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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.25 Canoas June 2007

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Uma breve análise da constituição do sujeito pela ótica das teorias de Sartre e Vygotski

 

An abbreviation analysis of the constitution of subject based on the theories of Sartre and Vygotski

 

 

Maria Fernanda Diogo*; Kátia Maheirie**

Universidade Federal de Santa Catarina. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é refletir em torno da constituição do sujeito pela ótica das teorias de Sartre e Vygotski. Considerando que a mediação social nos forma e constitui ao mesmo tempo em que nós constituímos ativamente nosso contexto, os sujeitos devem ser apreendidos em função da relação entre objetividade e subjetividade. Para compreender como uma pessoa chega a ser quem ela é, necessitamos contemplar as condições sociais, culturais, históricas e econômicas que participam da sua constituição. Na contemporaneidade, vivemos o surgimento de um novo paradigma que se ergue sob a égide da fragmentação, da indeterminação, do sincretismo, da indiferença e da intensa desconfiança nos discursos universais. Tudo é urgente, imediato, instantâneo, efêmero. Buscamos aqui refletir como estas novas nuances alteram os modos de ser e de agir na contemporaneidade, descentralizando os sujeitos e forjando identidades baseadas nesta emergente dominante cultural.

Palavras-chave: Constituição do sujeito, Mediação social, Contemporaneidade.


ABSTRACT

The objective of this paper is to contemplate the constitution of subject based on the theories of Sartre and Vygotski. Considering that the social mediation form and constitute the subjects at the same time in that these constitute actively their social contexts, the subjects should be apprehended in function of the relationship between objectivity and subjectivity. To understand the constitution of subjects needed to contemplate the social, cultural, historical and economical conditions that participate in their constitution. In the modern-day, we lived the emergence of a new paradigm that rises under the aegis of the fragmentation, indetermination, indifference and intense suspect in the universal speeches. Everything is urgent, immediate, instantaneous and ephemeral. This paper contemplate as these new nuances change the manners of being and of acting in the modern-day, decentralizing the subjects and forging identities based on this emerging cultural dominant.

Keywords: Constitution of subject, Social mediation, Modern-day.


 

 

Introdução

 

Vivemos em um estranho círculo
cujo centro está em toda a parte
e a circunferência em parte alguma (Pascal)

A partir de uma perspectiva histórico-dialética, todo sujeito se constitui como ser social, histórico, produto e produtor do contexto no qual está inserido. Este enfoque é, portanto, relacional, ou seja, considera que o sujeito se constitui na relação com as pessoas, com a natureza, com as condições de partida, numa dimensão que envolve passado, presente e futuro (Maheirie, 1994; Sartre, 1960/1987).

Sob esta ótica, os sujeitos são tomados como tendo seu desenvolvimento real sustentado por determinadas condições materiais, que se constroem na tessitura das relações estabelecidas. Para embasar a visão de sujeito que propomos neste artigo, aparamo-nos nos trabalhos de Vygotski e Sartre1.

A psicologia histórico-cultural proposta por Vygotski e seus colaboradores tem como tema central a constituição do psiquismo humano. O autor considera que ao nascer a criança se encontra imersa num universo sócio-cultural, num mundo significativo, cognoscível e comunicável. A descoberta e a apropriação deste universo definem o conteúdo do processo de constituição do ser humano da criança (Pino, 1993).

Nesta forma de ver o sujeito, tornamo-nos alguém na medida em que nos relacionamos com as coisas, com a natureza, com as pessoas, enfim, com a sociedade na qual vivemos (Maheirie, 1994). Nada é considerado inato ou inerente ao sujeito, não há necessidade humana posta fora ou além da sua própria produção: tudo que é humano é produto da ação humana.

Isso significa que nascemos ninguém e vamos nos tornando alguém na medida em que vivenciamos as relações com as coisas, com os homens, com o tempo e com o corpo. Nos essencializamos, ou seja, constituímos nossa identidade a partir daí, e, enquanto produto das relações, esta identidade, este EU, é uma síntese inacabada, uma totalização destotalizada e retotalizada para se destotalizar novamente: a identidade é histórico/dialética. (Maheirie, 1994, p. 115)

A psique é a expressão subjetiva dos processos cerebrais sendo, portanto, uma unificação do social e da natureza. Mas é bom lembrar que natureza e social não são dados: ambos resultam de um processo histórico, que os origina e transforma &– processo este em movimento constante. Há um mundo material que antecede a existência humana, porém, uma vez transformado pela ação humana, este deixa de ser natureza para se transformar em natureza significada e, portanto, cognoscível (Zanella, 2004).

Contudo, cabe ressaltar que o sujeito não é simples produto da história, a qual tampouco se faz relativa somente ao passado. Neste ponto, ancoram-se as contribuições sartreanas ao nosso artigo. Para Sartre (1960/1987), o sujeito se caracteriza pela superação de uma situação, realizando suas escolhas em relação ao campo dos possíveis: mesmo que ele próprio não se reconheça nestas escolhas, mesmo que estas sejam mais ou menos alienadas, ele está fazendo história, dado que esta é obra coletiva da ação de todos os homens. O método sugerido pelo autor busca compreender as ações dos sujeitos em relação às suas condições objetivas. Este movimento, que é progressivo-regressivo, vai da singularidade à universalidade, retornando à singularidade, numa perspectiva histórica, contemplando passado, presente e futuro (Maheirie, 1994) e buscando encontrar “... o movimento de enriquecimento totalizador que engendra cada momento a partir do momento anterior” (Sartre, 1960/1987, p. 175).

Numa sociedade em constante transformação, tal como vivemos na contemporaneidade, os sujeitos têm suas subjetividades forjadas pelas nuances culturais emergentes, que alteram os modos de ser e de agir em seus contextos específicos. Jameson (1997) aponta que as últimas décadas têm sido marcadas por rupturas no campo das ideologias, das artes, das ciências, da política e das estruturas sociais, configurando o que se convencionou chamar de pós-modernidade. O autor alerta que esta não é uma questão puramente cultural ou de estilo, mas os teóricos que estudam o assunto alardeiam um novo tipo de sociedade, a sociedade industrial ou de consumo, das mídias, da informação, eletrônica ou high tech.

Os principais traços associados à pós-modernidade são: (1) é um movimento que repudia as ambições de universalizar os discursos e de enfatizar a totalidade e a unicidade, enfatizando o conhecimento local, o sincretismo e a diferença; (2) é o colapso da distinção entre alta cultura e cultura popular, dos julgamentos canônicos de gosto e valor; (3) é uma tendência à estetização da vida cotidiana, diluindo as fronteiras entre arte e vida, entre aparência e realidade; e (4) é uma descentralização do sujeito, que passa a encontrar-se disperso em fragmentos, num jogo de superficialidades (Featherstone, 1997).

Há um claro impacto deste novo paradigma sobre os indivíduos em seus cotidianos: a fragmentação, a indeterminação, o consumismo exacerbado, a velocidade cada vez maior das mudanças provocam alterações substanciais nas subjetividades forjadas neste século. Todos os aspectos da vida de um indivíduo são afetados quando se vive cada momento sem a perspectiva de longo prazo ou sem realizar projetos de vida, quando suas verdades e crenças são abaladas ou negadas, quando o bombardeio de informações é pulsante e incessante, quando ele é incitado ao consumismo desenfreado.

Vivemos num mundo globalizado2 e ambivalente. Featherstone (1997) descreve que o termo globalização sugere duas imagens culturais simultâneas. A primeira pressupõe a extensão de uma determinada cultura por todo o globo, assim as culturas heterogêneas tornam-se incorporadas e integradas à cultura dominante. Contudo, contrapondo-se a esta homogeneização, uma segunda imagem aponta para a manutenção das culturas locais: as culturas se acumulam umas sobre as outras, se empilham, sem princípios óbvios de organização. São duas formas coexistentes e antagônicas de pensar a cultura: enquanto a primeira imagem sugere um processo de conquista e unificação, a segunda contesta a transformação mundial em um espaço singular e domesticado, fazendo um brinde à pluralidade e ao multiculturalismo.

 

O processo de constituição de um sujeito

A atividade mediada (Vygotski, 1930/1994) é um instrumento fundamental para a compreensão do modo como um sujeito se constitui, pois é através das mediações que vivencia que uma pessoa transforma seu contexto social e se apropria de sua(s) significação(ões). O ser humano só o é em relação, sendo que sua entrada no universo da comunicação humana, no universo semiótico ou da significação, é sempre mediada pelo outro. Este processo pode ser compreendido a partir da dialética entre objetividade e subjetividade. “Ou seja, a realidade objetiva vivida pelo indivíduo se torna subjetiva, a qual por sua vez se objetivará por meio de suas ações” (Lane, 1995, p. 55).

A dinâmica entre objetivação e subjetivação é o processo que caracteriza o gênero humano e cada sujeito particular. Uma criança vai se constituindo como sujeito na medida em que se relaciona com as pessoas, com as coisas, com seu corpo e com seu tempo. Apropriando-se de sua cultura, objetiva-se nela. Esta dinâmica origina-se na necessidade do ser humano em criar meios para sobreviver, transformando a si próprio através da atividade.

O sujeito nasce inserido numa cotidianidade. “O amadurecimento do homem significa, em qualquer sociedade, que o indivíduo adquire todas as habilidades imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada social) em questão” (Heller, 1970/1992, p. 18, grifos da autora). Nestas objetivações, o sujeito vai subjetivando a realidade objetiva cotidianamente encontrada.

A história é construída a partir das objetivações resultantes das atividades das gerações passadas, que vão sendo subjetivadas pelas novas gerações. Esta é a base do desenvolvimento histórico descrito por Marx e Engels (1845/46/1981, p. 44):

A história não é mais do que a sucessão das diferentes gerações, cada uma delas explorando os materiais, os capitais e as forças produtivas que lhe foram transmitidas pelas gerações precedentes; por este motivo, cada geração continua, por um lado, o modo de atividade que lhe foi transmitido, mas em circunstâncias radicalmente transformadas e, por outro, modifica as antigas circunstâncias, dedicando-se a uma atividade radicalmente diferente.

Sobre esta afirmação, Sartre complexifica o pensamento marxiano, descrevendo que o sujeito é, ao mesmo tempo, produto de seu próprio produto e um agente histórico que não pode ser confundido com um produto. Assim o autor explica este paradoxo:

... os homens fazem a sua história sobre a base de condições reais anteriores (entre as quais devem-se contar os caracteres adquiridos, as deformações impostas pelo modo de trabalho e de vida, a alienação etc), mas são eles que a fazem e não as condições anteriores: caso contrário eles seriam os simples veículos de forças inumanas que regeriam, através deles, o mundo social. Certamente, estas condições existem e são elas, apenas elas, que podem fornecer uma direção e uma realidade material às mudanças que se preparam; mas o movimento da práxis humana supera-as conservando-as. (Sartre, 1960/1987, p. 150)

A práxis humana, por sua vez, é mediada socialmente. Faz-se importante estudar os meandros desta mediação para compreender os processos históricos que vão constituindo um sujeito. Vygotski (1930/1994, 1934/1991) e seus colaboradores privilegiaram o estudo dos signos, principalmente dos signos lingüísticos, para a compreensão deste processo. Os signos dão à criança a possibilidade de acesso às significações coletivas &– aqueles sentidos que se constituem e são compartilhados socialmente &– e aos sentidos pessoais &– aqueles que se singularizam e são vivenciados por um determinado sujeito (Vygotski, 1934/1992). A distinção entre significado e sentido expõe a existência de um duplo referencial semântico intrínseco aos processos de significação: um formado pelos sistemas construídos socialmente, relativamente fixo, e outro formado pela experiência pessoal e social de cada indivíduo, mais dinâmico e mutável (Pino, 1993).

O estabelecimento de significados e sentidos é um processo social. Ao nascer, toda criança já encontra um universo sócio-cultural constituído e pleno de significados. A transmissão destas significações guia seu desenvolvimento, mas não de maneira determinista, pois sua internalização implica, da parte da criança, sua re-elaboração em função dos seus próprios referenciais semânticos (Pino, 1993). Ela apreende o mundo à sua volta e, neste processo, vai se individualizando. Nesta perspectiva, a criança é encarada como produção social, mas participando na condição de sujeito: o que outro faz não determina unidirecionalmente sua constituição.

Cabe salientar que quando descrevemos o caráter ativo de um sujeito nos processos de subjetivação/objetivação não nos referimos somente à dimensão cognitiva. “Conhecimento, ação e afetividade são elementos de um mesmo processo, o de orientar a relação do homem com o mundo e com o outro” (Sawaia, 1995, p. 164). O estabelecimento de sentidos e significados também está permeado por sentimentos e emoções, manifestações estas pautadas na vida cotidiana que envolvem as relações humanas consideradas espontâneas, como formas afetivas de relação entre subjetividade e objetividade (Maheirie, 2002).

O processo de constituição de um sujeito é mediado pelos signos existentes na sociedade, signos estes que são transmitidos, principalmente, através da linguagem. Vygotski (1930/1994, 1934/1991) estudou com grande interesse a aquisição da linguagem pela criança, que o levou a tratar a questão semiótica a partir do signo lingüístico. Para o autor, o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual da criança acontece quando a fala e a atividade prática, antes linhas independentes no desenvolvimento, convergem. A capacitação especificamente humana para a linguagem possibilita às crianças a providenciarem instrumentos auxiliares e planejarem a solução de um problema, superando ações meramente impulsivas.

Signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funções cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais. (Vygotski, 1930/1994, p.38)

O sujeito se constitui nas relações que estabelece em sociedade, relações estas mediadas principalmente pela linguagem. Para investigar o modo como uma pessoa chega a ser quem ela é, precisamos considerar as múltiplas dimensões que participam da sua constituição. Assim, um sujeito não pode ser visto exclusivamente como produto de suas relações passadas, mas deve também ser compreendido em sua dimensão de futuro (Maheirie, 1994).

“Para nós, o homem caracteriza-se antes de tudo pela superação de uma situação, pelo que ele chega a fazer daquilo que se fez dele, mesmo que ele não se reconheça jamais em sua objetivação” (Sartre, 1960/1987, pp. 151/152). Na teoria sartreana o sujeito se posiciona em relação às suas condições objetivas, buscando superá-las em relação ao campo dos possíveis, escolhendo uma possibilidade entre aquelas que se apresentam circunscritas pelas condições materiais.

Assim, o campo dos possíveis também compreende uma dimensão futura. Sartre (1960/1987) denomina projeto este movimento em direção ao que ainda não é. “Simultaneamente fuga e salto para frente, recusa e realização, o projeto retém e revela a realidade superada, recusada pelo movimento mesmo que a supera” (p. 152). Segundo o autor, o projeto é a “... superação subjetiva da objetividade em direção à objetividade, tenso entre as condições objetivas do meio e as estruturas objetivas do campo dos possíveis, representa em si mesmo a unidade em movimento da subjetividade e da objetividade” (p. 154). Este movimento é dialético, fundado nas relações que os sujeitos mantêm com as condições de partida e nas relações dos sujeitos entre si.

As escolhas que os sujeitos realizam vida afora nem sempre são frutos de reflexões. “O homem escolhe, na maioria das vezes, alienadamente, e é desta forma que o projeto por vezes, toma um rumo onde o próprio sujeito o ignore” (Maheirie, 1994, p. 119). A história é obra de toda atividade de todos os sujeitos; é, pois, obra coletiva. Modificando o seu contexto e modificando a si mesmo neste processo, o sujeito segue fazendo história, mesmo que ele não seja capaz de nela se reconhecer. Ele pode estranhá-la na medida em que não reconhece o sentido de sua empreitada no resultado total e objetivo, mas a história se faz a cada dia pelas mãos de todos (Sartre, 1960/1987).

As escolhas humanas são limitadas, de alguma forma, por uma base material objetiva, contudo a possibilidade de escolha &– mesmo que alienada &– confere liberdade ao sujeito. “Liberdade não é algo que se possui, que se conquiste, é condição humana, pois desde que nos humanizemos, nossa condição é a superação, alienada ou crítica” (Maheirie, 1994, p. 123). Cada pessoa é constituída pela objetividade, mediada pela subjetividade: nem puro objeto, nem subjetividade absoluta (Maheirie, 2003).

Em suma, para compreender como um sujeito se constitui, necessitamos contemplar as condições sociais, históricas e econômicas que nele repercutem; formar uma imagem sobre sua cotidianidade, suas vivências, sobre seus projetos e perspectivas de futuro. A contrapartida é verdadeira: conhecendo o sujeito, obteremos um retrato de sua sociedade ou de sua camada social. Isso é possível porque consideramos a atividade mediada uma categoria fundamental de análise: pela mediação o homem transforma seu contexto e se apropria de sua(s) significação(ões), constituindo-se como sujeito (Zanella, 2004).

 

A constituição de sujeitos na contemporaneidade

Como já citado, as últimas décadas foram marcadas por rupturas em vários campos &– artes, ciências, manifestações sociais etc. &– configurando o que muitos chamam de pós-modernidade. Segundo Jameson (1997), devemos concebê-la como uma dominante cultural, ou seja, uma concepção de mundo que dá margem à coexistência de características conjugadas entre si: um turbilhão de ambigüidades, contradições e de mudanças estéticas pulsantes.

Porém, isso não significa que as manifestações da era moderna simplesmente se extinguiram: observa-se na contemporaneidade a coexistência de produções pós-modernas e modernas, interagindo dialeticamente.

Os sentimentos modernistas podem ter sido solapados, desconstruídos ou ultrapassados, mas há pouca certeza quanto à coerência ou ao significado dos sistemas de pensamento que possam tê-los substituído. Essa incerteza torna difícil avaliar, interpretar e explicar a mudança que todos concordam ter ocorrido. (Harvey, 1992, p. 47)

Bauman3 prefere chamar a pós-modernidade de modernidade líquida, numa metáfora à incapacidade dos líquidos em manter a forma fora de um recipiente que os contenha. “Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades ‘autoevidentes’” (Bauman & Pallares-Burke, 2003, p. 6). Não há mais qualquer enraizamento possível, ao contrário do que existia antes na modernidade (que Bauman prefere chamar de modernidade sólida).

Esta falta de enraizamento e mutabilidade acelerada são características marcantes na condição pós-moderna. Harvey (1992) considera que esta privilegia a heterogeneidade e a diferença como forças redimensionadoras do discurso cultural: observa-se a tendência à urgência, ao imediatismo em alcançar a realização e o gozo, tudo é efêmero, instantâneo, está sempre sendo permanentemente desmontado, sem perspectiva de permanência. Como lembra Bauman (1999a, p. 86), “não se pode ficar parado em areia movediça”. A pós-modernidade é representada pela era das máquinas, do desenvolvimento acelerado, do incremento tecnológico incessante e voraz.

Observando a frenética urgência em produzir bens e gerar necessidades, Jameson (1997) defende que a pós-modernidade equivale à lógica cultural do capitalismo avançado. Isso porque a produção estética na contemporaneidade está integrada à produção de mercadorias: a economia produz convulsivamente séries de produtos que representam a “novidade” &– ainda que fugaz, atribuindo posição e função estrutural catalisadas à inovação estética e ao experimentalismo. Bauman (1999a, p. 88) reforça esta idéia, ressaltando que “a maneira como a sociedade atual molda seus membros é ditada primeiro e acima de tudo pelo dever de desempenhar o papel de consumidor”.

A tecnologia redimensionou as distâncias, abolindo as distinções entre aqui e lá. O espaço deixou de ser um obstáculo, sendo dominado em alguns segundos. Hoje em dia estamos todos em movimento, mesmo se fisicamente parados. A mídia bombardeia-nos com informações em tempo real, hiper-realizando o mundo e transformando-o num grande espetáculo, gerando uma resposta rápida e impulsiva. Acostumamo-nos ao espetáculo. O indivíduo está constantemente submetido a uma quantidade gigantesca de informações fragmentadas e estímulos desconexos.

Os discursos pós-modernos estão constantemente mudando e complexificando-se, consequentemente, exigem mudanças no campo das ciências para que esta seja capaz de compreender o sujeito da contemporaneidade. Morin e Le Moigne (1996) propõem um novo paradigma às ciências: o paradigma da complexidade, lançando mão do pensamento dialógico. A noção de dialógica pensa o mundo como um movimento contínuo em espiral, que retorna a si mesmo, mas não necessariamente ao mesmo ponto. Este movimento não pressupõe antagonismos entre opostos (como no caso da noção de dialética) e nem exclui que um mesmo elemento possa ser, ao mesmo tempo, causa e efeito (como no pensamento linear). Este é um grande desafio, pois compreende perder o sentido fixo das coisas, lidando com mutabilidades e antagonismos.

Esse pensamento da complexidade não é absolutamente um pensamento que expulsa a certeza para colocar a incerteza, que expulsa a separação para colocá-la no lugar da inseparabilidade, que expulsa a lógica para autorizar todas as transgressões. A caminhada consiste, ao contrário, em fazer um ir e vir incessante entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o inseparável. (Morin & Le Moigne, 1996, p. 205)

Morin (2003) aponta que o princípio do pensamento que ora se coloca deve permitir ligar coisas que aparentemente encontram-se desconexas, pois a realidade é multidimensional: simultaneamente psicológica, sociológica, política, mitológica etc. Do ponto de vista científico, as ciências clássicas não permitiam lidar com a autonomia dos elementos, pois esta estava baseada no determinismo. Já no pensamento complexo, “passamos de uma visão linear para uma visão circular” (p. 16). Como exemplo o autor cita uma caldeira que alimenta radiadores: quando se atinge a temperatura desejada, um termostato faz parar a caldeira e, quando a temperatura abaixa, o mesmo termostato faz a caldeira voltar a funcionar. “Há, em conseqüência, um sistema onde o efeito atua retroativamente sobre a causa” (p. 16). Este princípio pressupõe considerarmos um elemento autônomo que é, simultaneamente, causa e efeito. Numa análise social baseada na teoria da complexidade de Morin, poderíamos apontar, coadunando com as idéias de Sartre e Vygotski descritas neste artigo, que somos produtos e produtores do processo da vida.

Outra idéia importante é da interligação entre parte e todo: a parte está presente no todo e o todo está nas partes. A compreensão da unidade e da diversidade é ponto fundamental para a teoria da complexidade, até porque o atual processo de globalização nos força a reconhecer a unidade dos problemas globais onde quer que estejamos e, ao mesmo tempo, lida com uma série de diversidades culturais locais (Morin, 2003).

Esta forma da ciência analisar os sujeitos contemporâneos contrapõe-se à visão positivista, tecnocêntrica e racionalista do movimento moderno, ou seja, à crença no progresso linear, nas verdades absolutas e universais, no planejamento racional da ordem social e na padronização do conhecimento e da produção. Neste sentido, a estética tradicional falha ao captar o mundo cada vez mais complexo e o indivíduo cada vez mais fragmentado. Contudo, é bom ressaltar que o paradigma moderno ainda encontra seu lugar na academia, convivendo &– nem sempre de forma harmoniosa &– ao lado do emergente paradigma da complexidade.

O ser humano constitui-se por meio da dinâmica entre objetivação e subjetivação, pois, como já discutido, o psiquismo é resultado da atividade do sujeito no contexto das relações por ele estabelecidas. Quando ocorrem grandes mudanças sociais e culturais &– como as provocadas na contemporaneidade, o sujeito é plenamente afetado.

Uma das conseqüências do paradigma pós-moderno que nos interessa analisar com mais detalhes é o descentramento do sujeito. A pós-modernidade aceita com grande complacência o efêmero, o fragmentário, o descontínuo e o caótico, rejeitando a idéia de sujeito autônomo e centralizado. Há uma ruptura do senso de identidade do indivíduo, por meio de um bombardeamento de signos e imagens fragmentadas e flutuantes que desconectam passado, presente e futuro. Harvey (1992, p. 57) chega a afirmar que não mais podemos conceber o sujeito pós-moderno como “alienado”, numa perspectiva marxista, pois ser alienado “... pressupõe um sentido de eu coerente e não fragmentado do qual se alienar”.

Se, de fato, o sujeito perdeu sua capacidade de estender de forma ativa suas propensões e retensões em um complexo temporal e organizar seu passado e seu futuro como uma experiência coerente, fica bastante difícil perceber como a produção cultural de tal sujeito poderia resultar em outra coisa que não um “amontoado de fragmentos” e em uma prática da heterogeneidade a esmo do fragmentário, do aleatório. (Jameson, 1997, p. 52)

O estabelecimento de sentidos e significados (Vygotski, 1934/1992) ganhou maior fluidez e dinamismo na contemporaneidade. Na medida em que significado é uma generalização de uma prática social humana, este possuiria um caráter mais duradouro e estável que os sentidos, que possuem caráter pessoal, singular. Contudo, os significados também perderam a estabilidade nas dinâmicas pós-modernas, deixando o indivíduo órfão de pautas e parâmetros estáveis nos quais se basear.

Em decorrência do descentramento do sujeito, observamos grande falta de profundidade nas relações estabelecidas e em boa parte da produção cultural da contemporaneidade, representada pela cultura da imagem e do simulacro, causando uma fixação nas aparências, na superfície e nos impactos imediatos sem poder de sustentação ao longo prazo; e um enfraquecimento da historicidade &– tanto nas relações com a história pública como em novas formas de representação da nossa temporalidade privada (Jameson, 1997).

Na pós-modernidade, com freqüência, nos deparamos com uma visão da vida, em oposição à idéia de ela ser um projeto carregado de significados,

... temos aqui a visão de que o modo primário de orientação do indivíduo é estético e, como o esquizofrênico, ele é incapaz de encadear os significados e, em vez disso, precisa enfocar determinadas experiências ou imagens desconectadas, que proporcionam um senso de intensa emersão e imediatismo, a ponto de excluir todas as preocupações teleológicas mais amplas. (Featherstone, 1997, p. 69)

Nesta nova ordem, a experiência do presente torna-se preponderante, alimentando concepções de falta de profundidade e/ou enfraquecimento da historicidade. Passado e futuro perderam sua magnitude: só o presente importa. “A atitude da vida cotidiana é absolutamente pragmática” (Heller, 1970/1992, p. 32), desta forma, o pensamento se orienta para as manifestações e ações do dia-a-dia e as idéias necessárias à cotidianidade raramente se elevam ao plano da teoria. “O homem da cotidianidade é atuante e fruidor, ativo e receptivo, mas não tem tempo nem possibilidade de se absorver inteiramente em nenhum desses aspectos; por isso não pode aguçá-los em toda a sua intensidade” (Heller, pp. 17-18).

Considerando que é a vida que determina uma determinada forma de racionalidade (Marx & Engels, 1845/46/1981), a fugacidade, a velocidade e a superficialidade impostas pela contemporaneidade tornam quase impossível pensar projetos (Sartre, 1960/1987) que transcendam o aqui-agora. Perguntar a uma criança “o que você pretende ser quando crescer?” é uma “pergunta em extinção”, pois mesmo no plano do imaginário e da fantasia torna-se cada vez mais difícil aos sujeitos forjados sob a égide da pós-modernidade projetar o futuro. As crianças apreendem desde a infância a incerteza, a indeterminação, o imediatismo e a urgência dos nossos tempos4 e, daqui a alguns anos, talvez elas não mais compreendam o significado de projeto e planejamento.

Viver sob a égide de situações efêmeras e fugazes faz com que o mesmo aconteça com as relações humanas. Bauman exemplifica descrevendo uma nova forma de relacionamentos, a qual o autor chamou de “liquid love”: de um lado, o indivíduo precisa dos outros, mas, ao mesmo tempo, tem medo de desenvolver relacionamentos profundos que o imobilizem num mundo em permanente movimento. É um dilema terrível e insolúvel; é o dilema no qual os sujeitos de nossa era estão imersos (Bauman & Pallares-Burke, 2003)

Cabe um último comentário: nesta reflexão não está embutido nenhum pessimismo mórbido em relação ao que esperar desses sujeitos em formação na contemporaneidade. Novos tempos geram novos sujeitos, que só podem ser plenamente compreendidos pelo olhar de seu próprio tempo. Só podemos inteiramente compreender um sujeito do século XV se o olharmos pela perspectiva do século XV; da mesma forma, só é possível formarmos uma concepção sobre um sujeito contemporâneo se o olharmos com os olhos do século XXI. Sousa Santos (2001) inclusive alerta que nem sempre é fácil distinguir se o que estamos presenciando é realmente novo ou se foi simplesmente nosso olhar que mudou:

Estamos numa época em que é muito difícil ser-se linear. Porque estamos numa fase de revisão radical do paradigma epistemológico da ciência moderna, é bem possível que seja sobretudo o olhar que está a mudar. Mas, por outro lado, não parece crível que esta mudança tivesse ocorrido sem nada ter mudado no objeto do olhar, ainda que, para maior complicação, seja debatível até que ponto tal objeto pode ser sequer pensado sem o olhar que o olha. (Sousa Santos, 2001, p. 144)

Vivemos num conturbado período onde convivem lado a lado os paradigmas da modernidade e da pós-modernidade e é com o olhar atônito do século passado que olhamos para o futuro. Não sabemos ao certo quais as cores da sociedade que está surgindo, contudo sabemos que é diferente daquilo que até então foi nossa referência. É por isso que o caos gerado pela pós-modernidade tanto nos incomoda e instiga.

O caos, “o outro da ordem”, é pura negatividade. É a negação de tudo o que a ordem se empenha em ser. É contra essa negatividade que a positividade da ordem se constitui. Mas a negatividade do caos é um produto da autoconstituição da ordem, seu efeito colateral, seu resíduo e, no entanto, condição sine qua non da sua possibilidade (reflexa). Sem a negatividade do caos, não há positividade da ordem; sem o caos, não há ordem. (Bauman, 1999b, p. 15)

É nesta perspectiva que nos propomos a pensar acerca do sujeito na contemporaneidade, produto e produtor do caos e da ordem que o constitui e é por ele constituída. Finalizamos com uma colocação que nos parece, atualmente, muito pertinente, produto de uma discussão interessante que tivemos com o psicanalista Oscar Raymundo: não estaríamos hoje, pretendendo preencher nossa “falta”, tentando nos transformar em uma objetividade caracteristicamente fugaz, por meio de consumos efêmeros? E com isso, não estaríamos caindo num vazio existencial, por não compreendermos que o que caracteriza a vivência é, justamente, a constante e incessante procura?

 

Referências

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Bauman, Z., & Pallares-Burke, M. L. G. (2003, 19 de outubro). A sociedade líquida. Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 04-09.        [ Links ]

Bauman, Z. (1999a). Globalização: as conseqüências humanas. (M. Penchel, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: mafediogo@bol.com.br

Recebido em setembro de 2006
Aceito em janeiro de 2007

 

 

* Maria Fernanda Diogo é psicóloga; Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Professora do Departamento de Psicologia nesta mesma instituição
** Kátia Maheirie é psicóloga; Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo &– PUCSP, professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC
1 Liev Semiónovitch Vygotski (1896-1934) e Jean-Paul Sartre (1905-1980) desenvolveram teorias cuja base é a matriz histórico-dialética, contudo ambos possuem diferentes concepções ontológicas do ser humano. Neste artigo, realizaremos algumas aproximações entre os autores em relação às suas concepções de desenvolvimento humano cuja base e gênese é o social
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3 Entrevista concedida a Maria Lúcia GarciaPallares-Burke
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