podemos dizer que a palavra projeto faz referência à ideia de projetar, lançar para; à ação intencional e sistemática em que estão presentes a utopia concreta e a confiança, a ruptura e a continuidade, o instituinte e o instituído.
Todo projeto supõe ruptura com o presente e promessas para o futuro. Projetar significa tentar romper um estado confortável para arriscar-se, atravessar um período de instabilidade a fim de buscar uma nova estabilidade, em razão da promessa que cada projeto contém de um estado melhor do que o presente.
Os projetos, mesmo os menores e elementares, portam a valorização do concreto e do experimental para a realização da vida e do indivíduo, no projeto e no ser. O projeto não pode ser reduzido a uma atividade mental. Ele deve estar sempre associado a um fazer, a um comportamento que se cria no persistir até que o fim seja atingido, quer dizer, até que uma ação transformadora tenha acontecido.
Essencialmente nos interessa no projeto a experiência vivida, atual, em contraposição à aprendizagem acumulada pelas experiências passadas. Isso implica uma leitura que leva em conta uma subjetividade em permanente construção, desconstrução, reconstrução, num trabalho incessante para revivificar “a vida passada”, estando em movimento para a frente, em direção ao futuro. O dispositivo terapêutico está permanentemente sendo reposicionado, corrigido, alterado em busca de uma melhor conexão entre sujeito e ambiente, constituindo-se num ponto de referência e ancoragem para os esforços do sujeito (incluamos aqui as frustrações).
Winnicott destaca o holding, a regressão à dependência e o uso de objetos nas situações em que o trabalho do analista é desafiado para além da interpretação. O autor faz uma distinção fundamental entre um recurso técnico, a interpretação, e a realização de um trabalho analítico:
A análise não consiste apenas no exercício de uma técnica. É algo que nos tornamos capazes de fazer quando alcançamos certo estágio na aquisição da técnica básica. Aquilo que passamos a poder fazer é cooperar com o paciente no seguimento de um processo, processo esse que em cada paciente tem o seu próprio ritmo e caminha no seu próprio rumo. Todos os aspectos importantes desse processo originam-se no paciente, e não em nós enquanto analistas. (1954-1955/1988b, p. 459)
Quando o eu ainda não é uma entidade, Winnicott diz que os pacientes, aos poucos, podem vir a ter a esperança de que lhes seja possível sentir-se reais. Nesses casos, o contexto (setting/ambiente) torna-se mais importante que a interpretação, e a manutenção de uma situação adaptativa ao eu é fundamental.
Nossa preocupação com os sensíveis registros e expressões de sofrimento, decorrentes de diferentes momentos de falha no processo maturacional e que demandam modos distintos e específicos de trabalho clínico, recai sobre o manejo e o estabelecimento do setting. O centro de gravidade está fora, no ambiente.
Podemos dizer que, para Winnicott, a experiência é um trafegar constante na ilusão, uma interação entre a criatividade e aquilo que o mundo tem a oferecer. Em seu prefácio à edição francesa de O brincar e a realidade, Pontalis ressalta a originalidade da noção de espaço potencial no pensamento psicanalítico. Segundo ele, o espaço potencial não é a cena dramática freudiana, em que desfilam as figuras parentais e se repete incessantemente o originário fantasmático. Não se trata também do locus kleiniano de bons e maus objetos, destinados à indefinida combinatória de projeções e introjeções. O espaço potencial é um terreno de jogo, de fronteiras indeterminadas, que faz nossa realidade (Luz, 1989).
“O espaço potencial é instável e, mesmo, terrificante: oferece ao homem um lugar comparável ao muro em que se equilibra Humpty Dumpty, o per-sonagem-ovo de Alice, de Lewis Carroll” (Luz, 1989, p. 30). É no entre do espaço potencial que o bebê tem experiências intensas. Esse espaço situa-se na possibilidade lúdica entre o não haver nada além de mim e o haver objetos e fenômenos fora do meu controle onipotente. A dependência é máxima, e o uso do espaço potencial acontece somente em decorrência do sentimento de confiança por parte do bebê, sendo determinado pelas experiências que ocorrem nos estágios iniciais da vida do sujeito.
A concepção winnicottiana articula experiência e espaço potencial, considerando que o encontro entre mãe e bebê, com a novidade e a variedade de elementos sensoriais e lúdicos que o acompanham, está em continuidade com o desenvolvimento posterior de todo o mundo simbólico. É pelos cuidados dispensados ao bebê, sintônicos com suas necessidades nesse momento, que se produz um sentimento de confiança nele, levando-o a introjetar a situação de dependência e a confiar no mundo, a fim de poder brincar sem se sentir ameaçado e manter uma continuidade de vida.
O ambiente que não atende às necessidades mínimas do bebê acaba criando barreiras de contato, porque gera uma total desconfiança do bebê sobre o que pode esperar. O impacto, seja do ambiente, seja dos impulsos vitais, encontrando-se com a barreira protetora, fica impedido ou chega intensamente filtrado, não podendo ser processado como experiência, ou sendo processado de maneira parcial e lacunar.
É possível dizer que mãe má é o nome dado não a uma pessoa, mas à ausência de uma pessoa que goste e cuide do bebê. Nessa direção, Winnicott observa que só poderão ser sentidos como reais os acontecimentos de vida que puderem ser processados pela experiência que acontece no espaço potencial e se desdobra nos fenômenos transicionais.
Assim, a noção de experiência assume o estatuto de conceito diferencial no pensamento winnicottiano, uma vez que discrimina a constituição de psiquismos verdadeiros da produção de psiquismos falsos, as defesas normais neuróticas das chamadas defesas esquizofrênicas, nas quais o falso self cindido se inclui.
O sujeito encontra-se imerso, todo o tempo, num campo potencial de possibilidades não realizadas (potência de alteridade, de criatividade), que dizem respeito a um repertório de forças sociais acessadas na experiência. A criação que pode ocorrer, escapando das repetições de um inconsciente ancorado no passado, é antes de tudo a expressão de um estar vivo no mundo: a possibilidade de produção “transformante” de si mesmo a partir do encontro com o social, que nos atravessa; a possibilidade de sermos surpreendidos na e pela experiência.
Vigotski tem um trabalho instigante sobre a atividade criadora e sua relação com a experiência sociocultural. Nele, o autor emprega o termo perejivânie, de uso comum no russo, traduzido como “experiência”, “vivência”, “emoção”, “sentimento” e “impressão experimentada”. A ideia é que uma situação objetiva pode ser percebida, experimentada, interpretada diferentemente por diversos sujeitos. A perejivânie refere-se a um tipo de evento que tem uma característica de transformação, a qual marca uma diferença nos sujeitos em que se dá, de maneira que a apreensão do real não acontece como mera interpretação nem como mera emoção, tratando-se de um efeito que integra vários aspectos da vida psíquica (Toassa, 2014).
Na perejivânie de Vigotski, encontramos uma ideia de vida que se recria e se singulariza na experiência, que não é uma simples troca entre instâncias isoladas, mas que se refere a uma relação transversal. Essa compreensão nos leva a buscar permanentemente a ampliação de atravessamentos que dizem respeito a conteúdos do social, do mundo e das pessoas, e que devem ser incluídos no projeto, como um fator de desafio e enriquecimento.
É ao poder envolver-se com uma gama maior de interesses, abrir-se à possibilidade de projetos, nem sempre claros, mas que podem ser apoiados e até postos em prática, que uma pessoa sente que vive. A entrada do e no mundo através dos pequenos desvios e das transversais pode ajudar a eclosão de uma forma nova, permitindo ao sujeito prisioneiro de uma mesmidade ampliar os horizontes de vida e relacionar-se com situações e pessoas variadas, que o levem a retroalimentar o significado e o sentido que atribui a seu projeto. No exercício da transversalidade, o analista pode sentir satisfação por ver que seu trabalho tem mais chances de estar ligado à vida como um todo.
Um último aspecto a destacar sobre o termo perejivânie: o verbo relacionado a ele é de natureza imperfectiva, ou seja, é um verbo que se refere a ações em desenvolvimento, não concluídas, inacabadas, que aludem ao fluxo do acontecer. Esse aspecto é de especial interesse às formulações da clínica de projetos, uma vez que a experiência proporcionada pelo real da atividade, pela sua potência de obra aberta, comporta o desdobrar-se em outras experiências, sejam elas associadas à atividade em curso, ao passado ou ao futuro. Uma experiência é sempre uma possibilidade de abertura e conexão com novas experiências.
Nesse sentido, a fecundidade entre as concepções de atividade e experiência se expressa no poder lançar-se de forma potente à realização de conexões, valendo-se das construções passadas para, a partir do presente, construir um futuro. A utilização do conceito de experiência condensa num campo comum tanto sujeito e meio quanto dimensões psíquicas e sociais, individuais e coletivas.
Projeto/palavra/encontro: o grupo
A possibilidade dialógica da palavra, sempre uma ponte construída entre pessoas, é a base para a afirmação de que nas trocas verbais o novo pode emergir, transformando os sujeitos em meio às relações que estabelecem. O diálogo é utilizado não apenas como um instrumento para compartilhar as percepções sobre o projeto, não apenas como uma forma de acessar outra atividade, mas como uma atividade em si mesma. Assim, cada sujeito entra em ação ao se dirigir aos demais no movimento da conversa, encontrando, sem forçosamente procurar, algo novo de si próprio.
Estar em atividade de interação permite a construção efetiva de novos modos de viver através do encontro, o que implica o fortalecimento da dimensão coletiva. No projeto desenvolvido com outros no grupo, mediante o real da atividade, abre-se uma dimensão não individualizada do fazer (e do ser). É pelo encontro do projeto com as palavras e por meio delas que os participantes falam do que fazem, e o que fazem do que falam se relaciona às possibilidades de fazer da experiência uma abertura para viver novas experiências de ordem grupal. O encontro pode ser visto como uma atividade que transforma a experiência vivida num meio de viver, um suporte para seguir a experiência, tornando-a frutífera, transmissível e fértil.
Referências
Bleger, J. (1977). Simbiose e ambiguidade (M. L. X. A. Borges, Trad.). Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1967) [ Links ]
Boutinet, J.-P (2002). Antropologia do projeto (P. C. Ramos, Trad.). Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Dewey, J. (2008). Logic: the theory of inquiry. In J. Dewey, The later works (Vol. 12). New York: Dover. (Trabalho original publicado em 1938) [ Links ]
Luz, R. (1989). O espaço potencial: Winnicott. Percurso, 2(3),25-32. [ Links ]
Toassa, G. (2014). Relações entre comunicação, vivência e discurso em Vigotski: observações introdutórias. Psicologia da Educação, 39,15-22. [ Links ]
Veiga, I. P. A. (1996). Projeto político-pedagógico da escola: uma construção coletiva. In I. P. A. Veiga (Org.), Projeto político-pedagógico da escola: uma construção possível (2.ª ed., pp. 11-35). Campinas: Papirus. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1988a). Ansiedade associada à insegurança. In D. W Winnicott, Textos selecionados: da pediatria à psicanálise (J. Russo, Trad., pp. 205-210). Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1952) [ Links ]
Winnicott, D. W. (1988b). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão dentro do setting psicanalítico. In D. W. Winnicott, Textos selecionados: da pediatria à psicanálise (J. Russo, Trad., pp. 459-482). Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Trabalho original publicado em 1954-1955) [ Links ]
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Recebido em 28/11/2017
Aceito em 12/12/2018