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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.52 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2018
RESENHAS
Psicossexualidades: feminilidade, masculinidade e gênero
Ana Maria Rosa Rocca Rivarola
Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
Autora: Teresa Rocha Leite Haudenschild
Editora: Escuta, São Paulo, 2016, 256 p.
Resenhado por: Ana Maria Rosa Rocca Rivarola
Este livro é uma importante contribuição aos estudos de psicossexualidade e gênero. Reúne artigos escritos pela autora durante quase 20 anos, que expressam sua experiência clínica e seu conhecimento teórico sobre o tema e deixam transparecer uma trajetória consistente e coerente de investigação psicanalítica. É uma obra relevante para os psicanalistas de diferentes regiões e culturas interessados no estudo das psicossexualidades, principalmente para aqueles que fazem parte dos diferentes grupos de estudo que compõem o Comitê Mulheres e Psicanálise, da Associação Psicanalítica Internacional (Cowap-IPA).
Ao longo dos capítulos, a autora expõe de maneira viva e profunda seu pensamento sobre a constituição da psicossexualidade, considerada como um fenômeno cuja evolução abrange o corpo, o psíquico e o sociocultural. O livro se divide em quatro partes: “O evolver da psicossexualidade”, “A feminilidade e suas vicissitudes”, “Mulheres e psicanálise” e “Transferência erótica e processo analítico”.
A primeira parte começa com o artigo “Escuta analítica da bissexualida-de psíquica”. Sempre com base na clínica, Teresa aborda aspectos como a importância das figuras parentais e do entorno familiar e cultural na constituição da identidade de gênero e no desenvolvimento da personalidade. Observa que, para escutar a bissexualidade psíquica de seus analisandos, o analista precisa ter elaborado suficientemente sua própria psicobissexualidade; precisa ter um bom casal parental internalizado, o que pressupõe diferenças de gênero e de gerações. A partir dessa referência interna, o analista pode escutar as falhas na estruturação da bissexualidade psíquica de seus analisandos, que muitas vezes se devem a fatores transgeracionais, a falhas na constituição do psiquismo dos pais desses analisandos.
No segundo artigo, “O continente verde”, Teresa focaliza a constituição da feminilidade, “concebendo-a como um continente verde e vivo, como uma floresta a ser desvirginada” (p. 35). Segue o percurso da vida psíquica de uma mulher, nos momentos estruturantes da feminilidade, que aparecem e se constituem na relação com a mãe, com o apoio do pai. Assinala os fatores sempre presentes na forma particular de cada mulher florescer, tanto sexuais (biológicos, inatos) quanto genéricos (comportamentos e caracteres incentivados socialmente, pela família ou pela cultura, de acordo com o sexo da criança). Se a interioridade feminina, como sustenta a autora, “é mais revelada como uma poesia simbolista do que como um mito, tal como propunha Freud, cabe à sensibilidade poética do analista captar as imagens advindas no dia a dia das sessões como fatos selecionados (Bion), prenhes de significação” (p. 45).
No artigo seguinte, “O pai e a constituição da masculinidade”, Teresa trata da evolução da masculinidade, desde o nascimento até a adolescência. Através de casos clínicos, mostra momentos-chave, como a primeira infância e a puberdade, nos quais o pai (interno e externo) é a figura central na elaboração das tarefas inerentes a cada uma dessas cesuras (Bion). Esses são momentos de intensa elaboração psíquica, em que a análise e a presença do analista podem ser de grande valor.
Daí a importância de uma bissexualidade psíquica do analista bem estruturada, de um casal interno saudável, pelo qual o analisando possa se sentir razoavelmente cuidado para prosseguir nesse processo que é a vida ... com passos regressivos ou progressivos, em direção ao crescimento psíquico. (p. 62)
No quarto artigo, “Dois em um”, a autora retoma os conceitos de bissexualidade psíquica primária e secundária apresentando o caso de Laura, uma paciente intersexual. Refere-se à importância do acolhimento da bissexualidade física ou intersexualidade do bebê pelos pais, a partir da constituição da bis-sexualidade psíquica deles mesmos. Assinala a existência de uma falha básica como um fator determinante nas neossexualidades. A análise abre o caminho para dar sentido a experiências primárias iniciais, nomeando angústias e desejos talvez nunca antes nomeados.
No quinto artigo, “A cultura e a estruturação psíquica do menino e da menina em São Paulo”, Teresa traça brevemente o percurso da cultura da paulistânia por 450 anos, desde a fundação da cidade de São Paulo até hoje. Centra-se nos aspectos culturais das diferentes camadas da sociedade, e destaca o peso e a influência das fantasias transgeracionais na estruturação psíquica e na evolução da psicossexualidade das crianças paulistas.
A segunda parte se inicia com o artigo “Eros e Psiquê: um mito sobre o desenvolvimento da feminilidade”. O leitor acompanha “o longo périplo de Psiquê desde o abandono dos pais, passando dos doces abraços de Eros, na escuridão da noite, para os trabalhos terrenos, à luz do dia, finalizando com um solitário retorno à escuridão, no mundo dos mortos”. A autora compara esse trajeto com o processo da análise, com seus trabalhos e percalços, ódios e amores. “Mas, se nesse processo de alargamento da consciência do ser humano, o rumo ao Amor - luz que esclarece a vida - puder ser mantido, então, ao final, apesar de toda a errância, Psiquê terá imorredouras alegrias” (p. 124).
Em “O poder das identificações alienantes quanto ao gênero”, Teresa apresenta dois casos clínicos em que fantasias transgeracionais, relativas ao gênero feminino, regem a vida mental de duas mulheres e detêm o seu crescimento. Para a autora, se é possível contextualizar o indivíduo dentro de um grupo, desde o familiar até o mais amplo, tanto sincrônica quanto diacronicamente, a psicanálise pode enriquecer seu instrumental de escuta psíquica.
Em “O lugar da mulher em A casa de Bernarda Alba” a autora considera a obra de García Lorca com as lentes da psicanálise, abordando os campos da vida psíquica: o familiar, o social e o intrapsíquico. Neste, cultiva-se um ego ideal, padronizado. Na casa de Bernarda Alba, campo familiar, deve reinar a submissão a ela, e a desobediência pode levar à morte. Cultiva-se um ego ideal, paralisante, assim como no social, representado em escala maior pelo regime ditatorial de Franco.
Com base na peça de García Lorca, Teresa usa conjeturas imaginativas (Bion) para pensar os diferentes “lugares” do feminino, que podem levar a crescimento ou a estagnação. A partir de nossa relação com o casal parental, de nossa constituição psíquica, com mais amor ou com mais ódio, construímos em nossa mente um lugar criativo ou um lugar estéril, destruído por nossa intolerância às relações vivas e às novas produções que podem surgir delas.
No artigo seguinte, “Explorações da feminilidade e episódios homossexuais na adolescência: Katherine Mansfield”, a autora trata de textos da autora neozelandesa que relatam fugazes episódios homossexuais na adolescência, textos que dão voz, de maneira magistral, às angústias sofridas nessa época pela constatação da bissexualidade inerente ao ser humano, e que poderiam ser elaboradas se houvesse um analista como interlocutor.
Depois, em “Sonhos de luto na menopausa”, Teresa apresenta os sonhos de uma paciente no início da menopausa, os quais retratam todo o processo de elaboração e diálogo psicanalítico vivido por ela. Esses dois últimos artigos abordam as vicissitudes e os conflitos da feminilidade ao longo de períodos importantes da vida.
A terceira parte do livro é dedicada a mulheres pioneiras da psicanálise. A primeira é Joan Riviere, membro da Sociedade Britânica de Psicanálise, analista, supervisora, tradutora e escritora, que com suas ideias e observações fez contribuições originais à psicanálise. Além de ser uma excelente tradutora de Freud, tinha uma habilidade excepcional para expressar as ideias de Klein e contribuiu para o conhecimento psicanalítico durante mais de 40 anos de vida profissional.
No artigo “Modernismo, mulher e psicanálise”, depois de uma breve introdução em que mostra como o Modernismo e a psicanálise se entrelaçam e crescem na cidade de São Paulo, Teresa homenageia quatro mulheres pioneiras da psicanálise em São Paulo: Adelheid Koch, Virgínia Bicudo, Lygia Amaral e Judith Andreucci. Essas mulheres corajosamente foram atrás de espaço de trabalho e desenvolvimento do conhecimento, e encontraram esse lugar profissional e científico na psicanálise, espaço de realização e de respeito como ser humano.
Na quarta parte, com o artigo “Transferência erógena: a busca de um objeto de amor”, por meio de exemplos clínicos, a autora aborda o tema em questão fazendo uma distinção entre transferência erotizada, erótica, amorosa e afeiçoada (Bolognini). Sustenta que todas as modalidades de erotismo podem comparecer em todas as análises, e que o analista deve ter a capacidade de observar, ouvir e compreender a forma como surgem na sessão.
A capacidade de se colocar no lugar do analisando de outro sexo, com empatia, dependeria de uma bissexualidade bem integrada (Karme), que seria um pré-requisito para um bom trabalho analítico. ... Essas identificações resultariam da internalização de relações adequadas com pessoas de sexos diferentes, com respeito e alegria compartilhada. (p. 256)
O livro se encerra com o artigo “Gênero e processo analítico”, em que a autora apresenta o interessante trabalho de um grupo de pesquisa do qual ela faz parte, incentivado e orientado por Florence Guignard, sobre a diferença da escuta analítica a partir do gênero do analista e do analisando.
Para finalizar, gostaria de agradecer a oportunidade de fazer a resenha deste livro e acompanhar o pensamento da autora e seu trabalho clínico. Ao longo dos diferentes textos que compõem a obra, podemos observar a analista trabalhando. Ela realiza a delicada tarefa da análise de uma forma original e sensível, que deixa transparecer sua fina escuta analítica, firme, viva, atenta aos movimentos emocionais do paciente. Teresa é também uma escritora próxima do leitor, a quem convida a refletir sobre temas que aludem à essência do ser humano, com um estilo atraente, íntimo e poético de registrar e transmitir sua experiência e suas ideias, suas teorias e sua técnica.
Recomendo vivamente a leitura deste livro para todos os interessados no tema da constituição da psicossexualidade, da feminilidade, da masculinidade e do gênero a partir do ponto de vista da psicanálise.
Correspondência:
Ana Maria Rosa Rocca Rivarola
Rua Engenheiro Alexandre de Almeida Cavaleri, 33
13101-518 São Paulo, SP
Tel.: 19 3251-4416
anarivarola@hotmail.com