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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.2 São Paulo Apr./June 2021

 

TEMÁTICOS

 

A captura no circuito da dor: um desafio clínico

 

Capture in the pain circuit: a clinical challenge

 

Captura en el circuito del dolor: un desafío clínico

 

Capture dans le circuit de la douleur : un défi clinique

 

 

Berta Hoffmann Azevedo

Psicanalista. Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Atual editora do Jornal de Psicanálise. Docente nos cursos Introdução à Escuta Psicanalítica (DAC-SBPSP) e André Green e a Psicanálise Contemporânea (DAC-SBPSP). Autora do livro Crise pseudoepiléptica (Casa do Psicólogo, 2011). São Paulo / bertaazevedo@hotmail.com

 

 


RESUMO

O artigo apresenta a captura no circuito da dor como um modelo para a escuta e o manejo de situações clínicas em que o enquadre analítico esbarra na tendência imperiosa à redução de tensão própria da fuga da dor, num esforço de inativar o traumático. A busca de fundamentos metapsicológicos resgata o conceito de dor e de masoquismo erógeno primário, a fim de interrogar as condições analíticas para favorecer uma mínima ligação capaz de propiciar a suportabilidade da inevitável tensão da existência psíquica.

Palavras-chave: dor, masoquismo erógeno, limite


ABSTRACT

The article presents the capture in the pain circuit as a model for listening and handling clinical situations in which the analytical setting comes up against the imperative tendency to reduce tension inherent in the escape of pain, in an effort to inactivate the traumatic one. The search for metapsychological foundations rescues the concept of pain and primary erogenous masochism, to interrogate the analytical conditions to favor a minimal connection capable of supporting the inevitable tension of the psychic existence.

Keywords: pain, erogenous masochism, limit


RESUMEN

El artículo presenta la captura en el circuito del dolor como modelo metasicológico de escucha y manejo de situaciones clínicas en las que el marco analítico choca con la tendencia imperativa para reducir la tensión inherente al escape del dolor, en un esfuerzo por inactivar lo traumático. La búsqueda de fundamentos metasicológicos rescata el concepto de dolor y masoquismo erógeno primario, para cuestionar las condiciones analíticas y así favorecer una relación mínima capaz de favorecer la soportabilidad de la inevitable tensión de la existencia psíquica.

Palabras clave: dolor, masoquismo erógeno, límite


RÉSUMÉ

L'article présente la capture dans le circuit de la douleur en tant qu'un modèle d'écoute et de gestion de situations cliniques dans lesquelles le cadre analytique se heurte à la tendance impérative à réduire la tension propre à la fuite de la douleur, dans un effort pour inactiver le traumatisant. La recherche de fondements de métapsychologie récupère le concept de douleur et de masochisme érogène primaire, afin d'interroger les conditions analytiques de manière à favoriser une liaison minimale susceptible de favoriser la capacité de supporter l'inévitable tension de l'existence psychique.

Mots-clés: douleur, masochisme érogène, limite


 

 

Luna chega ao consultório dizendo que devia ter tomado seu "sossega-leão" para angústia, mas se assim o fizesse não conseguiria vir à sessão. Na verdade ainda devia tomá-lo. "Espera!", diz ela segurando-se à cadeira, quase sem respirar. Ficamos as duas em suspensão, aguardando que sua respiração volte ao normal. "Acho que passou... Não, espera!" Novamente a vejo contrair-se e sua respiração acelerar. Seu olhar apreensivo busca nos cantos da sala algum socorro. Acompanho esse vai e vem de sensações dolorosas que ocupam quase toda a sessão, e me vejo sentada com o tronco para a frente em sua direção, apoiada em meus joelhos, tentando captar algo do que ela pudesse estar vivendo. Ocorre-me a ideia de que devia ser como um trabalho de parto, só era preciso sobreviver mais um pouco às contrações que tendiam à expulsão. Retenho esse pensamento; ele me ajuda a estar com ela. "Eu preciso parar de pensar", ela diz. "O que você está pensando?", eu pergunto. "Não sei."

E ela não sabia. É a mesma jovem que me contava de brigas violentas com a mãe sem saber dizer o tema em torno do qual girava o conflito. Ou que em meio ao caos interno provocado por invasões externas acalmava-se usando a lâmina que fazia brotar do seu corpo o sangue e a dor.

"Nossa! O que foi isso? Deve ter sido angústia, pois ansiedade eu sei que não foi", me diz ela ao final da sessão.

"É? Como você sabe disso?"

"Ah, se fosse ansiedade eu nunca suportaria ter ficado todo esse tempo sentindo... Que fome! Nem me lembro quando foi a última vez que tive fome. Há tempos só como por compulsão."

No início da sessão seguinte ela me pergunta se conheço o meme da caveira. Mostra-me no celular uma caveira onde se lê: "Minha mãe esperando eu lhe dar um neto". Achou muito engraçado e apropriado para si mesma, já que sua mãe parece ainda não ter entendido que ela nunca namorará um menino nem engravidará. "Ui, eu nunca ia querer engravidar. Que agonia isso de ter alguém dentro de você!"

Digo a ela que, a propósito do que falava, iria contar um pensamento louco que tive naquela sessão da angústia.

Ela dá uma gargalhada e diz que sou mesmo muito louca, mas que poderia me indicar uma psicanalista ótima que conhecia. O sobrenome era Azevedo.

"Bom, como você sabe, não vou engravidar nunca, a menos que sofra um abuso. [Bate três vezes na madeira.] E nesse caso faria um aborto."

Perpassa a análise com essa paciente uma problemática clínica que implica um desafio de trabalhar em torno do que não pode ser tocado, do que insiste em não alcançar palavras e resiste às aproximações das conflitivas mais diretamente. Um refúgio que se faz cárcere, e diante do qual a analista se vê muitas vezes sem licença ou espaço de ação.

Pierre Fédida (1981/1988) propunha que o pensar metapsicológico é o que permite que o fazer analítico não resvale para o misticismo ou para o empirismo. Em situações clínicas como as vividas com Luna, nas quais as vias de acesso por vezes passam por um trabalho psíquico do analista, essa busca de sustentação recobra ainda maior valor.

Em outra ocasião (Azevedo, 2017) me propus a pesquisar mais amplamente o mal-estar diante dessas dificuldades do trabalho representativo no interior do enquadre analítico e os meios de que dispomos para enfrentá-las, de maneira a fundamentar intervenções clínicas nas quais a implicação maior do analista ocupa um papel fundamental no relançar do movimento da análise.

No presente trabalho gostaria de circunscrever um aspecto lá nomeado, mas não suficientemente desenvolvido, inquietante com essa paciente, mas não só com ela, que proponho recortar como a captura no circuito da dor.

Ainda que houvesse momentos de encontro como o que acabo de descrever, essa análise era marcada por situações de inacessibilidade intensa, seja pelas faltas da paciente, seja por seu fechamento em sessão, quem sabe comparáveis às suas experiências infantis de excitação e descontinuidade. Antes que ela tivesse completado 3 anos de vida, os pais viveram uma separação conturbada, e ela passou longos períodos sem ver a mãe, rupturas essas intercaladas por aproximações repletas de brigas intensas. Numa dessas situações escutou com força de verdade a mãe enfurecida dizer: "Eu queria que você morresse" - desejo de morte cuja silhueta vê reaparecer em uma briga corporal na qual se sentiu fisicamente ameaçada. As ideias intrusivas de se jogar nos trilhos do metrô foram o motivo de recorrer ao que chamou de sossega-leão, que lhe interrompesse uma tendência impulsiva ao ato.

Não é sem dificuldade que chego a articular essa narrativa. Ela é tecida de retalhos vindos de maneira dispersa e fragmentária. Ainda que houvesse uma ligação forte com a figura da analista, com relação ao trabalho analítico em si era como se precisássemos trabalhar aparentando não estar trabalhando, numa certa ação clandestina, como se ela pouco aguentasse pensar ou dar espessura a seus conflitos psíquicos - no limite, como se ela não pudesse nem bem assumir que queria estar ali. Sua postura entrincheirada dava mostras de uma tal relação com o saber (de si) que ameaçava condenar sua vida psíquica ao exílio. Ainda eram necessárias as condições para a inclusão do prazer de ter vida psíquica.

Ela sabia dizer exatamente por que não dera continuidade a qualquer análise até aquele momento: "Não suporto analista que faz cara de analista, que faz 'Hum' e parece estar analisando tudo com sua prancheta". Não era tolerável olhar de frente para o que doía, atribuindo-lhe a seriedade que merecia, e uma atitude mais silenciosa parecia fazê-la sentir os analistas como distantes e críticos. Entendi que havia uma sabedoria na advertência que ela trazia, uma orientação a ser escutada e levada em consideração no manejo: tocar, atribuir espessura, juntar os retalhos envolveria a delicadeza de saber que isso implicaria dor. Refugiada em uma tentativa de inativar o traumático, temia a desmesura do que o acesso poderia ativar. A aproximação seria, portanto, indireta, abordando o aparentemente corriqueiro e aproveitando as aberturas de fronteiras para alcançar formas suficientemente dizíveis do desmedido.

 

Dor

A dor já era um tema de Freud desde os primórdios da psicanálise, e ainda que ele tenha voltado a abordá-la em diversos textos até o final de sua obra, enquanto conceito ela nem sempre contou com a atenção e a atribuição de relevância que merece, não tendo recebido um verbete próprio no Vocabulário da psicanálise, de Laplanche e Pontalis, nem no Dicionário de psicanálise, de Roudinesco e Plon, por exemplo.

Em seu "Projeto" (1950[1895]/2001e), Freud apresenta, ao lado da vivência de satisfação, a vivência dedor (Schmerzerlebnis), menos lembrada como experiência paradoxal a marcar o psiquismo, mas que pode ser resgatada para pensar os circuitos de fuga em que vemos capturados alguns pacientes.

Verificamos no "Projeto" a articulação entre a ação específica e a vivência de satisfação. Tal ação específica, destaca Freud, não pode ser realizada pelo próprio bebê, que precisa do auxílio vindo de fora do sistema para apaziguar suas urgências de vida, Not des Lebens, associadas ao que chamará Hilflosigkeit, o estado de desamparo próprio do humano.

O organismo humano é, a princípio, incapaz de levar a cabo a ação específica. Ela sobrevém mediante ajuda alheia (Nebenmensch): pela descarga sobre o caminho da alteração interior (por exemplo, pelo berro do bebê), um indivíduo experiente volta sua atenção para um estado infantil. (p. 362)

Um outro significativo, o Nebenmensch, convocado pelo grito da criança em estado de desamparo, vem ao seu encontro, e desse encontro registram-se marcas, as marcas da vivência de satisfação.

Com esses traços de memória registrados, deriva dessa vivência uma facilitação, que uma vez estabelecida favorece certo trilhamento em ocasiões futuras. Ao voltar a receber quantidades ligadas ao estado de urgência, haverá, a partir das marcas deixadas pela vivência de satisfação, a ativação da imagem motora ligada à percepção, reconstruindo a presença do objeto com base numa alucinação.

Estamos em face do estabelecimento do funcionamento do aparelho psíquico em torno dessa experiência original, um funcionamento que, diante do que Freud chama desejo, buscará reencontrar o objeto em cada experiência.

Uma vez estabelecido esse circuito de articulação (pela Bahnung), podemos contar com um princípio de prazer a reger o psiquismo, com o reinvestimento de tais marcas e a busca por encontrar a satisfação alucinatória do desejo, num movimento que tende a um reencontro. O que não está previsto, no texto freudiano, é que essa organização orientada pelo princípio de prazer é apenas uma possibilidade não garantida. Seria preciso aguardar Além do princípio de prazer (Freud, 1920/2001c) para que a dor fosse pensada no contexto dos fenômenos que colocam em xeque o seu primado.

Ao lado dessa experiência de satisfação, Freud contempla aquele que diz ser o mais imperioso dos processos: a dor. Capaz de capturar o psiquismo e orientar seus desdobramentos, a dor deriva da irrupção de grandes quantidades no psiquismo, num fracasso dos dispositivos (telas) de proteção. Seu efeito é tal como o de ser atingido por um raio, diz Freud (1950[1895]/2001e), de maneira que uma facilitação é criada entre a inclinação à descarga e a imagem mnêmica do objeto que excita a dor, e se essa imagem em algum momento for reinvestida, despertará como a original a mesma tendência à fuga. Uma tal fuga parecia se reproduzir com Luna em sessão, com seu "Tá, tá", que indicava que mudássemos a direção. O sistema tem a mais decidida inclinação para fugir da dor e da imagem mnêmica hostil, nos orienta Freud. É o que me ensina Luna, em outras palavras e atos.

Se a dor provoca aversão a manter investida a imagem mnêmica do objeto hostil, o estado de desejo por sua vez desperta uma atração, implicando uma reexcitação das marcas. Representam, portanto, direções/tendências contrárias. Quando um determinado limite de dor é ultrapassado, diz Garcia- -Roza (1998), ela é desorganizadora da economia psíquica, suspende as diferenciações, sendo portanto desdiferenciadora, em oposição à diferenciadora vivência de satisfação.

Muito embora Freud se referisse em 1895 à dor física, quando volta ao tema em 1926 ele afirma que, com relação à dor psíquica, os processos são semelhantes, criam as mesmas condições econômicas e produzem o mesmo estado de desamparo psíquico.

Escrito no mesmo ano do "Projeto", o Manuscrito g (Freud, 2001b) traz as imagens de "hemorragia interna" e "furo no psíquico", que provocariam transbordamento. Aqui podemos encontrar um elo para considerar que, ainda que a dor psíquica não derive de uma lesão de órgão, é legítimo pensar em um rompimento operado no tecido psíquico, um furo, que não é falta, mas um buraco no psíquico.

Conceito articulado à prematuridade própria do humano, e sua consequente dependência de um Outro, o desamparo entra em cena na vivência de dor e sempre que sobrevém a urgência de se livrar da tensão ocasionada pelo excesso de excitação. É o que Freud retoma em Além do princípio de prazer, onde é capaz de extrair da dor e do trauma consequências impensáveis até então. A imperiosa tarefa de ligar as excitações se torna primária a qualquer busca de prazer, sendo a compulsão à repetição não orientada pelo prazer, mas pela atordoante tentativa de dominar o que inunda. O colapso econômico despertado pela inundação e os esforços para ligá-la dão provas do aspecto intrusivo e violento da experiência traumática. Dor e trauma, ainda que não sejam equivalentes, são abordados por Freud como invasões de maior ou menor extensão, cuja ruptura no para-excitação resulta numa comoção capaz de capturar o psiquismo nessa dominação.

Em Inibição, sintoma e angústia (1926/2001a), Freud volta a pensar o tema e, diferente do que vinha trabalhando em 1895 ou em 1920, introduz a dor ligada à perda do objeto, que equivale inicialmente à perda da percepção dele e se transmuta posteriormente na perda de seu amor.

O nexo entre a vivência de satisfação e a experiência junto ao outro significativo (Nebenmensch) é claro em Freud, mas no que diz respeito à dor essa associação à experiência primária de encontro/desencontro não estava, até então, explicitada.

Embora a vivência de dor não seja privilégio apenas de alguns, representando uma experiência de que ninguém pode ser poupado, fica a questão sobre as situações de captura nesse circuito, capazes de (des)orientar áreas inteiras do psiquismo em lógicas pouco esclarecidas pela economia do prazer - situações clínicas nas quais a fuga da dor pode servir como modelo de escuta e manejo. Em que medida o masoquismo teria lugar nas construções de possibilidade de suportar a dor e permitir um trabalho? As investigações empreendidas pelos autores da chamada psicanálise contemporânea1 relançam essas vivências para o centro da discussão e me oferecem fôlego para avançar na pesquisa.

 

O circuito pulsional do desligado

A compulsão à repetição é peça-chave para a mudança paradigmática de Além do princípio de prazer (Freud, 1920/2001c), que reconhece um modelo de funcionamento psíquico que não se vê esclarecido pelas concepções pulsionais até então formuladas. Os impasses clínicos ligados à reação terapêutica negativa e à melancolia levaram Freud a se reaproximar dos conceitos de trauma e dor e a movimentar sua teoria na direção de uma força além do princípio de prazer, que opera independentemente dele.

Freud nos lembra que o psiquismo não se organiza de antemão orientado por esse princípio; há condições prévias a essa configuração - a saber, a necessidade de ligação. Passam a ser reconhecidos e rastreados funcionamentos psíquicos que não respondem ao princípio de prazer, seja porque ele é momentaneamente posto fora de ação, seja porque não pôde se instituir como organizador do psiquismo. Há situações em que o "princípio de prazer fica paralisado, e o guardião da vida psíquica, por assim dizer, narcotizado" (Freud, 1924/2001d, p. 165).

O sonho na neurose traumática dá exemplos da repetição incansável sem transformação elaborativa, que não alcança cumprir o papel de realização de desejo até que a primeira tarefa de ligar possa ser realizada.

As moções pulsionais passam a ser pensadas, portanto, como tendo destinos possíveis, sendo a elaboração representativa apenas um deles. Os autores da psicanálise contemporânea se caracterizam por terem tido que se debruçar sobre outras saídas para o representante psíquico da pulsão, que pode manifestar-se em ato, pela via alucinatória ou também no corpo, não apenas como conversão histérica, mas também em formas mais próximas do que Freud propunha como neurose atual.

São movimentos que deram lugar à segunda tópica freudiana, sem que a primeira tenha por sua vez se tornado obsoleta. A escuta do que está no campo psíquico, do que diz respeito ao desejo e suas representações, segue válida. Nem todo sonho é traumático, e nem todo sintoma é pura descarga. Nossa clínica diária dá provas disso. Mas alguns o são. E a disposição para escutar aquilo que engancha na cicatriz do trauma e reativa a dor estende o alcance da psicanálise para situações clínicas limite, como a que encontro junto a Luna.

Estamos num campo de excesso de intensidades que inunda o psíquico e põe de lado o princípio de prazer. Freud (1950[1895]/2001e) adiantava que as vivências de dor e desamparo podem atrair o psiquismo sem, à diferença da fixação de prazer, permitir substituições e deslocamentos. É de urgência que se trata, e de áreas aparentemente inabordáveis, nas quais nos vemos sem a pálida ideia da justa palavra a enunciar quando a inclinação do paciente é desertar.

Green e Pontalis oferecem contribuições fundamentais para essas situações-limite, que metapsicologicamente remetem ao que estou nomeando como circuito da dor. Esses autores nos ajudam a descobrir que, em algumas situações, o modelo da vivência de satisfação como organizador das repetições de prazer é substituído pelo da dor e se traduz em fenômenos clínicos pouco simbolizados, que exigem trabalho psíquico do próprio analista para que o movimento representativo em sessão possa ser retomado.

Pontalis escreve Entre o sonho e a dor (1977/2005) sensibilizando seu leitor para esse gradiente de vivências que precisaríamos estar aptos a escutar. Se num polo está o sonho, "onde os anseios contraditórios da infância podem se realizar e ao mesmo tempo se oferecer à decifração", noutro está a dor, "que embaralha as fronteiras do corpo e da psique, do consciente e do inconsciente, do eu e do outro, do fora e do dentro" (p. 22).

O montante de intensidade que escapa à simbolização terá efeitos clínicos que precisarão ser manejados. Os vividos traumáticos, como sabemos, emergem na sessão, e há um valor de testemunho que a análise pode alcançar, ao afirmar o que se passou nos termos que forem possíveis de apresentar. Esses momentos resistem ao efeito de desmentido, e podem levar à retomada de um movimento simbolizante.

Com Luna, precisávamos historicizar o sumiço das faltas, os momentos de sossega-leão em suas diversas modalidades e as ocasiões de se cortar, bem como criar vias colaterais para metabolizar o excesso e ligar a dor a sentidos possíveis, na medida em que as condições de alguma contenção iam permitindo certo tempo para pensar o excesso de atual.

André Green (1975/1988a, 1977/1988b), ao estudar o vazio e os brancos de pensamento, percebe estar em jogo não só a existência do irrepresentado e do irrepresentável, mas também o desinvestimento do processo representativo como consequência possível do traumatismo primário. São áreas que funcionam como disco riscado; áreas destruídas do psíquico sem marcas mnêmicas disponíveis, cujas cicatrizes tendem a irromper nas sessões de maneira desavisada, na forma de acontecimentos atuais; áreas em que é preciso criar temporalidade psíquica ali onde entrevemos tempo morto; áreas em que se encontra um rasgo na malha representativa, um furo, o qual, se reinvestido, causa dor. Seria preciso paciência para criar costuras periféricas.

O que há de original nessa contribuição é pensar o trabalho do negativo contra o próprio processo de representação, proposta que tem implicações relevantes para o manejo clínico. Quando Green (1977/1988b) diz que o discurso do paciente-limite é como um colar de pérolas sem fio, seria preciso considerar que a falta de fio está determinada não apenas pela falta do nexo que pudesse ser oferecido pelo analista, mas também por uma defesa ativa do psiquismo, a fim de proteger as ilhas temáticas do efeito traumático de se tocarem.

Mas por que seria preciso lançar mão do mecanismo de desinvestimento direcionado à própria atividade representativa?

Green propõe que o encontro com o objeto primário pode fazer falhar o que Freud tem como aposta de base no "Projeto". Estamos diante do fracasso da vivência de satisfação. Em vez de marcas deixadas de satisfação, as vivências de desamparo deixam rasgos no tecido psíquico. O reinvestimento dessas marcas será, assim, evitado, o que implica falha no processo representativo, mutilando o eu e o pensamento. São as representações-coisa de objeto, aquelas construídas pela vivência junto ao objeto primário, que precisarão ser, portanto, desinvestidas. Trata-se da destrutividade atuando prioritariamente sobre o próprio funcionamento psíquico do sujeito.

Fracassa, então, nesses casos, a realização alucinatória de desejo como modelo de base do psiquismo. Não vemos incidir a lógica da esperança, própria do desejo (reencontro), mas a lógica da desesperança, que leva ao assassinato das marcas do objeto, trabalho do negativo contra a representação.

Era assim com Luna. Era preciso construir outro modo de aproximação, que promovesse possibilidades; formas de presença menos persecutórias, que respeitassem seu nível de dor e que consentissem certa dose de ruptura e destruição da analista. Penso que essa análise encontrou condições de existência numa época ainda adolescente de Luna, quando, para explicar algo a que me referia, me sentei no chão com um papel e desenhei. Com um sorriso simpático, ela afirmou: "Não acredito que encontrei uma analista mais louca do que eu". É verdade que precisaríamos ter disponibilidade de trânsito com a loucura, e é possível que ela tenha intuído nesse momento alguma potencialidade de transformação do delírio em jogo, da morte em ausência (Green, 1975/1988c).

Com ela, fui tentando criar ao longo dos anos uma maneira intermediária de presença que possibilitasse algum acesso sem invasão, evitando despertar o modo de contrainvestimento radical que lhe era comum. Se o fio que faltava em seu colar de pérolas estava subtraído por um movimento de defesa, me restava a questão de como trabalhar com um material que quase não se podia tocar.

Rapidamente percebi que silêncios longos não iriam funcionar, e que uma posição implicada era a aposta mais promissora. Não seria possível uma atitude de maior reserva, que para ela era insuportável e despertava uma evitação antecipatória, como numa angústia sinal que lhe informasse se aproximar do desamparo. Falávamos através das coisas que ela retirava despretensiosamente da bolsa ou que encontrava no celular. Rabiscos (Winnicott, 1964-1968/1994) meus eram muitas vezes disparadores de movimento - por exemplo, o caso do trabalho de parto que ofereço como imagem. Vale ressaltar que não entendo esse fragmento como uma comunicação direta entre inconscientes, mas como uma tentativa, por parte da analista, de dar figurabilidade ao que se passava com a paciente, um trabalho pré-consciente da analista buscando ligações, figurabilidade essa que na sessão me ajudou a "sobreviver" ao que se passava, seguindo eu mesma a investir representações, e que poderia ter sua função ainda que eu não escolhesse oferecê-la à paciente.

A oferta de um tal devaneio da analista com potencial de sentido, mas com margem para ser descartado, despertava em Luna certo prazer curioso, que a aproximava da analista e, quem sabe, também da análise, na medida em que a inspirava a investir coisas bobas. Era em todo caso a aposta da analista, na tentativa de inspirar a objetalização do próprio investimento. Ainda assim, o passo na direção de considerar o devaneio compartilhável foi definido pelos caminhos tomados na sessão seguinte. A imagem do trabalho de parto oferecia não apenas a ideia de algo intenso que teria fim, mas que é provocado pela força que tende à expulsão. Aquilo que no funcionamento pré-consciente da analista se constrói numa associação com o nascimento é completado pela paciente numa imagem talvez mais adequada como metáfora: o aborto. O que é difícil de ser abortado, num trabalho de luto que não se completa, corre o risco de se precipitar num aborto de si, na direção dos trilhos do metrô.

O movimento de "nadificação" ao qual a paciente se entrega me pareceu possível de ser acompanhado imaginando uma lógica em que pode ser preferível desinvestir os objetos até suas raízes no eu (Green, 1975/1988a, 1966-1967/1988d, 1986/1988e):2 simplesmente parar de sentir, ainda que a redução de tensão a esse nível implique uma deserção subjetiva perigosa. Esse urgente trabalho de luto, em curso na análise, ia sendo possível com a delicada instauração de um certo jogo que a inspirasse a investir, ligar.

 

A mínima ligação

Em 1924, Freud renova sua concepção de masoquismo e completa suas formulações de 1920 ao introduzir a ideia de que a primeira ligação vem unir a sexualidade à dor, dando origem ao que chamou masoquismo erógeno. É a ligação da pulsão de morte pela libido, numa intrincação pulsional capaz de conter a destrutividade. O masoquismo, até então considerado pelo prisma da perversão, ganha nesse momento um aspecto originário e passa a cumprir um papel central para a instauração de um princípio de prazer. Diz Freud:

O princípio de nirvana, súdito da pulsão de morte, sofreu no ser humano uma modificação que o transformou em princípio de prazer, e evitaremos, de agora em diante, tomar os dois princípios como um único. ... Não é difícil imaginar a força de onde partiu tal modificação. Só pode ser da pulsão de vida, a libido, que assim, lado a lado com a pulsão de morte, apoderou-se de uma cota na regulação dos processos da vida. (1924/2001d, p. 166)

Segue ele no mesmo texto:

No ser vivo (pluricelular) a libido se enfrenta com a pulsão de destruição ou de morte que impera dentro dele. ... A tarefa da libido é tornar inofensiva essa pulsão destruidora, o que realiza desviando-a em boa parte - e logo com a ajuda de um sistema orgânico particular, a musculatura - para fora, dirigindo-a contra os objetos do mundo exterior. ... Outro setor não obedece a esse translado para o exterior, permanece no interior do organismo e ali é ligado libidinalmente com a ajuda da coexcitação sexual de que falamos; é nele que devemos reconhecer o masoquismo original, erógeno. (p. 169)

Uma tal libidinização, que interrompe a tendência imperiosa à redução de tensão, não se realiza originalmente senão pela intervenção de um outro. Teria o analista uma brecha de trabalho nesse campo? O trabalho de ligação da destrutividade (a atuar contra o próprio funcionamento psíquico) poderia operar no masoquismo uma objetalização mínima?

Benno Rosenberg vem sublinhar, nomeando como masoquismo guardião da vida, o meio por excelência "de impedir a 'satisfação' da pulsão de morte, de impedir nossa destruição" (1991/2003, p. 93). Esse núcleo masoquista primário, cuja ligação operada admite a erotização de uma excitação, é o que permite a suportabilidade da dor e do desprazer, e em última instância é o que torna tolerável a inevitável tensão da existência psíquica.

A ligação da destrutividade convoca do analista um trabalho de Eros. Fantasiar um modelo de captura num circuito de dor me ajudava a estar com Luna nos momentos de evasão, oferecer companhia e uma superfície de ancoragem, e alguma capacidade de investimento que a seduzisse a suportar ter vida psíquica, instaurando, quem sabe, certa curiosidade prazerosa nesse processo. Seria esse um trabalho de masoquismo erógeno?

 

Referências

Azevedo, B. H. (2017). Mal-estar e criatividade na clínica contemporânea. Jornal de Psicanálise, 50(93),175-190.         [ Links ]

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Recebido em 11/1/2021
Aceito em 1/3/2021

 

 

1 Essa expressão é utilizada aqui nos termos conceituais que propõe André Green, não se referindo a um adjetivo sinônimo de atual.
2 Desde seus primeiros escritos e ao longo de sua obra, Green rastreia as ligações entre pulsão de morte e narcisismo, e conceitua o que chamou narcisismo negativo.

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